LABÔ Lectures

Literatura e Psicologia

Labô Lectures (19/11/2020)
Tradução: Renan S. Carletti


Senhoras e senhores, gostaria de agradecer por terem me honrado, pedindo-me para falar com vocês aqui hoje. Mas, em segundo lugar, gostaria de admitir que, como não sou um psicólogo acadêmico nem um estudioso de literatura, o assunto de minha palestra, psicologia e literatura, pode parecer um pouco estranho para vocês. Falarei com vocês como um leigo, não como um acadêmico.

No entanto, todos são psicólogos no sentido de que todos são metafísicos, quer saibam ou não. Todos nós fazemos suposições metafísicas de forma consciente, mais frequentemente inconscientemente, sem nunca termos formulado uma filosofia consistente. Se é que uma filosofia consistente é possível; ainda que sequer tentemos fazê-la. Na grande maioria das vezes, somos realistas ingênuos. Vivemos nossas vidas como se fôssemos capazes de apreender diretamente a realidade, pois, na maior parte do tempo, acreditamos na evidência de nossos sentidos. Da mesma forma, fazemos suposições sobre os pensamentos, sentimentos, motivos, propensões e provável conduta futura das pessoas ao nosso redor. Supomos que eles sejam, em certo sentido, como nós. Pois, se não fossem, não deveríamos ter esperança ou mesmo a frágil compreensão que temos deles. Não entendemos o que é ser uma minhoca ou um peixe, mas afirmamos ser capazes de entender outra pessoa ou uma situação vivida por ela.

Claro, quanto mais próximos estamos de pessoas em nossa cultura, maior é a extensão de nossa capacidade assumida de entendê-las. Mas também acreditamos em um substrato da natureza humana que é imutável. Sem dúvida, existem algumas condições clínicas nas quais as pessoas têm pouca ou nenhuma concepção de outras pessoas como seres conscientes, acreditando serem meros objetos em movimento, mas esse é certamente um fenômeno marginal. Para citar Adam Smith, que era um filósofo moral antes de ser economista, no início de seu livro A teoria dos sentimentos morais ele diz:

Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte de outros, e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso senão o prazer de assistir a ela.

Da mesma forma, diz Smith, sentimos compaixão por aqueles que vemos obviamente sofrendo, mesmo quando temos pouca conexão pessoal com eles. Novamente, não é necessário considerar isso uma lei absoluta. Nitidamente existem pessoas que se deliciam ao ver os outros sofrerem. No entanto, de uma maneira geral, é verdade que sentimos simpatia e empatia por outras pessoas. Em resumo, praticamente todo mundo é instintivamente um psicólogo.

Quando se trata de literatura, todo leitor é um crítico, embora não necessariamente um muito sofisticado. Praticamente ninguém, imagino, pode ler um livro sem pensar ou julgar se é um livro bom ou ruim, por esse ou por aquele motivo. Até que ponto é necessário ser um erudito literário para apreciar a literatura é uma questão que vai além do meu escopo atual.

Alguns críticos franceses achavam que era necessário conhecer a biografia de um autor para apreciar sua obra. Proust pensava o contrário. Quanto a mim, me situo em algum ponto entre esses dois e, certamente, lendo a prosa dos acadêmicos da literatura moderna, fico com a impressão de que eles odeiam a literatura em vez de amá-la. Certamente, eles não aprenderam a escrever.

Portanto, partindo da premissa de que todo mundo é psicólogo e crítico literário, não preciso me sentir muito culpado por falar sobre dois assuntos sobre os quais sei muito pouco. Chego, agora, a outra questão bastante difícil. Tanto a psicologia quanto a literatura objetivaram nos dizer algo importante sobre a vida humana: o que há de errado com ela, qual sua finalidade, como devemos ou não conduzir a vida. Em suma, ambas visam a autocompreensão humana.

Mas isso levanta a questão filosófica do que é a autocompreensão humana, na teoria, e como seria na prática. Em que ponto poderíamos dizer: “Aha! Agora, eu me entendo.” Ou, de maneira alternativa: “agora eu entendo outras pessoas”. Meus pacientes, no passado agora um pouco distante em que eu era médico, às vezes diziam que queriam entender a si mesmos e queriam que eu os ajudasse a fazê-lo. Eu começava perguntando o que seria considerado por eles como uma explicação de si mesmos que os deixaria satisfeitos. Me dê um exemplo, eu dizia: me dê um exemplo do que é entender a si mesmo, do tipo de explicação que você deseja. E não deverá surpreendê-los, talvez, saber que ninguém foi capaz de responder a essa pergunta, seja sobre si mesmo ou sobre qualquer outra pessoa. Ora, é verdade que, de certa forma, em certas circunstâncias muito limitadas, pode-se explicar o comportamento de uma forma perfeitamente satisfatória, isto é, de uma forma que por si só não exige explicações adicionais.

Por exemplo, no hospital em que eu trabalhava, os idosos às vezes começavam a se comportar de uma forma bastante estranha, incomum para eles. Nesses casos, descobriríamos, uma alteração bioquímica em seu sangue, que, uma vez controlada, os curaria de seu estranho comportamento, sem que fosse necessária qualquer explicação adicional para o seu estranho comportamento – embora, naturalmente, nós também investigássemos as causas desses distúrbios bioquímicos e as removêssemos, quando possível. No entanto, esta é uma experiência humana periférica, não uma central e, embora, sem dúvidas, haja alguns entusiastas que acreditam ou almejam que um dia todo e qualquer comportamento humano seja igualmente explicável, é minha convicção de que esta crença seja uma ameaça ou que nunca será satisfeita.

O homem é um criador de significado, e acho que o significado jamais será suscetível a uma explicação puramente física. Sendo assim, se eu estiver certo, o homem permanecerá sempre um mistério para o homem, embora ele continue eternamente tentando encontrar a chave de seu mistério. E se o passado for indicativo, de tempos em tempos, ele alegará tê-la encontrado. Mas esse tipo de compreensão total de nós mesmos foi o que vários sistemas filosóficos e psicológicos como o marxismo, o freudismo, o behaviorismo etc. alegaram ter alcançado. Continuaremos a nos iludir, nunca obteremos a explicação total. Isso não significa que estejamos condenados a uma incompreensão total e absoluta uns dos outros; e a literatura é uma forma de alcançar ou, pelo menos, ampliar nossa compreensão.

Agora, espero que vocês me perdoem, se eu usar exemplos da literatura inglesa e especialmente de Shakespeare. Faço isso, não porque nenhuma outra literatura possa ilustrar o que tenho a dizer, mas porque sou inglês e uma boa literatura, e mesmo uma literatura bastante ruim, serviria também. Vale a pena estudar literatura ruim, às vezes, para saber o que é boa literatura. O mesmo vale para a arte, aliás, vale a pena olhar a arte ruim para saber o que é arte boa.

Bem, eu começo com um soneto de Shakespeare, soneto 138. A interpretação dos sonetos de Shakespeare, que foram publicados pela primeira vez como uma coleção em 1609, deu origem a uma imensa literatura. Você poderia encher uma biblioteca inteira com livros sobre os sonetos de Shakespeare e existem perguntas sobre para quem eles foram escritos, o que significam etc.

Estudiosos estão sempre convencidos de terem encontrado a resposta e de que seus pares tenham errado. É claro que os sonetos são, em certo sentido, autobiográficos. Quer dizer, eles refletem e surgiram da própria experiência de Shakespeare, de uma forma que nenhuma de suas outras obras surgiram de sua própria experiência direta.

No entanto, como toda grande arte, eles não são particulares e individuais, tampouco universais. Hesito em afirmar que eles são universais, porque índios misteriosos isolados, por exemplo, nas florestas tropicais da Amazônia, não responderiam necessariamente a uma tradução dos sonetos de Shakespeare se estes lhes fossem dados. De qualquer forma, eles expressam coisas que podem significar algo para um grande número de pessoas nos últimos séculos.

Bem, eu sei que todos vocês que estão assistindo a isso falam inglês muito bem, ainda assim não é sua língua materna. E Shakespeare às vezes é difícil até mesmo para falantes nativos de inglês, especialmente hoje em dia com nosso nível de educação.

Portanto, devo ler o poema bem devagar, para sua melhor compreensão antes de comentar seu aspecto psicológico. Para um falante de inglês, este poema é muito bonito:

Quando minha amada jura ser verdadeira,/ Eu a creio, embora saiba que ela mente;/ E pense ser eu um jovem inconsequente,/ Desconhecendo as falsas nuanças deste mundo./ Assim, em vão, pensando que ela me julgue novo,/ Sabendo que meus melhores dias já se foram,/ Simplesmente acredito em sua torpe língua;/ Em ambos os lados, a mera verdade é suprimida,/ Mas, quando ela não diz ser injusta?/ E quando eu não digo que sou velho?/ Ah, o maior dom do amor é parecer sério,/ E, no amor, a idade não quer ser dita:/ Assim, minto com ela, e ela comigo,/ E mentindo, em nossos erros, nos deleitamos.[1]

Bem, qualquer um que ler esse poema, publicado pela primeira vez em 1599, perceberá imediatamente que não precisávamos de Freud, nascido um quarto de milênio depois, ou mesmo de qualquer outra pessoa, para nos informar que a mente humana é um instrumento complexo e longe de ser simples. As duas primeiras linhas “Quando minha amada jura ser verdadeira,/ Eu a creio, embora saiba que ela mente;[2]” são suficientes para nos dizer que a mente humana não opera apenas pela lógica, que existe algo como uma vontade de acreditar e que, assim, somos capazes de acreditar em algo que sabemos ser falso. A dissonância cognitiva não é uma coisa nova nem uma nova descoberta, e Shakespeare entendeu isso examinando sua própria mente. Repito, quase todo crítico acredita que seus sonetos surgem de sua experiência pessoal, neste caso, o amor de uma amante.

Ele acreditava na falsidade de sua amante, porque não queria que ela pensasse que ele fosse experiente no jogo do amor e, portanto, que ele é jovem, embora ele não o fosse. Ela poderia pensar que ele fosse um jovem inculto, iletrado em todas as sutilezas do mundo. Na verdade, ele está apelando a sua própria capacidade de dissonância cognitiva para que ela o considere jovem, embora saiba perfeitamente que ele não é jovem. Porque, como ele disse, seus dias já passaram do melhor, e assim, em ambos os lados, a mera verdade é suprimida. Por que jogam esse jogo? E por que é necessário jogar esse tipo de jogo? Por que ela não conta a verdade a ele? E por que ele não diz a verdade a ela?

É porque um relacionamento de amor, ao menos esta relação particular de amor, não pode sobreviver a mentalidades muito literais ou a muitas verdades, à revelação completa do que quer passe pelas mentes dos amantes. A verdade simples deve ser suprimida. Como disse o poeta T. S. Eliot, mais de três séculos depois: a humanidade não pode suportar muita realidade.

A continuidade do amor exige que ignoremos muita coisa, que acreditemos no que é falso e desacreditemos no que é verdadeiro. O melhor hábito do amor é aparentar confiança, ou seja, parecer acreditar no que se sabe não ser verdadeiro e quando você parece acreditar em algo por muito tempo, isso realmente se tornará verdade para você. Dessa forma, o amor pode persistir. São as mentiras que permitem que Shakespeare continue a mentir. Ou seja, dormir com sua amante, e essas inverdades agradam aos dois.

Não é preciso dizer que isso vai totalmente contra a ideia de que devemos ser sempre honestos, abertos e autênticos em nossas relações uns com os outros. Mais uma vez, Shakespeare não estava tentando enumerar uma lei científica universal invariável sobre as relações humanas. Ele não está afirmando que todos os casos de amor devem ser invariavelmente como são nesse poema. Mas quando ele diz “o melhor hábito do amor”, como um hábito no sentido de vestuário, hábito como uma espécie de vestimenta ou uma maneira repetida de se comportar, ele sugere não estar falando apenas de sua própria situação, mas de muitas outras pessoas em situação semelhante.

Em um lugar diferente em sua obra, Shakespeare faz uma afirmação semelhante, mas não idêntica. Ou talvez eu deva dizer que ele permite que um de seus personagens o faça, porque, é claro, seria um erro elementar identificar o autor com seus personagens. Especialmente no caso de Shakespeare, porque são tantos os personagens que ele parece entender “de dentro”, por assim dizer. No Rei Lear, o velho rei decide abdicar do trono em favor de suas três filhas, entre as quais ele propõe dividir seu reino em partes iguais. Mas, antes de fazer isso, ele pede às filhas que digam o quanto o amam. As duas primeiras filhas, Goneril e Regan, que naturalmente se revelam más, respondem com discursos eloquentes, mas floridos, proclamando seu profundo amor – enquanto Cordelia simplesmente responde que o ama porque é seu dever amá-lo como filha. O rei Lear considera o visível contraste entre a grandiloquência de Goneril e Regan e a linguagem franca de Cordelia e assume que Goneril e Regan o amam infinitamente mais que Cordelia, porque elas disseram isso.

Ele, então, divide o reino, deixando de fora Cordélia, de onde se origina toda a tragédia que se segue na peça. Mas antes de praticar sua ação desastrosa, seu amigo íntimo e conselheiro, o Conde de Kent, lhe diz para tomar cuidado: “afeição inferior não te dedica tua terceira filha, tampouco sentirão menos as pessoas cuja voz grave não ressoa no vazio[3]“. Essas linhas contêm uma riqueza de significado e não são os únicos guias para os verdadeiros pensamentos, sentimentos e intenções de uma pessoa.

Essa, certamente, é uma das possíveis razões pelas quais as recentes pesquisas de opinião erraram tanto na eleição americana, embora, naturalmente, possa haver outras razões. Que a linguagem seja necessária para a enunciação das verdades não significa que seja suficiente para a enunciação da verdade. Lear comete exatamente o erro sobre o qual Thomas Hobbes adverte: “Os homens sábios usam as palavras para os seus próprios cálculos, e raciocinam com elas, mas elas são o dinheiro dos tolos.”

Kent avisa Lear, e eu acho que todos nós, se refletirmos sobre o que ele diz, não apenas que as palavras podem enganar, mas que as verdadeiras emoções não são necessariamente proporcionais à extravagância com que são expressas. E embora eu não possa falar pelo Brasil, posso dizer que no meu próprio país essa lição foi totalmente esquecida. Acredita-se que aquele que sente mais profundamente demonstra mais emoção. Não é de surpreender, talvez, neste tipo de corrida armamentista de expressão emocional em que, por exemplo, que aquele que expressar a indignação mais forte é considerado o mais profundamente ligado à justiça. Não sei se esse fenômeno já atingiu o Brasil, mas certamente é muito prevalente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.

Bem, prestar atenção a algumas linhas do que o Conde de Kent diz ao Rei Lear pode nos salvar desse erro perigoso. Uma das coisas extraordinárias sobre Shakespeare – eu diria excepcionalmente extraordinário, mas, é claro, isso seria um crédito inflado, porque não posso reivindicar ler mais do que uma parte infinitesimal da literatura mundial – é que ele é capaz de nos colocar na posição de uma gama enorme de pessoas em situações que nós nunca experimentamos e nunca iremos experimentar.

Uma das coisas que ele pode fazer é nos fazer simpatizar profundamente com personagens que não são totalmente admiráveis. Outro dia, passei por um grande grafite em Paris que dizia: as vítimas nunca são culpadas. Em outras palavras, o mundo humano está dividido moralmente entre vítimas imaculadas e perpetradores cruéis ou vis. E aqueles em qualquer situação em que o mal é cometido são um ou outro. Mas Shakespeare enfraquece essa visão maniqueísta.

Na peça Ricardo II, por exemplo, o Rei Ricardo II é deposto e seu trono é usurpado pelo homem que se torna seu sucessor. Ele é Henry Bolingbroke, que mais tarde se tornaria Henrique IV. Shakespeare não retrata Ricardo II como um homem bom ou sábio, mas, pelo contrário, como um homem bastante fraco, vaidoso, tolo, presunçoso e frívolo. No entanto, a sua injusta deposição do trono traz em seu encalço uma guerra civil que duraria por muitas décadas na Inglaterra.

Mas, do meu ponto de vista presente, o que é interessante é que Shakespeare é capaz de transformar um homem por quem não temos nenhum gosto ou admiração particular em um homem por quem sentimos a maior simpatia. Sentimos, ao final de seus grandes discursos, que sabemos o que é ter caído de uma posição eminente em desgraça e total impotência, embora, evidentemente, a maioria de nós nunca tenha subido tanto e, portanto, não poderá ser derrubado de tão alto.

Um de seus discursos após sua queda começa: “Não me fale ninguém mais em conforto”. Essa linha é significativa em si mesma, pois o que sugere é algo que o homem moderno, ou pelo menos as pessoas na Grã-Bretanha, meus pacientes, são muito relutantes em aceitar, a saber, que há uma dor ferindo tão profundamente que está além do conforto que outros podem dar. Em vez disso, preferimos acreditar que para cada dor existe um procedimento igual de reversão ou um arranjo de palavras que necessariamente irão amenizá-la. E, claro, isso torna as coisas piores, porque quando não existe um procedimento tão confortador a gente fica pior. Este é, naturalmente, um ponto de vista bastante superficial. Algumas dores são profundas demais para serem expressas em palavras, o que não é o mesmo que dizer que o tempo nunca pode curar, ao menos em certa medida.

Aparentemente em contradição com isso, entretanto, está o que o próprio Ricardo II diz imediatamente após nos dizer que sua dor é profunda demais para ser expressa em palavras. Ele então nos diz qual é a sua dor:

Não importa onde esteja. Não me fale/ ninguém mais em conforto, mas em túmulos,/ epitáfios e vermes. Transformemos/ em papel, e sobre o seio/ da terra as nossas mágoas escrevamos/ com olhos inundados. Aprestemos/ testamenteiros, e de testamento/ seja nossa conversa. Não! Cautela!/ Que poderíamos legar? Mais nada,/ senão, à terra, o corpo destronado./ Nossas vidas, o reino, tudo, agora/ pertence a Bolingbroke. Nada resta/ a que chamemos nosso, afora a morte/ e esse punhado de infrutuosa argila/ que a nossos ossos serve de coberta./ Pelo alto céu, no chão nos assentemos/ para contar histórias pesarosas/ sobre a morte de reis: como alguns foram/ depostos, outros mortos em combate,/ outros atormentados pelo espectro/ dos que eles próprios destronado haviam,/ outros envenenados pela esposa,/ outros mortos no sono: assassinados/ todos! É que, no centro da vazia/ coroa que circunda a real cabeça/ tem a Morte sua corte, e, entronizada/ aí, como os jograis, sempre escarnece/ da majestade e os dentes arreganha/ para suas pompas, dando-lhe existência/ fugaz, somente o tempo necessário/ para cena pequena, porque possa/ representar de rei, infundir medo,/ matar apenas com o olhar, inflada/ de ilusório conceito de si mesma,/ como se carne que nos empareda/ na vida fosse de aço inquebrantável./ E após se divertir à saciedade,/ com um pequeno alfinete ela se adianta,/ fura a muralha do castelo e, pronto:/ era uma vez um rei! Ponde os chapéus;/ não zombeis, com solenes reverências,/ do que é só carne e sangue. Despojai-vos/ do respeito, das formas, dos costumes/ tradicionais, dos gestos exteriores, que equivocados todos estivestes/ a meu respeito. Como vós, eu vivo/ também de pão, padeço privações,/ necessito de amigos, sou sensível/ às dores. Se, a tal ponto, eu sou escravo,/ como ousais vir dizer-me que sou rei?

Bem, nesse grande discurso – espero que vocês tenham acompanhado pelo menos um pouco desse trecho, espero que extraiam algo dele, mesmo que inicialmente não tenham seguido ou não tenham entendido totalmente – apreciamos duas grandes lições: a vaidade última do poder e da posição social e a unidade existencial da humanidade, (na medida em que todos temos necessidades em comum e todos estamos destinados a morrer). “como ousais vir dizer-me que sou rei?”; quando, na verdade, sou o mesmo que você. Mas como disse Samuel Johnson, grande escritor e pensador do século XVIII: precisamos mais ser lembrados do que informados para viver bem.

A dificuldade não está em sermos ignorantes desse fato, mas no fato de que encontramos dificuldades em colocar nossos conhecimentos em prática. Para o desespero de um rei que foi deposto, perdeu tudo e está prestes a ser morto é mais conciliador do que deprimente. Ajuda-nos a reconciliarmo-nos com a nossa própria situação existencial e a não supormos que haja uma solução perfeita para as limitações da vida, porque essas limitações são permanentes.

Em outra peça de Shakespeare, “O Mercador de Veneza”, há também um discurso que invoca a unidade existencial da humanidade, que Shakespeare coloca na boca de Shylock. Shakespeare não pode ter conhecido muitos judeus, visto que eles eram poucos na Inglaterra de sua época, embora seja possível que ele tenha conhecido alguns se tiver viajado. Com efeito, um dos passatempos acadêmicos mais prazerosos e inúteis é a especulação sobre a vida de Shakespeare. É delicioso precisamente porque permanece inconclusivo, não importa quanto aprendizado seja gasto.

Não obstante, Shakespeare intuiu brilhantemente, a partir de dentro, o que é estar sujeito ao preconceito cego e ao ódio. De seu inimigo Antônio, Shylock diz:

Ele me humilhou, impediu-me de ganhar meio milhão, riu de meus prejuízos, zombou de meus lucros, escarneceu de minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos se arrefecessem, encorajou meus inimigos. E tudo, por quê? Porque eu sou judeu.

Em seguida, Shylock profere as palavras que o crítico John Gross, muito acertadamente, em minha opinião, afirma não perderem seu poder, mesmo depois de terem sido repetidas cem vezes:

Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo o inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos derdes veneno, não morremos?

Além da eloquência dessas palavras, o grande diferencial de Shakespeare é que ele as coloca na boca de um personagem que não é totalmente admirável ou simpático em si mesmo. Em outras palavras, o argumento se basta e não depende das qualidades do homem que o enuncia.

Mais de quatro séculos depois, nos Estados Unidos, um bandido violento chamado George Floyd foi, na realidade, representado como um anjo, porque ele foi injustamente morto por um policial. Uma compreensão mais sofisticada a partir de Shakespeare é de que a injustiça do assassinato de George Floyd nada tem a ver com sua qualidade moral como pessoa, assim como o apelo de Shylock à unidade da humanidade nada tem a ver (…)[4]. O fato de ele ser, em aspectos importantes, um personagem desagradável não reduz a força de suas palavras.

Shakespeare nos fornece um exemplo maravilhoso de racionalização no caso de Falstaff. O interessante a respeito de Sir John Falstaff é o fato de o amarmos, ainda que seja difícil pensar em uma única virtude moral que ele possua. Diante de uma batalha, Falstaff justifica sua futura covardia de uma forma que todos conhecemos, se pararmos para pensar a respeito:

Que necessidade tenho eu de ir ao encontro de quem não me chama? Bem, não importa: é a honra que me incita a avançar. Sim, mas, se a honra me levar para o outro mundo, quando eu estiver avançando? E então? Pode a honra encanar uma perna? Não. Ou um braço? Não. Ou suprimir a dor de uma ferida? Não. Nesse caso, a honra não entende de cirurgia? Não. Que é a honra? Uma palavra. Que há nessa palavra, honra? Vento, apenas. Bela apreciação! Quem a possui? O que morreu na quarta-feira. Pode ele senti-la? Não. Ou ouvi-la? Não. Trata-se, então, de algo sensível? Sim, para os mortos. E não poderá ela viver com os vivos? Não. Por quê? Opõe-se a isso a maledicência. Logo, não quero saber dela: a honra não passa de um escudo de porta de casa de defunto. E aqui termina o meu catecismo.

Esse é um trecho simbólico, e por isso provavelmente deve ser difícil para vocês entendê-lo totalmente. Falstaff mostra-se um bom utilitarista, a honra de nada adianta se não gerar boas vantagens e resultados práticos. Para ele, a pessoa honrada provavelmente terminará morta em uma situação de batalha, e nesse caso não obterá nenhum benefício de sua própria honra. A sua boa reputação provavelmente também não deve durar muito, porque as pessoas logo começarão a criticá-la e a negar que ela tenha sido uma boa pessoa.

E isso é de particular relevância hoje, porque no mundo anglo-saxão (não sei se já chegou ao Brasil ou se algum dia irá alcançá-los) estamos ocupados derrubando as estátuas e maculando a reputação dos heróis, porque eles não eram totalmente de acordo com nossa escala de valores atual, que, evidentemente, assumimos restará permanente. Que finalmente obtivemos a verdadeira escala de valores. Para dar apenas um exemplo, um edifício em Edimburgo que recebeu o nome do grande filósofo escocês David Hume foi renomeado por causa da frase racista que ele escreveu, mais ou menos en passant,um quarto de milênio atrás, embora, de maneira geral, ele fosse um grande opositor da escravidão.

Como diz Falstaff, a difamação não sofrerá. Por mais honrado que um homem tente ser ou acredite ser, ele será lembrado como desonroso. E, portanto, é claro, não vale a pena tentar ser honrado em primeiro lugar. Esse é o argumento de Falstaff. Ao mesmo tempo, sabemos perfeitamente que Falstaff não está criticando a honra como conceito ou guia de conduta de forma objetiva ou desinteressada. Ao contrário, ele está se tentando se justificar porque sabe que não tem dentro de si o poder de ser honrado.

Certamente, todos nós estamos familiarizados com esse tipo de racionalização. Não damos dinheiro a um mendigo na rua, por exemplo, porque dar algo a ele não é uma resposta à pobreza, ou porque o mendigo vai desperdiçar o dinheiro com bebida ou droga, ou o que for. Portanto, essencialmente, não damos o dinheiro porque realmente não queremos. Falstaff se engana com seu próprio raciocínio? Bem, sim e não. Ele sabe que se você é um homem honrado, sendo a honra uma virtude, ele não precisaria de seu catecismo para provar que a honra não tem valor.

A crítica do século XVIII a respeito de Shakespeare, feita por um advogado chamado Maurice Morgan, que escreveu um livro intitulado Essay on the Dramatic Character of Sir John Falstaff, no qual ele afirmava que, ao contrário da opinião geral, Falstaff não era um covarde, e que, em sua diatribe contra a honra, ele foi justificado e falava a verdade. Curiosamente, isso agora está sendo ensinado nas escolas, e o fato óbvio de que a diatribe de Falstaff é uma racionalização, em vez de um argumento honesto, é completamente negligenciado.

A propósito, Shakespeare dedica outra peça, a tragédia “Coriolanus”, para demonstrar o contrário, os perigos de um apego excessivo ao conceito de honra. Em outras palavras, que uma virtude levada longe demais se torna um vício. E essa também não parece ser uma mensagem muito popular no momento.

Vou terminar com um aspecto metapsicológico em Hamlet. O príncipe da Dinamarca é uma figura vacilante. Sua tendência de ver todos os lados de uma questão inibe sua ação e, no final, leva a um resultado muito pior do que se ele tivesse sido impulsivo. Seu pai foi morto por seu irmão Cláudio, que então se casou com a mãe de Hamlet e usurpou o trono que por direito deveria ter sido de Hamlet após a morte de seu pai. O rei Cláudio usurpador está preocupado com o comportamento estranho de Hamlet, e tem boas razões para isso, já que Hamlet se opõe drasticamente a ele.

Claúdio, portanto, envia a Hamlet seu amigo de infância Guildenstern, para descobrir o que está acontecendo com ele e o que está fazendo com que ele se comporte de forma tão estranha. Ao tentar descobrir, Guildenstern alega ser motivado pela amizade com Hamlet. Mas Hamlet deduz e é astuto o suficiente para saber que Guildenstern é, na verdade, um espião do rei Cláudio. Disso segue uma troca memorável entre Hamlet e Guildenstern. Hamlet estende um instrumento musical, uma flauta, uma espécie de flauta doce para Guildenstern e pede que ele toque nele. Guildenstern diz que não pode tocar e repete várias vezes, Hamlet insiste e ele afirma que não sabe, não sabe como tocar. Ao que Hamlet diz:

Ora vede que coisa desprezível fazeis de mim. Pretendíeis que eu fosse um instrumento em que poderíeis tocar à vontade, por presumirdes que conhecíeis minhas chaves. Tínheis a intenção de penetrar meu coração do meu segredo[5], para experimentar toda a escala dos meus sentimentos da nota mais grave à mais aguda. No entanto, apesar de conter este instrumento bastante música e de ser dotado de excelente voz, não conseguis fazê-lo falar. Com a breca! Imaginais, então, que eu sou mais fácil de tocar do que essa flauta? Dai-me o nome do instrumento que quiserdes; conquanto voz seja fácil escalavrar-me, jamais me fareis produzir som.

E aqui voltamos ao mistério essencial do homem e à impossibilidade de o homem alcançar uma compreensão plena de si mesmo ou dos outros. Em nenhum ponto da peça Hamlet afirma compreender a si mesmo, embora seja muito mais reflexivo do que a grande maioria da humanidade. Ele pensa em si mesmo muito mais do que a maioria das pessoas.

Essa falta de compreensão, no entanto, tem um corolário feliz, a saber, que ninguém mais pode entendê-lo e, portanto, ele nunca será totalmente manipulável por ninguém. A plena compreensão de nós mesmos significaria uma capacidade infinita de manipular os outros, o que seria terrível. Fico feliz em dizer, entretanto, que acho que nunca chegaremos a esse ponto e duvido que estejamos mais perto disso do que Shakespeare, que igualmente negou que isso fosse possível. E assim, senhoras e senhores, termino com uma nota otimista de que nunca compreenderemos totalmente o mistério de nossa própria existência.

Obrigado!

[1] Tradução de Thereza Christina Motta.

[2] No original: When my love swears that she is made of truth. I do believe her, though I know she lies.

[3] Este e os demais trechos das peças contidos na tradução desta Lecture foram traduzidos por Carlos Alberto Nunes.

[4] A partir deste trecho, o vídeo sofre pequenas interrupções de conexão, o que não permite distinguir a conclusão desta frase, e com pouco efeito nos parágrafos seguintes.

[5] Dalrymple repete duas vezes este trecho, para enfatizá-lo. No original: You would block out the heart of my mystery.