Em maio de 1960, Otto Adolf Eichmann, oficial nazista alemão e um dos principais organizadores do transporte e deportação de judeus para os campos de concentração, nos quais seria posta em prática a chamada “Solução Final”, foi preso em Buenos Aires (cidade para onde havia fugido após a derrota da Alemanha na Segunda Guerra, munido de documentos falsos da Cruz Vermelha Internacional, e na qual vivia com uma identidade falsa). Sua prisão se deu por meio de uma operação do Mossad (serviço secreto do Estado de Israel), que realizou sua captura e transporte até Jerusalém, para que fosse julgado por crimes contra a humanidade.
O julgamento de Adolf Eichmann foi iniciado em abril de 1961 e a revista The New Yorker enviou a filósofa alemã Hannah Arendt a Israel, para fazer a cobertura do processo. Em 1963, Arendt lançaria seu livro Eichmann em Jerusalém, relatando suas impressões sobre toda a investigação e processo que culminaram na condenação do ex oficial nazista à morte por enforcamento (a única pena capital da história do Estado de Israel).
Durante o julgamento, uma das defesas apresentadas pelo réu, que alegava sua inocência, era a de que a observância das leis de seu país e o cumprimento de seu dever o haviam levado ao tribunal. Ele “contou que o fator mais potente para acalmar a sua consciência foi o simples fato de não ver ninguém, absolutamente ninguém, efetivamente contrário à Solução Final” (Arendt, 1999, p. 133). Esta era a sua realidade e a de seus semelhantes. Se em Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt cita o bloqueio que a ideologia totalitária causara na população, que aceitava o Führer como único porta-voz do que ocorria no exterior, Eichmann confirma esta visão, alegando que “nenhuma voz se levantara no mundo exterior para despertar sua consciência, e que era tarefa da acusação provar que não era assim, que havia vozes que ele poderia ter ouvido” (Arendt, 1999, p. 142).
Essa posição ilustra a marca do totalitarismo em privar as pessoas de sua participação política e do pleno desempenho de suas faculdades, apresentando suas opiniões dentro de um sistema que proteja o livre acesso à informação, bem como assegure a liberdade de seus cidadãos. Ao trazer e impor suas crenças raciais e políticas dentro da Alemanha, disseminando-as por meio de mentiras e do terror, todos os que foram submetidos a essa situação tenderam a perder seus vínculos com a realidade, e quando o crime passou a ser lei (e no caso de Eichmann, possibilidade de promoção e sucesso profissional), as massas enganadas seguiram a ordem de um mundo fictício que lhes era apresentado como real e coerente.
[…] os regimes totalitários não produzem necessariamente monstros. O que eles frequentemente engendram seriam pessoas incapazes de pensar por si mesmas e incapazes de compreender a imoralidade de suas ações, visto que tudo o que faziam era sancionado pela lei e apoiado pelo regime vigente (Fry, 2010, p. 45).
Embora se esperasse um monstro, com base nos crimes que havia cometido, Eichmann ofereceu sua personalidade de homem de massa, próprio de seu tempo, desconexo da participação política e alienado do mundo ao seu redor. Era tão somente um homem comum, a quem bastava verificar que a imensa maioria, como ele, seguia as palavras de Hitler, e isso era suficiente para justificar que estava no caminho certo. O niilismo que Eichmann apresenta em relação à vida e a si mesmo, antes de entrar para a SS, e, posteriormente, sua única e constante preocupação com sua sobrevivência profissional e carreira, o colocam no mesmo patamar de seus concidadãos.
Por outro lado, isso não o isenta, tampouco aqueles que participaram de uma forma ou de outra do extermínio e assassinatos da Segunda Guerra. Hannah Arendt discorda de uma interpretação que chame a todos de culpados, pois, segundo ela, a culpa universal isenta os verdadeiros culpados. Da mesma forma, a autora rechaça a interpretação de sua tese que entende um “Eichmann em potencial” dentro de cada um, bastando apenas ser colocado nas mesmas situações totalitárias para emergir:
Eichmann era totalmente responsável por seus atos, pela insensibilidade em perceber o mal ao seu redor e de não abdicar de suas funções em nome de um dever kantiano que ele alegava conhecer, bem como da população que, embora tenha protestado contra as execuções do programa T-4, não teve o mesmo ânimo para denunciar, ou mesmo se espantar diante de semelhante horror que era repetido nos campos de extermínio. […] pois ele e o mundo em que viveu marcharam um dia em perfeita harmonia. E a sociedade alemã de 80 milhões de pessoas se protegeu contra a realidade e os fatos exatamente da mesma maneira, com os mesmos autoengano, mentira e estupidez que agora se viam impregnados na mentalidade de Eichmann (Arendt, 1999, p. 65).
O isolamento dos homens é campo fértil para o surgimento de preconceitos enquanto fruto da ignorância. O completo desconhecimento do outro pode permitir que qualquer informação se materialize em conceito e restringirá tanto a evolução da opinião ‑ uma vez que o isolamento, unido à ignorância, impedirá o homem de conhecer o outro e submeter seu pensamento a opiniões contrárias ‑ quanto o conhecimento pleno de um assunto específico. Se a ideologia totalitária representa o que há de mais extremo quanto à promoção de mentiras em verdades, e de ignorância em conhecimento, para Arendt, a filosofia pode lhe fazer frente, oferecendo a insegurança do constante aprendizado, mas também a liberdade de pensamento que caracteriza o homem como ele próprio se reconhece.
O perigo de trocar a necessária insegurança do pensamento filosófico pela explicação total da ideologia e por sua Weltanschauung (visão de mundo) não é tanto o risco de ser iludido por alguma suposição geralmente vulgar e sempre destituída de crítica quanto o de trocar a liberdade inerente da capacidade humana de pensar pela camisa-de-força da lógica, que pode subjugar o homem quase tão violentamente quanto uma força externa (Arendt, 2009, p. 522).
Esta mesma liberdade de pensamento dá ao homem a autonomia para ser livre e a responsabilidade por seus atos. Embora pareça óbvia, a princípio, a proposta de Hannah Arendt deve tornar-se imperativo de voz constante para os homens: “O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de pensar o que estamos fazendo” (Arendt, 2010, p. 6).
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
__________. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
__________. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
FRY, Karin A. Compreender Hannah Arendt. Petrópolis: Vozes, 2010.
Imagem: Israel Government Press Office