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Jonathan Haidt e a semana 6×1

O sucesso do livro do psicólogo norte-americano Jonathan Haidt é medido não apenas pelas vendas que fizeram de A Geração Ansiosa (2024) um best seller, mas também pelo impacto sobre a dita opinião pública e sobre os tomadores de decisão. De ancinho e tochas nas mãos, fervorosos interventores buscaram retirar do mundo o mal encarnado em tablets, smartphones e outras bugigangas tecnológicas responsáveis pelo desvirtuamento da assim chamada Geração Z. Lido ao modo Viúva Porcina, aquela que foi sem nunca ter sido, A Geração Ansiosa é um curioso caso de uma obra-guia para o engajamento das vontades populares e para decisões políticas deslindadas de sua leitura. O sempre atual Nelson Rodrigues dizia o mesmo sobre o conhecimento “atmosférico” que as esquerdas brasileiras tinham dos seus autores de referência. Na corrente da necessidade de se ter posição e opinião, importa pouco a crítica epistemológica; interessam, sim, os efeitos sócio-políticos fundados sobre a base de uma leitura que nunca foi feita, em que a salvação da geração depende do retorno de El-Rey D. Sebastião sob a forma de leis proibitivas às telas e às redes sociais usadas por crianças e adolescentes. Quando a discussão é assim orientada, perde-se de vista aquilo que fora deixado de lado pelo próprio autor, o ponto de partida da sua investigação. No caso, o medo dos pais e a restrição do brincar livre. Dispensada a leitura, a pragmática corre o risco de tornar inútil ou iatrogênica a regra legislativa proibitiva sobre o uso excessivo da tecnologia por crianças e adolescentes. Algo semelhante ao que disseram os entendidos em política e em economia a respeito da PEC da semana 6×1; segundo os críticos, em lugar de uma jornada de trabalho mais humana, teremos inflação e desemprego.   

Na parte final de seu livro, Jonathan Haidt propõe um conjunto de ações a serem implementados por governos, empresas de tecnologias, escolas e famílias para evitar o uso excessivo de telas e redes sociais pelos infantes e levá-los de volta ao chamado brincar livre. Segundo Haidt, estariam o uso precoce e excessivo das redes sociais e o brincar supervisionado na raiz da explosão dos chamados transtornos que acometem as novas gerações, em especial depressão e ansiedade; mas, também seriam esses fatores os responsáveis pela fragilidade mostrada pela chamada Geração Z, aquela que foi atingida em cheio pela congruência histórica que juntou internet na palma da mão com o medo parental que terminou trancafiando as crianças em casa. Mais que estar na raiz desses fenômenos, o autor diz que são as causas.

A interpretação messiânica que saltou das linhas do livro e tem acalentado os corações intervencionistas sugere que a proibição dos usos dos celulares nas escolas trará a esperada redenção às criancinhas. Nenhuma menção ao brincar livre e não supervisionado. Menos ainda qualquer vislumbre de preocupação com a outra causa embutida naquilo que o autor chamou de a Grande Reconfiguração do Brincar: o medo dos pais. Não seria o medo uma das características mais fundamentais da atualidade? Robert Castel (2003), escrevendo sobre o conceito de inseguridade social, diz que insegurança não se opõe à segurança, mas que a insegurança é um componente essencial de uma sociedade que acredita que pode ter segurança plena. Logo, sentir-se inseguro é mais real que sentir-se seguro. Ou, como vendem as escolas em resposta ao que demandam as famílias, “segurança é um pilar”. Na prática, um panóptico digno dos vislumbres de um Jeremy Bentham (1785/2008) é construído, como rede de fios bem fechados, em torno de crianças e adolescentes de tal modo que raramente um jovem possa ter qualquer experiência não vigiada. Sendo o medo constitucional ao modo vivente moderno, líquido como diz Bauman (2008; 2009), que tipo de legislação poderia reassegurar os viventes de modo a fazê-los entregar seus filhos e alunos ao mundo das experiências e das livres descobertas? Teria que ser uma lei divina, ditada diretamente pelo criador, único a quem se pode atribuir a capacidade de alterar uma ordem natural.

No Brasil, no entanto, não é difícil esperar de Deus a intervenção. Descendemos daqueles ibéricos nutridos pelos “anelos do que ele (o rei predestinado) havia de realizar” (AZEVEDO, 2013/1918) quando de seu retorno profetizado em versos, prosas e cantorias.  Em Pernambuco, por volta de 1838, João Antônio e seus asseclas entenderam que para agilizar o retorno de El-Rey uma ajudinha seria necessária sob a forma de sacrifícios humanos. Os acontecimentos da Pedra do Reino são a base do Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (2013), de Ariano Suassuna. Quadernas convictos e militantes encapsulados, não deixaremos nunca que nossos representantes deixem de afixar nalguma lei escrita a manutenção das esperanças ultramarinas que nos fazem ser o que somos. Seria por essa predisposição messiânica escrita em nós, descendentes dos tantos Bandarras[1] que nos precederam, a aceitação de um livro que lhe dispensa a leitura? Semelhante fato presente não estaria na efeméride chamada PEC 6×1? Os que a leram observaram duas curiosidades no texto base: primeira, não se trata da escala 6×1 e sim da semana de 4 dias; segunda, os proponentes da PEC podem ter um coração caridoso, mas não são muito bons em aritmética. Mesmo assim, o que não leu pautou o debate nacional como se efeito de leitura fosse. Não é o mesmo que ocorre nos grupos de Whatsapp em que condôminos expõem as mazelas vividas entre si na esperança de que algum divino síndico faça alguma coisa ou edite alguma lei? Dia desses, ouvi uma historieta dessas. Uma pessoa estacionou sua moto por duas vezes na vaga errada, em frente ao carro de seu vizinho. O incomodado buscou conversar com o seu desorientado vizinho? Não, expos o seu drama no grupo carregando no texto aquele tom apocalíptico à espera da síndica intervenção divina.  

Com tal ancestralidade, não espanta que modernos pais e educadores se mostrem aliviados de que a decisão venha d’algum lugar que não das firmezas das vontades próprias. Matérias de jornal pululam internet afora afirmando a concordância dos pais quanto a legislação proibitiva do uso de celulares nas escolas; os números da adesão vão dos 65% aos 86%, conforme o corte da pesquisa. Uai, não bastariam que todos os X% favoráveis decidissem não enviar as maquininhas nas mochilas das crianças? Por que cargas d’água se faz necessário alguém lhe dizer para fazer aquilo que não lhe é proibido fazer?

Infantes, ação nenhuma é autorizada sem que o Papai Estado delibere; antes de um problema inato à nossa jovem democracia, quem sabe não revelaria nossa imaturidade pessoal, antes que a política?

Trágico, a imaturidade é plantada nas primeiras relações entre o bebê e sua mãe, ou cuidador, como disse Winnicott (2004). Trágico ainda mais porque tende a repetição: se os adultos não “bancam” suas opiniões frente a seus filhos, o que esperar, em termos maturacionais, das gerações cujos pais “pisam em ovos” e que serão (quando já não são) os pais das próximas gerações?  Sim, mais que aos pais, o medo configura a vida dos mortais na modernidade. Medo de fazer e medo de não fazer. Medo de deixar que os filhos usem seus celulares e medo de lhes proibir o uso. Medo de ser reacionário e medo de ser progressista. No fim, medo de não corresponder ao ideal moderno de ser livre e autônomo, cuja prática se faz na busca por gadgets que contornem os obstáculos: se preciso me realizar profissionalmente (“bater” meta) e familiarmente (ter filho; muitas vezes, outra meta a ser “batida”), a solução de compromisso ideal é a escola (não exatamente a educação, mas o serviço) em tempo integral, quem sabe 24 horas; quem sabe conectada por um tubo, às maternidades, de modo a que o bebê, ao nascer, venha abrir os seus pulmões em choro no colo da berçarista; desde que um choro adequado; afinal, há outros bebês dormindo em profundo e adequado silêncio. Ou, quem sabe, a intervenção impessoal do Estado salvando o indivíduo justo daquela virtude visada pela modernidade, a escolha livre e racional. Acreditando termos sido paridos livres e racionais por uma modernidade que se esforçou em romper com os grilhões de um passado dito opressor (FUREDI, 2021), a busca pela mão pesada do Estado é a escolha envergonhada, aquela que o filósofo da condenação à liberdade julgou sepultada junto com outra ilusão, a da abolição do erro. Quem não pode errar, não pode brincar[2]: o futuro não perdoa. Se J. Haidt diz ser fundamental para o desenvolvimento infantil o brincar livre, sujeito aos riscos e pouco supervisionado, convém perguntar qual brincar livre pode acontecer quando o medo é, atualmente, o principal conselheiro ético. E o que esperar de uma lei que se escusa investigar justo o medo – ponto de partida do livro que supostamente fundamenta a discussão – senão que ela funcione como deus ex machina, livrando-nos de pagar, ao menos por agora, a conta dessa tal liberdade?

Referências

AZEVEDO, J. L. A Evolução do Sebastianismo. Lisboa: Livraria Clássica, 1918

BAUMAN, Z. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

___________. Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

BENTHAM, J. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

CASTEL, R. La Inseguridad Social ¿Qué és estar protegido? Buenos Aires: Manantial, 2004.

FUREDI, Frank. 100 Years of Identity Crisis – Culture war over socialization. Berlim/Boston: De Gruyter, 2021.

HAIDT, J. A Geração Ansiosa: Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais. São Paulo: Cia das Letras, 2024.

SARTRE. J-P. O Que é a Subjetividade? Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

SUASSUNA, A. O Romance d’APedra do Reino e o Principe do Sangue do Vai-e-Volta. Rio de Janeiro: José Olympio: 2013.

WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. São Paulo: UBU, 2019.

_________________. Natureza Humana. São Paulo: UBU, 2024.

Imprensa

SALES P. PEC do fim da escala 6×1: veja a íntegra da proposta que mobiliza as redes. Uol. Congresso em Foco. 11 de novembro de 2024. Disponível em: PEC do fim da escala 6×1: veja a íntegra da proposta que mobiliza as redes – Congresso em Foco. Acesso em 19/11/2024.

FREITAS, R. Maioria dos brasileiros apoia restrição ao uso de celulares nas escolas, aponta pesquisa. Revista Nova Exame, São Paulo, 11 de novembro de 2024. Disponível em: Maioria dos brasileiros apoia restrição ao uso de celulares nas escolas, aponta pesquisa | Exame. Acesso em 19/11/2024.

[1] Gonçalo Annes, O Bandarra, sapateiro de Trancoso, Portugal, escreveu as Trovas, consideradas o Evangelho do sebastianismo.

[2] Para Winnicott, o Brincar permite alcançar a realidade, de si e do outro; permite contribuir culturalmente e se enriquecer com as experiências culturais. O Brincar se expressa na infância como o conhecido brincar (letra “b’’ minúscula) da criança; no adulto, se expressa no trabalho, na arte, na pesquisa, no esporte, no encontro, etc, nas tantas experiências que diferenciam o humano dos outros seres da natureza. Em suma, na ideia de Brincar está embutida a ideia de maturidade.  

Imagem gerada por IA

Sobre o autor

Ricardo Rodolfo de Rezende Prado

Psicanalista e consultor em escolas da rede particular de ensino. Graduado em Filosofia pela PUC-Minas, com formação e especialização em Psicanálise (Cinpp-Vale/Univap). Pesquisador do Grupo A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.

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