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Das expectativas que temos em relação à História

O rei Salomão suplicava ao Pai Eterno que lhe desse um coração inteligente. Ao fim de um século devastado pelos crimes conjuntos dos burocratas, quer dizer, de uma inteligência puramente funcional, e dos possessos, quer dizer, de uma sentimentalidade sumária, binária, abstrata, soberanamente indiferente à singularidade e à precariedade dos destinos individuais, essa prece, para ser dotada de perspicácia afetiva, tem mantido todo seu valor, como já dizia Hanna Arendt. Deus, entretanto, se cala. Volta seu olhar para nós, talvez, mas não responde, não sai de sua discrição, não se mete em nossos negócios. Seja como for, seja o que quer que imaginemos para enriquecer Seu emprego de tempo e para nos convencer de Seu ativismo, Ele nos abandona à própria sorte. Não é diretamente a Ele, nem à História, esse avatar moderno da teodiceia, que podemos dirigir nosso pedido com alguma possibilidade de sucesso, é à literatura. Mediação que, entretanto, não é uma garantia: sem ela, porém, a graça de conseguirmos um coração inteligente continuará sempre inacessível a nós. E conheceríamos talvez as leis da vida, mas não a sua jurisprudência. (Alain Finkielkraut. Um coração inteligente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 9.)

Desse maravilhoso trecho apresentado como epígrafe, eu me mobilizei pela menção que Finkielkraut fez à História. Ecoa, aqui, a reflexão operada por Susan Neiman no seu O Mal no pensamento moderno: uma História alternativa da filosofia (Rio de Janeiro: Difel, 2003). A autora, que esteve conosco em uma LABÔ Lecture, parte mais exatamente do terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, para identificar uma origem da filosofia moderna; e isso porque é nesse momento que os filósofos iluministas fazem de Deus um objeto de estudos que deve ser visado na relação com o que veio a fazer: como explicar que Ele tenha permitido que o mal ocorresse? Neiman localiza, no contexto de um evento catastrófico, uma proximidade com a História bíblica de Jó. Ela então escolheu iniciar a sua obra a partir da visão filosófica sobre a Teodiceia.

Em que pese esse não ser o nosso foco, a afirmação acerca dos “crimes perpetrados pelos burocratas”, para deixar registrado, é o outro polo da obra de Susan Neiman: o epicentro do mal estando na nossa espécie. Se, no início, a pergunta era “como Deus permitiu que isso acontecesse?”, ao final, temos “como foi possível que fizéssemos isso?”.

Entretanto, tendo em vista o primeiro estímulo, interessa-me aqui lançar luzes sobre a interpretação de Finkielkraut de que a História seja o “moderno avatar da teodiceia”, a saber, o lugar que dá oportunidade para a emancipação do mal.

É a História que se aproxima dos desígnios de Deus, no sentido das expectativas de salvação ou redenção que ela gera, que me chama a atenção. Percebo que, de fato, esse seja um lugar apropriado para a História e que foi se desenhando mais nitidamente ao longo do século XX. Em especial, no final da Segunda Guerra, o que parece se consumar em uma terrível síntese do contato com a horrenda sequência de destruições e violências iniciadas no primeiro confronto mundial. Diga-se que essa apreensão negativa da História guarda proximidade com o seu oposto, o otimismo ocidental nos anos finais do século XIX, um período capaz de ser intitulado, sem constrangimentos, de Belle Epoche.

Nessas duas faces opostas e distintas, temos um mesmo ponto em comum: a perspectiva de que a História seja permeável ao nosso entendimento, que possa atender às nossas expectativas ou que venha a nos frustrar. Trata-se de uma dimensão domada da História e que estabelece a nossa intimidade com ela. A História ganha, assim, um traço humano que possibilita o nosso acesso e que nos deixa felizes, confiantes ou revoltados e frustrados. É a partir desse viés que podemos entender a pertinência de afirmações como “a História nos traiu”, a “a História acelerou”, dentre outras que não escondem a presença do mentor da condução da História ao lugar antes ocupado pela religião. Estamos nos referindo a G.W. Hegel (1770-1831).

Somos uma espécie que depende da existência de significados e de conteúdos metafísicos. E eles variam dos mais tradicionais, como é o caso da mitologia e da religião, aos mais recentes, como a metafísica presente nos streamings e nos storytellings contemporâneos.

Humanizamos a História, na medida em que nos posicionamos em relação a ela de maneira pessoal. Isto é, tendemos a reagir de um modo pueril, tornando-nos bravos, revoltados ou felizes. A História, assim tratada, parece estar sob o nosso domínio mais exatamente quando ela realiza o que gostaríamos que acontecesse. Se o oposto acontece, ficamos de mal com ela. Nesse modo de operação, nos comportamos também como protagonistas dos rumos históricos. É isso que me parece ocorrer quando buscamos engajamento ou partimos para o convencimento político do outro. É claro que não conseguimos parar de dramatizar e de agir como quem representa o papel de um indivíduo preocupado e que tem consciência social, mesmo que possamos apenas estar articulando em nossa própria exibição.

Tratada assim, a História se torna passível de ter um temperamento e um gênio. Ela é como Clio, uma alegoria. As narrativas que passam pelo circuito audiovisual podem ter contribuído para essa abordagem infantilizada dos eventos históricos. Creio também que haja a presença da religião, ou do que antes ela dava conta e propiciava. Essa relação para com a História, o passado e o que venha a ser o futuro pode também ser uma mera justificativa da necessidade de produção de sentido em relação ao que vivemos e compartilhamos no presente. Agimos como se fosse possível possuirmos uma história para chamar de nossa ou como se ela fosse uma matéria plástica para a qual damos contornos expressivos. Talvez sejamos apenas uma espécie muito frágil e precária e sem suporte algum para o enfrentamento daquilo que não possui nenhum tipo de sentido ou ordenamento preestabelecido.

Veja a LABÔ Lecture com Fernando Amed:
https://offlattes.com/archives/12447

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Sobre o autor

Fernando Amed

Doutor em História Social pela USP. Historiador pela FFLCH da USP, professor da Faculdade de Comunicação da Faap e do curso de Artes Visuais da Belas Artes de São Paulo, autor de livros e artigos acadêmicos. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.