Bolsonarismo: o novo fascismo brasileiro

É preciso enxergar o fascismo além do “Fascista!”

Umberto Eco

Nas últimas semanas, parte do debate público sobre a política brasileira gravitou em torno de uma palavra que tem se cotidianizado no país: fascismo. Essa cotidianização do termo já é, em si, um fato político relevante. Ainda que inicialmente operando como uma categoria de acusação do jogo político, essa própria capacidade de circulação do termo já é um bom início de descrição do espírito do nosso tempo. Recupero aqui a noção romântica de espírito de um tempo [zeitgeist] porque me parece um ponto de partida fundamental para a despersonalização desse debate, nos permitindo fazer a passagem de “fascista!” para “fascismo”. E a consequência mais óbvia dessa passagem é a de abrir mão, mesmo que provisoriamente, da poderosa arma política de endereçar a acusação “fascista!” e ainda ter que lidar com o caráter difuso do fascismo, qualidade pouco interessante em uma disputa. Não é porque seja difuso, no entanto, que o fascismo seja inapreensível. Reconhecer essa característica impõe a quem se debruça sobre o fenômeno a tomá-la como dado.

Partindo da natureza difusa do fascismo e tentando transformá-la em um valor analítico,  dois movimentos são necessários. O primeiro é o de reconhecer que por mais que o termo remeta a casos históricos fundantes, cuja caracterização está diretamente associada a atores específicos, implicados em conjunturas histórico-sociais particulares, ele remete a um repertório político e simbólico que ultrapassa seu evento fundador. É isso o que faz com que o filósofo italiano Umberto Eco proponha a ideia de “fascismo eterno”. O segundo movimento necessário para transformar a natureza difusa do fascismo em um valor analítico para compreender o que indica essa noção é o de reconhecer que o fascismo não está limitado por uma substância ideológica estável, fechada e substantiva, mas sim que ele opera numa matriz metonímica, que transforma e ao mesmo tempo expande seu significado original. Sobre esse segundo movimento, também podemos nos valer da imagem que Wittgenstein emprega para descrever as semelhanças de família.[1]

1    >    abc
2    >    bcd
3    >    cde
4    >    def

Imaginemos uma série de quatro grupos políticos (1-4), sendo cada um deles identificados com três de cinco características possíveis (a-f). Notemos que o grupo 2 é semelhante ao 1 na medida em que têm dois aspectos em comum. Assim como o 3 é semelhante ao 2, e o 4 é semelhante ao 3 pela mesma razão. O grupo 3 também é semelhante ao 1, já que compartilham de uma mesma característica. O caso mais curioso é dado pelo 4, evidentemente semelhante ao 3 e ao 2, mas sem nenhuma característica em comum com o 1. No entanto, a série cria identidade em meio à dispersão, de modo que a familiaridade entre 4 e 1 está garantida na medida em que é autenticada pelas mediações de 2 e 3.

Em uma conferência proferida em abril de 1995, Umberto Eco fez uso dessa formulação de Wittgenstein sobre semelhanças de família para explicitar o que chamei de matriz metonímica do fascismo. É porque opera nessa matriz que, acompanhando Eco, podemos provocar: tirem do fascismo o imperialismo e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e teremos o fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra Pound. Acrescentem o culto da mitologia celta e o misticismo do Graal (completamente estranhos ao fascismo original) e teremos um dos mais respeitados gurus fascistas, Julius Evola. Eventualmente até a astrologia pode compor um fascismo particular.

Ainda que argumente nesse sentido, o filósofo italiano identifica um conjunto de 14 características recorrentes nas variadas versões históricas do fascismo. Não necessariamente elas são integralmente reunidas em um único sistema, muitas se contradizem e também são características de outras formas de autoritarismo. Ainda assim, o arranjo de algumas dessas características já é suficiente para compor uma nebulosa fascista.

Reproduzo a síntese de 9 das 14 características arquetípicas do fascismo eterno descrito por Eco, reforço, em um texto escrito em 1995.[2]

1. O aparente irracionalismo do fascismo é também um culto da ação pela ação. Considera-se a ação bela em si mesma, autêntica e verdadeira. Ao contrário do pensamento crítico, cujo exercício é sempre uma ameaça à tradição.

2. O fascismo eterno provém da frustração individual ou social. Isso explica por que uma característica dos fascismos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos subalternos.

3. Aos que não se reconhecem em nenhum grupo identitário, o fascismo oferece um privilégio extensível a todos: a nação. O nacionalismo que surge daí oferece um elemento identitário englobante aos que não se reconhecem nas identidades sociais disponíveis. A identidade nacional também instaura um horizonte repleto de inimigos, estrangeiros sempre prontos a saquear a nação. A obsessão conspiratória e a xenofobia do fascismo encontram nesses termos uma base forte.

4. No fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para luta”. Logo, toda forma de pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é ruim porque a vida é uma guerra permanente. Essa característica também dá origem a uma contradição difícil de ser resolvida: quando um líder fascista alcança seu objetivo e vence sua luta, logo precisa encontrar uma nova guerra, já que a paz é a antítese de seu próprio princípio de ação.

5. O desacordo é, antes de tudo, um sinal de diversidade. O fascismo eterno cresce e apela sempre para o medo da diferença. Nele, diversidade, diferença e variação são ameaças.

6. Há um traço elitista no fascismo eterno, mas trata-se de um elitismo das massas, um elitismo popular que é anti-establishment, mas preza, ao mesmo tempo, pela hierarquia. A força da liderança está em uma cadeia de desprezo. O líder subordinado despreza seus subalternos e, por sua vez, cada um deles despreza os seus subordinados.

7. Como tanto a guerra permanente quanto o heroísmo de guerra são jogos de difíceis manutenção, o fascismo eterno transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem de seu desdém pelas mulheres e condenação intolerante a comportamentos sexuais de desvio heteronormativo. Quando o tema do sexo fica complexo demais, o fascismo apela para as armas, o seu substituto fálico. Elas se transformam no ícone de demonstração permanente da vontade de poder.

8. O fascismo cria e fala sua própria língua, institui um vocabulário próprio, organiza a gramática das experiências, dos ataques aos inimigos e de sua defesa. Devemos, porém, estar prontos a identificar outras formas dessa linguagem, mesmo quando ela toma a forma inocente de um talk show popular.

Tomando a liberdade que permite um ensaio como este, termino a paráfrase das características do fascismo eterno descritas por Umberto Eco, citando-o quase literalmente na última delas.

9. O fascismo eterno baseia-se em um populismo qualitativo. Em uma democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista das decisões da maioria. Nesse modelo, aos indivíduos enquanto indivíduos não cabe nenhum direito, e o “povo” é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime a vontade comum, cujo intérprete é seu líder. Tendo perdido seu poder de delegar, os cidadãos não agem individualmente, são chamados apenas para assumir o papel de povo. O povo torna-se, assim, uma espécie de ficção teatral. Desenha-se em nosso futuro um populismo qualitativo de TV ou internet no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. Em virtude de seu populismo qualitativo, o fascismo eterno deve se opor aos pútridos parlamentares e cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do parlamento por não representar mais a voz do povo, pode-se sentir o cheiro do fascismo eterno.

Essas características nos convocam a pensar sobre a nebulosa fascista que paira sobre nós, tão difusa quanto persistente. Diante dela, passar do jogo acusatório que aponta “fascista!” e ir para a identificação do fascismo eterno parece ser um passo fundamental. Afinal, nessa disputa o problema não é o jogador, mas o jogo que estamos tendo que jogar.[3]

Notas

[1] No caso de Wittgenstein, a descrição serviu para explicar a noção de jogo. Como deixarei explícito a seguir, essa mesma imagem foi utilizada por Umberto Eco em seu texto “O Fascismo eterno”. No próximo parágrafo, parafraseio a leitura de Eco sobre Wittgenstein para explicar semelhanças de família dos jogos.

[2] Embora parafraseie seu conteúdo, tomo a liberdade de alterar a ordem das características descritas no texto original.

[3] Agradeço aos comentários de Joanildo Burity para elaboração deste texto. Assumo, no entanto, a responsabilidade por todas opiniões aqui expressas.

Sobre o autor

Rodrigo Toniol

Graduado em ciências sociais, mestre e doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Realizou parte de seu doutoramento no programa de antropologia da University of California San Diego (UCSD). Foi pesquisador visitante no Global Health Institute da UCSD, nos Estados Unidos, no Ciesas/Guadalajara, no México e na Universidade de Utrecht, na Holanda. Realizou estudos de pós-doutorado no departamento de filosofia e estudos de religião da Utrecht University, Holanda. Atualmente é professor no departamento de antropologia e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp.