Resumo
O presente artigo se propõe a analisar as distintas noções entre arte sacra e arte religiosa a partir do arcabouço teórico do artista sacro contemporâneo Cláudio Pastro, especificamente através de sua obra realizada na Basílica Nacional de Aparecida entre os anos 2000 e 2017. Para esse fim, portanto, este artigo toma como premissa a concepção sobre as funções das imagens cristãs associada ao conceito de imagem-objeto do teórico medievalista Jérôme Baschet.
Palavras-chave: Claudio Pastro. Imagem. Arte Sacra. Arte Religiosa. Liturgia.
Levantar a questão da Arte Sacra corresponde a se perguntar se essa arte existe, hoje. Talvez exista uma arte religiosa, mas não uma arte sagrada. Arte Sacra e Religiosa não são meras noções, mas possuem diferenças radicais.[1]
O trecho inicial corresponde às palavras com as quais Cláudio Pastro introduz seu texto “Arte Sacra (Arte de Culto) e Arte Religiosa (Arte de Devoção) ”, em seu livro: A arte no cristianismo, publicado pela Editora Paulus, em 2010, obra que, mesmo após seu falecimento em 2016, é considerada por especialistas de grande relevância para a arte cristã na contemporaneidade.
Cláudio Pastro se autodenominava um artista sacro, e não um artista religioso, pós Concílio Vaticano II. E, assim como em sua publicação de 2010, as diferentes noções entre arte sacra e arte religiosa foram pautas frequentemente reiteradas pelo artista em seus diversos livros publicados.
Assim, para compreender melhor o modo como Pastro posicionava a si mesmo e a sua arte, é preciso analisar o cenário no qual o artista estava inserido, e a sua relação com as demandas de uma renovação litúrgica promovida pela Igreja no início do século XX.
Com a realização do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), a Igreja buscou atuar de modo a atender as demandas por mudanças iniciadas nas décadas anteriores. O “sínodo”, dessa forma, propunha uma renovação litúrgica em todos os campos da religião, consolidando-a através de documentos conciliares como o decreto Perfectae Caritatis, de 28 de outubro de 1965, promulgado pelo Papa Paulo VI, pelo qual se estabeleceu que:
A conveniente renovação da vida religiosa compreende não só um contínuo regresso às fontes de toda a vida cristã e à genuína inspiração dos Institutos, mas também a sua adaptação às novas condições dos tempos[2].
Esse “regresso às fontes” teria sido, então, o tema principal do Concílio, que visava promover uma retomada da Igreja aos seguintes princípios:
Cristo voltando a tornar-se presença e centro de toda Igreja.
A liturgia (…) como conceito e realidade, o próprio Mistério Pascal do Cristo perpetuado na ação da Igreja. Os leigos cristãos (…) consciência de ser o povo de Deus, o Corpo de Cristo vivo no mundo. Liturgicamente, a assembleia cristã é convocada pelo próprio Cristo para celebrá-lo e quem preside essa ação eclesial é o Cristo[3].
Tal pensamento ganhou força no início do século XX, com o chamado Movimento Litúrgico, dado que, nos primeiros séculos da Igreja, o cristianismo baseava-se primordialmente na celebração do culto eucarístico e na respectiva participação dos fiéis. Contudo, com o decorrer do tempo, a religiosidade cristã passou a relacionar-se mais efetivamente com as práticas de devoções privadas[4], as quais trariam, por consequência, uma alteração significativa na relação dos fiéis com as imagens.
Tais mudanças começariam a se fazer sentir em torno do ano mil, mas é a partir do século XIII que é possível observar um estímulo mais intenso e efetivo, com o advento das novas ordens mendicantes, em especial com dominicanos e franciscanos que, desde sua fundação, no Duecento, buscavam a conversão dos leigos através de seus sermões[5].
Os frades exortavam o povo em uma linguagem simples e facilmente compreendida, apoiados pelo uso de imagens que auxiliavam o fiel nas suas meditações. Esse processo estimulou uma prática cada vez maior das devoções privadas e, portanto, nos séculos posteriores, painéis pintados com imagens de santos, para orações particulares, ganharam progressivamente um maior protagonismo.
Esse protagonismo também se deve à expansão do ensino em todos os níveis – à fundação das universidades, em diversas cidades Europeias, a partir do final século XII, que contribuiu para a participação do homem comum nos assuntos da religião e à fundação de diversas irmandades e confrarias religiosas conduzidas por fiéis leigos.
Logo, a chegada das ordens religiosas, especialmente durante os tempos do Brasil Colônia, trouxe consigo uma religiosidade baseada nas devoções privadas, fomentando a forte participação popular nas igrejas e passando a ser manifestada em procissões, romarias, promessas e festas dos santos que, por consequência, deram um caráter peculiar à prática religiosa brasileira.
O controle da representação das “imagens sagradas” assumiu, com o Concílio de Trento[6], realizado entre 1545 a 1563, um especial acento ideológico e programático que, mesmo tendo ocorrido em meados do século XVI, teve largos efeitos que repercutiriam nos séculos seguintes. Logo, ainda no início do século XX, a Igreja Católica retomaria uma série de discussões sobre arte, teologia e liturgia, trazendo à tona uma disseminação de iniciativas tendo por objetivo recuperar a importância do culto sobrepujada pelas devoções privadas.
Buscava-se, desse modo, um retorno à liturgia, tradição e arte cristãs partilhadas pela Igreja cristã dos primeiros séculos. Tal pensamento teve respaldo com a carta encíclica sobre a sagrada liturgia do Papa Pio XII, Mediator Dei, datada de 20 de novembro de 1947, considerada a Carta Magna da renovação litúrgica[7]:
(…) é nossa obrigação repreender a piedade não bem formada daqueles que, nas Igrejas e em seus próprios altares, propõem à veneração, sem justo motivo, múltiplos simulacros e efígies; daqueles que expõem relíquias não reconhecidas pela legítima autoridade; daqueles, enfim, que insistem em coisas particulares e de pouca importância, enquanto descuram as principais e necessárias, e, assim, tornam ridícula a religião, e envilecem a gravidade do culto[8].
É nesse contexto que Cláudio Pastro procurou atuar, indo ao encontro dos anseios dessa nova liturgia e desenvolvendo, em sua obra, uma linguagem que pudesse ser pura e direta, capaz de promover o culto, a liturgia e aproximar o fiel do Mistério Pascal.
Pastro tinha como intenção promover uma mistagogia: termo originário do grego myo e ago – conduzir – que etimologicamente significa a ação de introduzir uma pessoa no conhecimento de uma verdade oculta e no rito que a significa[9] – o que explica o seu esforço de marcar a distinção entre arte sacra e arte religiosa. Nesse sentido, apoiado pela perspectiva teológica de Romano Guardini (1885-1968)[10], apontava que:
A arte sacra é um prolongamento do Mistério da Encarnação, na descida do divino no humano. A arte tem valor sacramental e é simbólica, isto é, sinal de união. A arte de culto indica A Presença, é a imagem do invisível, leva à contemplação.
A arte religiosa não tem nada com o ser do Mistério Pascal da celebração litúrgica. É a interioridade do artista, da sua vida pessoal e suas reflexões de fé, lutas e buscas internas. O artista não estará preocupado com a essência da fé, da vida da igreja e seus mistérios. Essas imagens podem estar numa igreja, em uma casa ou associação, mas são dispensáveis ao Mistério da Salvação[11].
Assim, segundo Pastro, “a arte sacra, de culto, litúrgica são sinônimos e objetivam a celebração cristã”, enquanto “a arte religiosa, de devoção são sinônimos e subjetivas pois brotam da interioridade do indivíduo e sua esfera não vai além do sentimentalismo”[12].
Tais noções encontram embasamento teórico oportuno em Jérôme Baschet, visto que o autor, ao tratar das imagens cristãs como imagens-objeto, afirma que elas assumem funções nos usos, nas manipulações e nos ritos – em sua maioria de caráter litúrgico, o qual Cláudio Pastro tanto prezou em sua obra.
Além disso, Baschet também coloca que essas imagens integram um conjunto mais amplo que engloba todos os elementos do edifício religioso, definindo esse espaço como lieu d’images (lugar de imagens): “um objeto, total, complexo, no qual as imagens se ligam entre si, se fundem com o lugar, e participam em sua função que é celebrar o culto de Deus e dos santos”[13].
Com base nessa relação ontológica, que se impõe entre as imagens e o espaço sagrado, outra ideia surge: o templo como obra divina que, por consequência, irá encontrar-se muito perto de Deus, no céu. Desse modo, as igrejas gozam de uma existência transcendente, espiritual e incorruptível, que lhe conferem um status sagrado em contraposição ao espaço externo, profano.
Mircea Eliade denominou o templo de uma imago mundi (imagem do mundo), porque “o mundo, como obra de Deus, é sagrado”[14]. Sua estrutura cosmológica lhe permite, assim, uma nova valorização religiosa, a de lugar santo por excelência. É graças ao templo que o mundo é ressantificado e encontra sua aliança com o divino, uma vez que o representa e o contém ao mesmo tempo.
Cláudio Pastro, no seu projeto de ambientação interna do Santuário da Basílica Nacional de Aparecida, retomou e prolongou esse simbolismo, no qual a igreja é concebida como imitação da Jerusalém Celeste (Figura 1), relacionando-a ao Paraíso, sendo reprodução aproximativa do modelo transcendente, já que a cidade era considerada pelos hebreus como a terra prometida por Deus.
Figura 1 – Interior da Basílica Nacional de Aparecida. Santuário Nacional de Aparecida, São Paulo, ca. 2002-2017 (fonte: CDM – Centro de documentação e Memória da Basílica de Aparecida).
Desse modo, sua conformação metafórica buscou refletir, no templo de Aparecida, a imagem terrena da Jerusalém Celeste. O interior da igreja é o Universo, a porta principal é a entrada para o Paraíso, as quatro partes do seu interior simbolizam as quatro direções do mundo e no altar encontra-se o centro desse universo.
Os ciclos narrativos azulejares, os quais o artista denominou de Biblia Pauperum (Figura 2), complementam esse conjunto pictórico, convidando o fiel não somente à contemplação, mas também à meditação dos Mistérios de Cristo nas passagens bíblicas reproduzidas.
Figura 2 – Ciclos narrativos azulejares sobre as arcadas do templo de Aparecida. Passagens da Infância de Jesus. Nave Sul, Santuário de Aparecida, ca. 2000-2017 (fonte: PASTRO, Cláudio. Santuário de Aparecida. São Paulo, 2017, p. 34)
Logo, assumindo a função de instrução, os ciclos narrativos azulejares de Cláudio Pastro, na Basílica de Aparecida, remetem às imagens cristãs do Medievo, pois, estando no centro da sociedade do mundo medieval, a imagem cristã buscou desempenhar papéis múltiplos, entre esses o de instrução, para serem legitimadas durante os diversos períodos iconoclastas.
A principal colaboração para a homologação das imagens no Ocidente se deu a partir de uma carta enviada pelo Papa Gregório Magno (590-604) ao Bispo Serenus de Marselha, datada do ano de 600:
Foi-nos comunicado que tu, ardendo em zelo irreflectivo, mandaste destruir imagens de santos, que esta aparente desculpa de que as não deviam adorar. Certamente, impedindo que se adorassem as imagens, merecerias o nosso inteiro aplauso; mas que as destruísses, nisso és digno de repreensão. Diz-nos, irmão: onde é que alguma vez se ouviu que um sacerdote tenha praticado tal acto?[15].
Nessa carta o Papa, além de recriminar a destruição de imagens, também justificava o seu uso, afirmando que elas preenchiam uma tripla função: lembrar a história sagrada, suscitar o arrependimento dos pecadores e instruir os iletrados que, ao contrário dos clérigos, não tinham acesso direto às Escrituras. As imagens passaram, assim, a ser consideradas a “Bíblia dos iletrados” (illitterati) (Figura 3).
Figura 3 – Cenas da vida de Jesus. Lado sul da Igreja de St. Georg Oberzell, Reicheneau, Alemanha, século X
O discurso de Gregório tornou-se uma das definições consagradas para a adoção das imagens cristãs, e a referência mais importante no Ocidente na defesa de sua presença nas igrejas, sendo continuamente retomada ao longo dos séculos com poucas variações[16].
Assim, outros teóricos também buscaram discutir o papel da arte na religião cristã, destacando a função de memória da imagem cristã, como instrumento de reforço do ensinamento prévio (memento).
Honório de Autun (1080-1154), ao reformular a sentença de Gregório Magno, por exemplo, escreveu que as imagens nas igrejas funcionariam como laicorum literatura (literatura dos leigos), substituindo illiterati por laici.
Assim, com o decorrer dos séculos, a legitimidade das imagens e sua função dentro da religião cristã perpassaria, portanto, pelo cumprimento de seu papel não só como objeto de culto, mediadora entre o homem e o divino, mas servindo também como instrumento de memória na instrução dos fiéis.
Do mesmo modo, as imagens e as cenas representadas nos ciclos narrativos de Cláudio Pastro, na Basílica de Aparecida, se fazem presentes no rito, através da celebração da Palavra e do Mistério Pascal de Cristo, favorecendo a lembrança do acontecimento, reavivando a memória e dando continuidade aos eventos evocados.
As imagens representadas nos painéis se relacionam com o Ano Litúrgico, visto que o artista utilizou as cores do Calendário Litúrgico (Figura 4) para compor as cenas. Assim, as narrativas expressas nos painéis se ligam ao culto, refazendo-se no tempo presente, manifestando o próprio Cristo e sua presença na história.
No calendário do Ano Litúrgico, cada um dos tempos celebrados está associado a uma das cores oficiais[17]. Essas cores são utilizadas durante as celebrações, nos paramentos dos clérigos e nas alfaias litúgicas, de acordo com o tempo vigente, e derivam-se das cores tradicionais usadas pelos sacerdotes judeus no tempo de Cristo.
Figura 4 – Calendário Litúrgico da Igreja Católica Apostólica Romana
(fonte: https://paroquiafloresdacunha.wordpress.com/formacao/ano-liturgico/ – acesso em: 01/07/2019)
O dourado também retorna frequentemente nas cenas, dando destaque a determinados elementos do cenário ou contemplado em faixas nos painéis. Nos paineis do Santuário, Cláudio Pastro adotou o fundo branco para dar corpo às figuras retradas nos painéis, destacando, com uma auréola dourada, as respectivas figuras santas e o próprio Cristo.
Os tons de lilás predominantes nas passagens da “Paixão e Morte de Jesus”, localizados na Nave Oeste, remetem à cor litúrgica roxa, representando a celebração da penitência do tempo da Quaresma, quando é rememorado o Cristo entregue pela expiação dos pecados da humanidade.
Os tons de verde marcam as passagens da “Ressurreição do Senhor”, na Nave Leste, de modo à relembrar a esperança a ser depositada em Cristo ressuscitado para que, nele, o fiel também possa alcançar o reino dos céus como pregam as Sagradas Escrituras: “Porquanto, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, da mesma maneira devemos crer que Deus, por intermédio de Jesus, trará juntamente com Ele os que nele morreram”[18].
A cor vermelha foi utilizada em detalhes dos painéis relacionadas à “Ressurreição de Cristo”, nos vitrais do templo, assim como em outros elementos dos demais painéis.
A cor azul, que é a cor do céu, e simboliza, por isso, as realidades divinas e a santidade, é tradicionalmente associada à Virgem Maria, “rainha do céu”. Logo, embora não seja considerada uma cor oficial pela liturgia, o azul é comumente usado pela Igreja, nas ocasiões especiais, em locais que celebram as festas da Virgem Maria, como no caso de Aparecida.
A cor foi utilizada por Pastro para retratar as passagens relacionadas à “Infância de Jesus”, localizadas na Nave Sul, dedicada à Virgem, como também nos painéis da “Vida Pública de Jesus”, na Nave Norte, igualmente em uma alusão à figura de Maria, que acompanhou seu filho desde o seu nascimento e durante toda a sua caminhada até Jerusalém.
Para que o fiel possa contemplar os ciclos no interior do templo, ele necessariamente precisa direcionar o olhar para cima, “para o céu”, e percorrer todo o trajeto das narrativas distribuídas pelas quatro naves da igreja.
Estando o observador voltado para o fundo de cada nave, a narrativa se inicia pelo painel mais próximo ao altar, da esquerda para direita e em sentido horário, com exceção da nave sul, cuja narrativa tem início com o painel à direita do Trono da Virgem de Aparecida, o painel da “Natividade”, porém seguindo o mesmo sentido horário.
As cenas, tais como aquelas encontradas nas igrejas dos primeiros séculos, foram dispostas em arranjo simétrico, de dimensões iguais, que constitui uma ideia de ordem entre os painéis do ciclo, e associadas diretamente ao posicionamento do sol, considerando as orientações cardeais das suas respectivas naves, construindo uma simbologia que reflete diretamente as passagens que estão sendo representadas (Figura 5).
Assim, o nascimento do sol, na Nave Leste, alude às passagens relacionadas à “Ressurreição do Senhor”. O sol, ao ressurgir diariamente, relembra ao fiel que o Cristo é aquele que ressuscitou dentre os mortos.
Na Nave Norte, foram representados 8 episódios da “Vida Pública de Jesus”, orientação onde o sol assume o ponto mais alto do dia no hemisfério sul.
Assim, nessa ala, Cláudio Pastro relacionou o sol com o próprio Cristo, distribuindo as passagens do Novo Testamento que aludem ao seu pastoreio, suas pregações, milagres e conversões, constituindo-se uma “luz para o mundo”: “Falou-lhes, pois, Jesus outra vez, dizendo: Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida”[19].
Figura 5 – Localização dos grupos de cenas dos ciclos narrativos azulejares da Basílica de Aparecida (fonte: o autor, 2019. Montagem sobre gravura. In Pastro, Cláudio. Santuário de Aparecida. São Paulo, 2017, parte interior da capa)
Não é ao acaso, também, que acima da porta principal da Basílica, localizada na Nave Norte, o artista concebeu o painel do Cristo Sol (Pantocrator). Uma imagem de Jesus onipotente, tendo nas mãos o livro Sagrado cuja escritura ele autoproclama: “Eu Sou”[20]
Na Nave Oeste, foram posicionados 8 painéis denominados “Novo Mandamento, a Eucaristia, a Paixão e Morte de Jesus”, cujas passagens trazem os últimos momentos da vida de Cristo antes da sua crucificação.
Sendo, portanto, nessa orientação o local onde o sol se põe (“morre”), Pastro retomou a metáfora da igreja dos primeiros séculos, que relacionava tal orientação com a morte de Jesus, que padeceu para que se cumprisse o seu destino de salvar a humanidade: “E, havendo-o açoitado, o matarão; e ao terceiro dia ressuscitará”[21].
Entre as cenas da ala oeste destaca-se, também, a passagem da instituição da Eucaristia na Santa Ceia, centro do rito litúrgico e rememorada em todas as celebrações.
Ao abordarmos as funções das imagens no recinto religioso, estamos tratando, contudo, de uma arte sacra que, através da estética, possa ser comunicativa e facilitar a experiência com o sagrado. Essas imagens, portanto, não podem ser entendidas somente como meras auxiliares em um contexto catequético.
Gregório Magno, em sua definição sobre a função das imagens nas igrejas, ressaltou não somente o seu papel de instrução, como também reconheceu a dimensão afetiva na relação do indivíduo com essas imagens, sublinhando que “elas contribuem para entreter as coisas santas e que emocionam o espírito humano, suscitando nele um sentimento de [arrependimento] que eleva a uma adoração a Deus”[22].
Honório de Autun, referindo-se ao discurso de Gregório Magno, destacou, de modo complementar, a necessidade de conferir às igrejas uma ornamentação digna de Deus, em uma função que pode ser qualificada de estético-litúrgica[23].
Mesmo em documentos magisteriais mais recentes, a dimensão estética também tem sido resgatada, manifestando-se de modo peculiar no valor teológico e litúrgico da beleza.
A Instrução Geral do Missal Romano, por exemplo, coloca que: “os edifícios sagrados e os objetos destinados ao culto divino devem ser dignos e belos como sinais e símbolos das realidades celestes”[24].
Logo, na Basílica de Aparecida, Cláudio Pastro buscou também expressar suas ansiedades estéticas, recorrendo às origens da arte cristã, ao ícone, de modo particular, de maneira a constituir suas primeiras referências artísticas para compor sua obra. Contudo, vale ressaltar que Pastro tomou aspectos da composição dos ícones, desenvolvendo, em sua obra, uma releitura do ícone e não uma adoção, de fato, dos cânones iconográficos (Figura 6).
Figura 6 – O “Esquema de Três Círculos” da arte bizantina (fonte: PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo, 1955, p. 117)
Na teologia da imagem cristã ortodoxa uma forma particular se torna uma norma e o autêntico se constitui um padrão. Desse modo, cada imagem produzida deve reportar-se a um modelo original ou protótipo, do qual não é lícito ao artista afastar-se, sendo o acatamento das diretrizes eclesiásticas essencial para atividade do pintor de ícones, denominado iconógrafo, não sendo o caso de Pastro que, por sua vez, buscou valer-se da sua liberdade artística para compor as suas cenas.
Entre outras referências artísticas de Cláudio Pastro, estão as obras de artistas como Cândido Portinari, Athos Bulcão e Henri Matisse, destacando-se, de modo particular, a obra deste último realizada para a Capela do Rosário localizada em Vence, na França (Figura 7).
Matisse decidiu realizar todo o interior da capela com o mínimo de cores possíveis, com painéis em azulejos brancos e os temas pintados em preto, assim como paredes e piso seguindo a mesma linha. A cor, no entanto, ficaria a cargo da disposição da iluminação natural e dos vitrais, inspirando o trabalho de Pastro.
Figura 7 – Capela do Rosário. Vence, Itália, 1951 (fonte: https://i1.wp.com/nicenizza.it/wp-content/uploads/2017/03/chapelle.jpg?ssl=1 – acesso em: 11/07/2018)
Retornando à dimensão afetiva das imagens, abordada por Gregório Magno, não podemos deixar de considerar também o caráter devocional das imagens cristãs.
São Boaventura (1218-1274), em seus comentários às Sentenças de Pedro Lombardo, definiu que as imagens: “poderiam, primeiramente, instruir, pois foram feitas ‘para a simplicidade dos ignorantes’”; acrescenta que elas também poderiam suscitar a devoção dos fiéis, “pois nossa emoção é despertada mais pelo que é visto do que pelo que é ouvido”; afirmando, por fim, que as imagens atuariam diretamente na memorização de fatos, “pois aquilo que é somente ouvido é esquecido mais facilmente por aquilo que é visto”[25].
Do mesmo modo, Santo Tomás de Aquino (1227-1274), comentando a mesma passagem das Sentenças, defendeu que as imagens assumem funções específicas:
[Primeiro], para a instrução das pessoas simples, porque podem ser instruídas por elas como que por livros. [Segundo], de modo que o mistério da Encarnação e os exemplos dos santos possam estar mais ativos em nossa memória em função de estarem sendo representados diariamente para os nossos olhos. [Terceiro], para exercitar sentimentos de devoção, esses sendo despertados mais efetivamente por coisas vistas do que por coisas ouvidas[26].
Considerando tudo isso, Cláudio Pastro também buscou destacar o caráter devocional das imagens no projeto de ambientação interna da Basílica Nacional de Aparecida, visto que o Santuário é considerado local de maior expressão da religiosidade brasileira e o maior centro de devoção mariana do mundo.
Assim, no projeto de ambientação interna do Santuário, a imagem da Virgem de Aparecida recebeu um novo local. Antes localizada em um antigo baldaquino, a imagem de terracota encontrada no rio Paraíba, em 1817, ganhou um nicho metalizado dourado e envidraçado, em meio a um grande painel de pastilhas cerâmicas igualmente douradas, representando a “mulher revestida de sol do Apocalipse[27].
No alto do retábulo, acima da imagem, estão representados os anjos Miguel, Gabriel e Rafael, que elevam as preces dos fiéis aos céus, tendo como mediadora a Imaculada Conceição (Figura 8).
Figura 8 – Painel cerâmico Trono de Nossa Senhora. Santuário Nacional de Aparecida. São Paulo, ca. 2000 – 2017 (fonte: o autor, 2018)
De maneira a destacar ainda mais a importância devocional à Nossa Senhora, no contexto da Basílica, o artista oportunamente procurou relacionar o “Trono de Aparecida” às cenas da Naves Sul e Norte.
Ao retratar as passagens relacionadas à “Infância de Jesus”, posicionadas na Nave Sul, e os painéis da “Vida Pública de Jesus”, localizados na Nave Norte, em dois diferentes tons de azul, Pastro buscou fazer alusão ao papel de Maria na história da Salvação, relacionando essas narrativas aos momentos em que a Virgem figura mais efetivamente nos Evangelhos.
O uso da cor azul, no eixo norte-sul da Basílica, marca uma clara linha visual que liga o Painel do Trono da Virgem de Aparecida ao Painel do Cristo Pantocrator, passando pelo altar no eixo da Basílica, indicando que ele é “A Porta”[28] pela qual o fiel deve se conduzir.
Cláudio Pastro fortalece essa conexão, posicionando um Cristo crucificado de de 8 metros, em aço corten, pendendo sobre o altar, que ele denominou “Cruz do Nada” – em uma alusão ao vazio da figura que simboliza a entrega de Jesus no madeiro, tendo no peito o coração prenchido pelo ponto vermelho iluminado do vitral, localizado sobre o painel do Cristo Sol (Figura 9).
Figura 9 – Cruz do Nada, sobre o altar central da Basílica de Aparecida, ao fundo o vitral localizado acima do painel do Cristo Pantocrator, na Nave Norte. Santuário Nacional de Aparecida, São Paulo, ca. 200-2017 (fonte: o autor, 2018)
Tal imagem pode ser observada numa posição específica, localizada entre o painel de Nossa Senhora e o altar, voltando-se o olhar para a orientação Norte.
Segundo o simbolismo de Pastro, a mãe “volta-se” para o filho, representado tanto na cruz quanto no painel do Pantocrator, fazendo justamente alusão à fala da Virgem durante as bodas de Caná: “Fazei tudo o que ele vos disser”[29].
Com isso, é possível concluir que as imagens de Cláudio Pastro, assim como as imagens medievais, como apontado por Jerôme Baschet, aderem a um lugar específico (lieu d’images – lugar de imagens) de maneira que elas possam cumprir, do mesmo modo, suas funções específicas enquanto imagem-objeto.
Tal relação nos leva ao entendimento de que a imagem, enquanto “arte sacra”, assume funções específicas de caráter litúrgico, entre as quais se destacam: a função de servir ao culto, de construção do espaço sagrado e de instrução dos fiéis, bem como as funções estética e devocional, sendo que estas ultimas devem estar associadas ao espaço de culto e à liturgia.
Essa compreensão vai ao encontro do discurso de Cláudio Pastro, quando o artista posicionava-se como “artista sacro” e não “artista religioso”, já que a “arte religiosa”, por sua vez, terá função puramente estética, associada à busca pelo ideal de beleza, essencialmente naturalista e realista, e/ou puramente devocional, associada às devoções privadas.
Desse modo, a iconografia de Cláudio Pastro, enquanto “arte sacra”, é prova de que a imagem cristã, que tem base no Medievo, se perpetua na contemporaneidade, constituída das mesmas funções do passado e possibilitando que o Mistério Pascal de Cristo seja introduzido simbolicamente em novos tempos e novos lugares.
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Notas
[1] PASTRO, C. A arte no cristianismo. São Paulo, 2010, p.112.
[2] PAULO VI, Papa. Decreto Perfectae Caritatis – Sobre a conveniente renovação da vida religiosa. 1965, Item 2.
[3] PASTRO, C. Arte sacra. São Paulo: 2001, p. 13.
[4] No contexto da religião cristã, o termo devoção é compreendido como uma prática em que, partindo do subjetivo, o fiel constrói uma relação muito pessoal com o divino e com a religião. Segundo o Papa Pio XI, em sua Carta Encíclica Mediator Dei – Sobre a Sagrada Liturgia (…), “devoção” e que é o ato principal da virtude da religião com o qual os homens se ordenam retamente, se orientam oportunamente para Deus e livremente se consagram ao culto. (PIO XII, Papa. Carta Encíclica Mediator Dei – Sobre a Sagrada Liturgia. 1947, Item 29).
[5] QUÍRICO, T. Devoção por imagens: pinturas e culto privado na Itália, entre os séculos XIII e XV. Artigo acadêmico, 2015, pp. 79-80.
[6] O Concílio de Trento foi convocado pelo Papa Paulo III, em 1542, e durou entre 1545 e 1563, tendo sido realizado na cidade de Trento, região norte da Itália. (AQUINO, F., História da Igreja: O Concílio de Trento. 2018).
[7] BERTO, J. P. Modernidade e Tradição na Arte Sacra Contemporânea a Partir da Obra de Cláudio Pastro. 2013, Artigo acadêmico, Jornal O Lince, 2013.
[8] PIO XII, Papa. Carta Encíclica Mediator Dei – Sobre a Sagrada Liturgia. 1947, Item 174.
[9] PESENTI, G. G. 2003, p. 704 apud TOMMASO, W. de S. 2015, p.122-123.
[10] Romano Guardini foi um sacerdote, escritor e teólogo católico-romano, de nacionalidade alemã, que sustentou a diferença entre imagem de culto (sacra) e imagem de devoção (religiosa). Para maior aprofundamento ver (GUARDINI, R., Imagen del culto e imagen de devocion. Madri, 1960, pp. 15-35).
[11] PASTRO, C. Guia do espaço sagrado. São Paulo, 1999, p. 83.
[12] Ibidem, p. 82.
[13] BASCHET, J. 1991, pp. 5-7 apud QUÍRICO, T. Inferno e Paradiso: As representações do Juízo Final na pintura toscana do século XIV. Campinas, 2014, p. 139.
[14] ELIADE, M. O Sagrado e o profano. São Paulo, 1992, p.34.
[15] Citação de Gregório Magno na Epistola ad Serenum episcopum Massiliensem de outubro de 600. Trecho em português retirado das notas feitas por José da Felicidade Alves à obra: HOLANDA, Francisco de., 1984, p. 98 (nota 19) apud SANTOS, L. X. O Concílio de Trento e a discussão acerca do Estatuto da Imagem. Monografia de Pós-graduação latu senso em Cultura e Arte Barroca, Instituto de Filosofia, Artes e Cultura, Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais, 2013, pp. 11-12.
[16] QUÍRICO, T. Para Além da Religião? Justiça de Deus, justiça do homem e as representações do Juízo Final. Artigo Acadêmico, 2016, p. 78.
[17] Para melhor entendimento dos respectivos tempos litúrgicos, celebrados no calendário cristão, ver: A Instrução Geral do Missal Romano (3ª edição). Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. (Tradução portuguesa para o Brasil da separata da terceira edição típica preparada sob os cuidados da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos). Roma, 2002, pp. 45-46.
[18] I Tessalonissences, 4, 14.
[19] João 8, 12.
[20] A inscrição faz também referência ao evangelho de João, 8,12, no qual Cristo diz: “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim. E também quando Jesus diz: “Eu sou a porta; se alguém entrar por mim, salvar-se-á, e entrará, e sairá, e achará pastagens” (João 10,9). Nessa imagem, Cláudio Pastro buscou relacionar-se diretamente com a porta principal da Basílica por onde os fiéis entram.
[21] Lucas, 18,33.
[22] BASCHET, J. A Civilização Feudal, do ano 1000 à colonização da América. São Paulo, 2006, p. 485.
[23] Ibidem, p. 485.
[24] A Instrução Geral do Missal Romano (3ª edição). Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. (Tradução portuguesa para o Brasil da separata da terceira edição típica preparada sob os cuidados da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos). Roma, 2002, Item 288.
[25] BOAVENTURA, S. 1882-1902, p. 203 apud QUÍRICO, T. Inferno e Paradiso: As representações do Juízo Final na pintura toscana do século XIV. Campinas, 2014, p. 129.
[26] TOMÁS DE AQUINO, S. 1857, p. 109 apud QUÍRICO, T. Inferno e Paradiso: As representações do Juízo Final na pintura toscana do século XIV. Campinas, 2014, p. 130.
[27] Apocalipse 12, 1-2.
[28] Novamente em alusão ao evangelho de João 10,9.
[29] João 2, 5.