O momento em que vivemos bem poderia ser definido pelo protagonismo do ataque às regras do jogo. Mas igualmente bem poderia ser pensado como o confronto entre o ideal e o real ou entre o abstrato e o concreto. De uma hora para outra, a democracia se tornou protagonista da discussão política chegando a engolir quase todas as outras abordagens sobre o tema. Na curta história dessa experiência política, ainda não conhecíamos quem se valesse do questionamento da razão de ser da democracia para conseguir um espaço dentro dela, isto é, ser eleito.
Perguntamos aqui se é possível distinguir o comportamento de quem ataca a democracia e o de quem a defende. Ao mesmo tempo, gostaríamos de fazer um exercício de suposição quanto ao que esses dois grupos pensam, ou até mesmo compreendem, o que vem a ser a democracia.
Não iremos muito longe na recuperação das origens gregas e posteriormente iluministas. Permaneceremos por perto, mais próximos do que julgamos o repertório dos grupos que agora se confrontam nas redes sociais.
Comecemos por quem ataca a democracia. Entendo que o que esteja em jogo seja a percepção de um alijamento do debate. A democracia, do ponto de vista conceitual, sempre foi um terreno para os mais esclarecidos ou que desenvolveram alguma sensibilidade mais abstrata. É exatamente a partir daí que notamos a perspectiva de se investir no ressentimento, na baixa estima de quem se viu como fora desse debate, mais exatamente por parecer não compreendê-lo. Note-se que um dos gaps existentes em nosso país se coloca mais exatamente entre quem domina determinados códigos de comunicação e os outros que não se sentem confortáveis para tanto.
Esse conjunto de pessoas não estabelece identidade alguma entre o seu cotidiano, marcado pela luta mais direta pela sobrevivência, e a democracia. Tal comparação já parece esdrúxula. Como supor que a política lhes pareça algo sobre o qual vale a pena conversar ou mesmo atentar? Trata-se de um tema bastante afastado da lida do cotidiano, com a ida e vinda no metrô ou no ônibus. Decididamente, este não é um assunto que predomina, mas sim o preço das coisas, a preocupação com a segurança, com a família e com a saúde. Mais fácil é supor que o tema da política apareça somente quando alguma atitude política cruzou a fronteira e se aproximou dos costumes ou da religião.
Quanto ao outro segmento, o que se percebe é que o tema da democracia é, inclusive, uma forma de autoprojeção. Ficar bem entre seus pares parece ser um dos motivos. Demonstrar conhecimento idealizado também é uma maneira de compartilhar a si mesmo nas redes sociais. No mínimo, funciona com as palminhas sucessivas nos grupos de WhatsApp, e que sinalizam uma educação premeditada e calculada para parecer que você participa amavelmente – principalmente em relação a quem lhe chefia, no caso de você estar num grupo de trabalho. Creio que não seja tão verdadeiro que esse grupo defenda a democracia com convicção, uma vez que também são capazes de criar simpatia por experiências autoritárias quando essas se aproximam das suas preferências ideológicas. Mas também não acredito que sequer possuam uma ideologia com clareza. Tudo isso dá muito trabalho, exige muita leitura e estudo, um tipo de concentração bastante lenta para os nossos tempos. E o vento que enche as velas chega com mais facilidade.
Experiências mais ou menos próximas, em especial de quem compartilhou do período da ditadura no Brasil, ainda ressoam – mesmo porque temos narrativas mediadas pela memória e que chegam até nós. Trata-se de uma retomada bastante sujeita à polarização, dado que esse período, quando retomado, abre espaço para o ressentimento. E ressentimento tem sido a energia renovável nas redes sociais.
Continuo a acreditar que não existam bons ou maus nessa história, mas algo muito próximo do oportunismo que grassa na política. Hoje, esse oportunismo passa pela arte de pilhar as pessoas. Exemplos anteriores na história me conduzem a esse juízo. A ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, por exemplo, já foi vista como mais sanguinária, mas passou para o arco dos populismos de respeito, quando da chegada do PT ao poder. E se prosseguirmos nesse argumento, talvez cheguemos à conclusão de que ninguém está muito preocupado com a democracia, mas sim em fazer dela um capital político para alavancar uma ou outra candidatura.
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