Introdução
Em 11 março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou pandemia devido à Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), que se disseminou pelos continentes por meio da transmissão de pessoa para pessoa. A motivação para o presente tema vem das reflexões obtidas pelo exercício da psicologia clínica no período da pandemia, que modificou o modelo de atendimento psicológico para a modalidade online como medida de precaução e, também, do surgimento de reações psíquicas coletivas diante do seu enfrentamento. Uma cliente, pesquisadora em virologia, atualmente envolvida no estudo sobre a Covid-19 e que nos autorizou citá-la aqui, disse em uma sessão: “o problema do vírus é o hospedeiro, que somos nós humanos; só há vírus, porque há hospedeiro”. A fala dela despertou para a questão da relação entre o ser humano e o vírus, enquanto pensamos nele como um problema isolado, fora de nós, do ponto de vista biológico, ele existe e se multiplica graças aos humanos, pela boa hospitalidade orgânica e na interação com outros humanos, criando a ponte de transmissão e propagação ideal. Diante destas questões, qual seria então a responsabilidade humana individual e os recursos psíquicos para com a propagação do vírus?
Sustentado na teoria da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, este artigo tem como objetivo dialogar com os atuais desdobramentos da pandemia, ainda em curso, e com o enfrentamento humano na perspectiva psicológica, tanto pelos aspectos individuais como pelo impacto coletivo. A partir da leitura bibliográfica dos textos de Jung acerca de conceitos como sombra individual e coletiva e função religiosa, apresentamos uma reflexão apontando para uma transformação coletiva que está diretamente relacionada à transformação subjetiva, sendo que o coletivo afeta o individual e este responde ao meio em que está inserido a partir da própria afetação e possível transformação.
O “Outro” na Perspectiva da Psicologia Analítica
Para a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, na psique humana há a consciência, que é guiada pelo “eu”, que conhece quem somos, o que pensamos e fazemos, onde há luz; mas há também o seu oposto, aspectos desconhecidos, nos quais há sombra. Tudo aquilo que a consciência humana rejeita, ou não aceita sobre si, podemos chamar de aspectos sombrios, o que não necessariamente passa pelo julgamento de certo ou errado, bem ou mal, isso vai depender da relação com o “eu” consciente.
A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. Este ato é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento e, por isso, em geral se defronta com considerável resistência. (JUNG, 2011a, p.18)
Os aspectos sombrios se apresentam na figura do “outro” que começa em nós, uma vez que não temos ciência absoluta sobre nós mesmos. Em geral, os aspectos sombrios da personalidade são percebidos como traços inferiores ou desqualificados pelo eu consciente, ao mesmo tempo que esses conteúdos influenciam e perturbam a consciência, pois também há em si afetos. Uma das formas de resistência psíquica a esses conteúdos sombrios se dá pelo mecanismo de projeção, no qual involuntariamente algumas características da personalidade consideradas sombrias são atribuídas ao outro e experimentadas através de emoções intensas.
A consequência da projeção é um isolamento do sujeito em relação ao mundo exterior, pois ao invés de uma relação real o que existe é uma relação ilusória. As projeções transformam o mundo externo na concepção própria, mas desconhecidas. Por isso, no fundo, as projeções levam a um estado de autoerotismo ou autismo, em que se sonha com um mundo cuja realidade é inatingível. (JUNG, 2011a, p.20)
Portanto, a problemática individual contribui para a problemática do coletivo, pois o coletivo também possui aspectos sombrios que não podem ser reconhecidos por um grupo de pessoas ou por uma sociedade. Jung chamou de sombra coletiva a soma dos traços de caráter inferior da sombra individual, sendo que inferior não se trata de moral, mas de aspectos que não foram desenvolvidos conscientemente, portanto a sombra só existe a partir da relação com o “eu” consciente.
Os conceitos apresentados iluminam a reflexão acerca do enfrentamento da pandemia para o homem contemporâneo. Estamos em 2020, a vida moderna coletiva nos desafia a questões diárias, que parecem ser obrigatórias como “você deve, você precisa”. Quase inquestionáveis são as demandas de produzir, vestir, relacionar-se, ter e ser. Do ponto de vista psicológico, esse fenômeno coletivo está pautado na valorização da consciência, do poder do “eu” e do “querer é poder”; questões que favorecem a crença de que o mundo, incluindo a natureza, a sociedade e a economia estão a serviço da vontade e interesses pessoais. Jung, em 1939, já apontava para o homem de sua época e ainda tão atual nos dias de hoje:
A pessoa pode tornar-se tão identificada com seu eu que perde o vínculo comum de humanidade, podendo uma pessoa voltar-se contra a outra. Isto pode facilmente acontecer, pois uma pessoa nunca quer a mesma coisa que a outra. Para o egoísmo primitivo, no entanto, é regra que nunca eu mas sempre o outro deve. (JUNG, 2011b, p.149)
Ao adquirir a consciência individual, a humanidade se diferenciou historicamente do homem primitivo, e, mesmo sabendo da diversidade humana, na vivência das relações, espera-se uma igualdade de consciência, ou seja, que tudo que acontece a mim deve acontecer ao outro. O que evidencia a problemática da tensão na relação com “outro”, tanto no âmbito dos relacionamentos íntimos pessoais quanto no coletivo. Este pressuposto de igualdade de consciência pode trazer consequências sociais preconceituosas, que desconsideram a singularidade individual, o desconhecido, o mistério, aquilo que não se controla e, por exemplo, o impacto social da pandemia da Covid-19.
A pandemia da Covid-19
Os primeiros registros do vírus causador da Covid-19 em humanos surgiram na China, do lado oposto das bordas da segurança do Ocidente. Invisivelmente, o vírus se movimenta, avança e se multiplica, atravessa os mares a bordo dos aviões e chega a todos os cantos. É declarada, pela Organização Mundial da Saúde, pandemia da doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Recomenda-se o isolamento social como forma de conter a sua propagação. O vírus é experimentado como um “outro” desconhecido, invisível aos olhos e ao controle consciente, e, repentinamente, na vida contemporânea constela-se um aspecto sombrio coletivo na imagem de um vírus sobre o qual sabemos muito pouco.
A despeito da nossa orgulhosa pretensão de dominar a natureza, ainda somos suas vítimas, pois não aprendemos nem a nos dominar. Atraímos o desastre de maneira lenta, mas que não parece fatal. (JUNG, 1964, p. 128)
A prática do isolamento social propõe que a atitude individual se reflete diretamente no bem-estar coletivo. Não estamos apenas tensos com o vírus, mas também com o outro humano, na figura daqueles que temos que proteger para não entrar na estatística da letalidade da infecção do vírus; e também como aquele outro se torna ameaça e pode nos contaminar. O isolamento social perturba a consciência, abala as relações, a vida íntima e os projetos da vida contemporânea. Desde o início da pandemia, a partir do olhar psíquico, a quantas reações diante do desconhecido estamos assistindo?
Parece até que cada qual possui a relação mais direta, íntima e competente com o seu interior e que sua psique é uma psique universal que serve a todos, considerando seu estado de espírito como válido em geral. Via de regra ficamos admirados, tristes ou decepcionados quando isto não funciona, isto é, quando descobrimos que o outro é realmente outro. As diferenças psíquicas não são consideradas simples curiosidade ou como algo encantador, mas como algo desagradável, difícil de suportar ou insuportável, como algo errado e condenável. O ser outro funciona como perturbação da ordem mundial, como erro que deve ser afastado o mais rápido possível ou como delito que é preciso punir. (JUNG, 2011b, p.146)
A pandemia interrompe vidas, projetos pessoais, sociais e econômicos; desconstrói a sensação de controle. Precisamos lembrar que não somos o centro do mundo, mas, ao que parece, resistimos a esta ideia, pois as crises revelam a nossa condição, ou falta dela, para lidarmos com as incertezas. Medo, ansiedade, irritabilidade, estresse, tristeza, estados depressivos. Mecanismos de defesa são também acionados, assim como a negação, a projeção e, por fim, estados infantilizados que aguardam por soluções mágicas e acreditam em teorias irreais – estas são algumas das respostas que aparentemente protegem o indivíduo do esforço e sofrimento da tomada de consciência, do confronto com a realidade que, atualmente, é incerta. “Muitas vezes é trágico ver como uma pessoa estraga de modo evidente a própria vida e a dos outros, e como é incapaz de perceber até que ponto essa tragédia parte dela e é alimentada progressivamente por ela mesma.” (JUNG, 2011a, p. 21)
O enfrentamento psíquico: “A meu modo de ver a psique é a realidade mais prodigiosa do mundo humano.” (Jung, 2011d, p. 119)
Para Jung, os acontecimentos da vida humana e cultura são aspectos psíquicos – mesmo que não palpáveis, antes mesmo de acontecer, eles fazem parte da psique humana e, por isto, se realizam. Sendo assim, a pandemia é algo psíquico, antes mesmo de viral e generalizada. Neste aspecto, é possível discorrer sobre as formas emocionais e psicológicas de enfrentamento da pandemia, como as citadas no parágrafo acima, e recorrer à metáfora do Renascimento utilizada por Jung (2011d) para explicar a psicologia e o processo de transformação psicológico, que é um caminho para a individuação.
Utilizando imagens originais da religião, Jung demonstra que o renascimento é arquetípico, ou seja, tem sua origem na humanidade e suas imagens são encontradas em diversos povos. Para ele o renascimento pode ou não alterar a essência. Para ampliar a reflexão, Jung distingue as vivências de transformação fora do indivíduo, como as de transcendência de vida mediadas pelos rituais sagrados – que, mesmo gerando impacto, não necessariamente causam transformação sobre ele –, das experiências diretas de transformação subjetiva. Os sonhos são um exemplo. Enquanto alguns são agentes de transformação psíquica, outros podem apenas gerar emoções, mas não transformar o sujeito. Através dessas reflexões, compreendemos que o enfrentamento da pandemia pode despertar um emaranhado de sentimentos e emoções que podem ou não gerar transformação. Isso vai depender de como o indivíduo vai lidar com sua condição psíquica diante desse cenário de crise, o que poderá abrir a possibilidade para um processo de reflexão e ampliação da consciência psicológica individual e também da sociedade atual.
Para algumas pessoas, o enfrentamento psicológico dessa situação ocorre através do rebaixamento da atitude consciente, que tem como consequência a falta de energia e desânimo, o que Jung (2011d) chamou de diminuição da personalidade ou perda da alma para os xamânicos.
O abaissement pode ser consequência de um cansaço físico e psíquico, de doenças somáticas, de emoções e choques violentos, cujo efeito é especialmente deletério sobre a autossegurança da personalidade. O abaissement sempre tem uma influência limitadora sobre a personalidade global. Diminui a autoconfiança e a iniciativa e limita o horizonte espiritual através de um egocentrismo crescente. Pode levar finalmente ao desenvolvimento de uma personalidade essencialmente negativa, que representa uma falsificação em relação à personalidade originária. (JUNG, 2011d, p.123)
Há também casos de identificação do indivíduo com a pandemia, em que ele se sente constantemente ameaçado. Isso ocorre quando ele fica identificado com sua própria sombra e atua de forma inconsciente, gerando modificação da estrutura interior e possessão. “Um ser humano possuído por sua sombra está postado em sua própria luz, caindo em suas próprias armadilhas. Sempre que possível, ele prefere exercer uma impressão desfavorável sobre os outros.” (Jung, 2011d, p. 127.) Também pode ocorrer o contrário, uma identificação com a persona, em que o indivíduo nega os conteúdos que surgem a partir da pandemia e continua agindo na vida sem considerar as mudanças necessárias para o novo contexto social.
Existem, ainda, aquelas pessoas que recorrem a grupos que passaram por transformações coletivas para se identificar e buscar soluções diante da crise. Por exemplo, como outras nacionalidades lidaram ou estão lidando com a pandemia? Essa mudança não costuma ser profunda e duradoura, pois quando estamos em grupo existe uma identificação inconsciente. Além disto, embora haja enfrentamentos interessantes em alguns povos, estaríamos desconsiderando as condições psicológicas de enfrentamento do povo brasileiro e de cada um de nós como indivíduos. Jung (2011d) desenvolve uma crítica a esta identificação em massa devido ao baixo nível de consciência individual. “é algo bem diferente vivenciar a transformação no grupo do que em si mesmo (…) O indivíduo na multidão torna-se facilmente uma vítima de sua sugestionabilidade (…) não se sente nenhuma responsabilidade, mas também nenhum medo.” (2011d, p.129) Esta crítica feita por Jung aprofunda a reflexão sobre a importância de se responsabilizar pelo próprio processo de conscientização diante de acontecimentos coletivos. Quando esse movimento individual não acontece, colaboramos para o crescimento de uma sombra coletiva, em que se espera uma mudança da sociedade sem que seus indivíduos estejam dispostos a se confrontar com sua própria sombra. “Por isso as multidões humanas são sempre incubadoras de epidemias psíquicas.” (2011d, p.130)
Para outras pessoas, a solução está em enfrentar a crise da mesma forma como outra pessoa que a vivenciou enfrentou, há aqui uma identificação com aquele que se transformou durante o processo sagrado. Aqui, a ideia de que a transformação só é vivida por aqueles que se entregam para o ritual se perde, o que prevalece é que aquele que se transformou habita em todos os indivíduos, o que coloca de lado o enfrentamento individual para a ampliação de consciência e transformação diante de suas próprias vidas e de seus atos.
Em outros casos, buscam-se resoluções e saídas mágicas, em que se confia que a repetição de um ritual sagrado possa produzir a mudança, sem vivenciar a experiência do processo de se transformar. Também é possível ver casos em que o enfrentamento é feito através da repetição de uma técnica, criar rotina como fulano fez, fazer o exercício que aquela outra referência da internet indica, repetir processos que aparentemente foram transformadores para outras pessoas como forma de resolução. A busca da transformação por meio de uma técnica é exemplificada por Jung (2011d) através do uso da yoga e da mandala, que foram criadas a partir da elaboração de processos espontâneos que, ao serem observados, geraram uma sequência técnica. Entretanto, o processo de transformação e conscientização está diretamente relacionado à forma como o indivíduo vai se relacionar com ele, ou seja, para a busca pela transformação, não importa muito o caminho ou a técnica, e sim a relação do sujeito com eles. A transformação como ampliação e mudança da personalidade consciente só acontece quando aquilo que vem de fora faz ponte com o que está dentro.
Só nos apropriamos verdadeiramente de tudo o que vem de fora para dentro, como também tudo o que emerge de dentro, se formos capazes de uma amplitude interna correspondente à grandeza do conteúdo que vem de fora ou de dentro. A verdadeira ampliação da personalidade é a conscientização de um alargamento que emana de fontes internas. (JUNG, 2011d, p. 124.)
A transformação é um processo natural que gera efeitos psíquicos no indivíduo e na sociedade. Nesse sentido, é um processo arquetípico encontrado na natureza; como a planta que morre, vira adubo e renasce, mas em uma nova forma.
Trata-se de um processo demorado de transformação interna e do renascimento em um outro ser. Este “outro ser” é o outro em nós, a personalidade futura mais ampla, com a qual já travamos conhecimento como um amigo interno da alma. (JUNG, 2011d, p. 134)
Os sonhos, um dos mais importantes métodos de trabalho de Jung com a psique, apresentam este processo de renascimento, esta aproximação do “eu” consciente com aquele outro interno. Para a consciência, o outro interno e inconsciente é um estranho, que pode gerar medo. Mas este enfrentamento, ou melhor, esta aproximação entre “eu” consciente e “eu” inconsciente, entre eu e sombra, é o despertar para o processo de renascimento e consequente transformação psíquica. Esta relação entre “eu” e “sombra” pode também ser favorecida através do diálogo, uma tentativa de comunicação entre estas duas partes e as associações oriundas desta conversa. Entretanto, muitas vezes o intelecto tenta barrar essa comunicação devido à falta de racionalidade das associações e do estranhamento da consciência, aquilo que Jung (2011d) chamou de medo sagrado, temor secreto dos perigos da alma.
“Trata-se apenas de meus pensamentos”, mesmo que um exame mais acurado revele que se trata de pensamentos rejeitados ou jamais admitidos conscientemente; como se tudo o que fosse psíquico pertencesse à alçada do eu! Esta hybris cumpre o ofício útil da manutenção e supremacia da consciência, que deve ser protegida da dissolução no inconsciente. Mas ela sucumbe quando o inconsciente resolve tornar obsessivos alguns pensamentos insensatos, ou gerar outros sintomas psicogênicos pelos quais não queremos assumir responsabilidade alguma. (…) Do conflito entre ambos pode surgir verdade e sentido, mas isto só no caso de que o eu esteja disposto a conceder a personalidade que cabe ao outro. (JUNG, 2011d, p. 135)
Para a Psicologia analítica, a transformação é uma experiência de vida, um processo natural que faz parte da dinâmica psíquica, a psique busca a transformação. O que só acontece na medida em que o eu consciente se abre para ouvir além daquilo que ele consegue observar, abrindo mão de sua superioridade e reconhecendo que os sintomas psicológicos são uma tentativa de comunicação daquilo que está inconsciente. Este reconhecimento e diálogo da consciência com as vozes internas/inconscientes é compreendido como um exercício da espiritualidade e serão melhor desenvolvidos através da função religiosa da psique.
A função religiosa
De acordo com Jung (2011b), a relação dinâmica entre o individual e o coletivo, é fundamental para os caminhos e futuro da humanidade. “Todo problema individual se relaciona de certa forma com o problema da época, de modo que toda dificuldade subjetiva pode ser examinada, por assim dizer, sobre o prisma da situação geral da humanidade.” (Jung, 2011b, p. 163)
Para que grandes transformações coletivas aconteçam, é necessária a transformação individual, subjetiva. O indivíduo só pode permanecer ele mesmo, se houver abertura para o outro fora e dentro. A crise revelada pela pandemia é uma oportunidade para repensar as crenças pessoais e coletivas. O ser humano está habituado a tentar explicar tudo, e encontrar respostas para lidar com suas questões a partir da racionalidade consciente e egoica, desprezando outras manifestações não racionais vindas de dentro de si, do inconsciente pessoal e coletivo, tendendo sempre a buscar sentido naquilo que vem de fora. Nessa perspectiva, nos deparamos com a insuficiência em ser humano, por não podermos responder aos mistérios impostos pela vida exclusivamente pela via da razão. Sendo assim, é necessário ficarmos atentos aos sinais que o outro em nós revela, pois no mundo interno há forças e uma dimensão criativa, provenientes do inconsciente individual e coletivo, que carregam imagens primordiais da condição humana. Elas podem apontar para soluções e caminhos de enfrentamento, como por exemplo as imagens apresentadas pelos sonhos. Como humanos, temos a capacidade de refletir sobre esse enfrentamento do mistério.
o termo “reflexão” não deve ser entendido como simples ato de pensar, mas como uma atitude. A reflexão é uma atitude de prudência da liberdade humana, face à necessidade das leis da natureza. Como bem indica a palavra “reflexio”, isto é, “inclinação para trás”, a reflexão é um ato espiritual de sentido contrário ao do desenvolvimento natural; isto é, um deter-se, procurar lembrar-se do que foi visto, colocar-se em relação e em confronto com aquilo que acaba de ser presenciado. A reflexão, por conseguinte, deve ser entendida com uma tomada de consciência. (JUNG, 2011c, p. 64 rod. 9)
Essa afirmação indica que, dentro da psique humana, há algo que liga o indivíduo a algo maior, ao que Jung chamou de religere, termo emprestado de Cícero, que significa “com este vínculo estamos unidos e ligados a Deus” (2011f, p. 49, nota 72), ou seja, ligados à nossa própria origem. Para Jung (2012b), a religião é uma função da psique, que é natural da alma e é independente da vontade consciente para agir e produzir efeitos na vida humana e nas suas relações. Algo que nos faz ir contra a natureza. É preciso esforço, reflexão e desenvolver uma disposição para estar atento a algo que irrompe do inconsciente sem intenção da vontade consciente. Dessa forma, a função religiosa, como religere, diz de uma “observação acurada e conscienciosa daquilo que Rudolf Otto chamou de numinoso.” Algo que o indivíduo intui como maior que ele mesmo, divino, o mistério vivo. Coloca-nos diante do paradoxal, da tensão entre o bem e o mal, divino e infernal, da incerteza diante do mundo e de nós mesmos, portanto uma vivência ameaçadora que o intelecto não tem capacidade de controlar. Algo vivido como outro em nós impõe vontades que não coincidem com vontades conscientes do eu. Dessa forma, vale mais dispormos da experiência e intuição do que do conhecimento racional e intelectual. Essa experiência é subjetiva, assim, só pode ser vivida por um indivíduo. Por outro lado, trazem ideias e imagens que acontecem em todo tempo e lugar, é impessoal e coletiva e irrompe espontaneamente das profundezas da psique.
A reflexão, a tomada de consciência e o autoconhecimento só podem ser obtidos individualmente, pois dentro de cada indivíduo há substratos de um inconsciente coletivo universal, com imagens que oferecem possibilidades para uma percepção e ação conscientes, permitindo uma integração entre o eu e outro, consciente e inconsciente, mundo externo e interno. Obviamente, este autoconhecimento é um trabalho árduo que exige boa vontade, esforço e flexibilidade egoica.
O resultado disso, quando irrompe na consciência, pode provocar transformações, mas se o indivíduo vive inconscientemente feliz e seguro a algo externo, coletivo, como a pandemia se impõe, pode ser levado à negação ou à paralisia, ao não encontrar as certezas no coletivo. Nada sabemos conclusivamente sobre o vírus, manifesta-se a partir da natureza, sem a permissão do humano e ao mesmo tempo somos responsáveis, em alguma medida, por sua manifestação.
Conclusão
A pandemia afeta cada indivíduo de forma singular, e a forma em que cada um vai responder a essa afetação em forma de ação no mundo, culminará na resposta e na responsabilidade coletiva em relação ao enfrentamento da pandemia. Tomar consciência é prestar atenção naquilo que vem de dentro e também ao que acontece fora e nos mobiliza, se nos toca é “porque há algo em nós que lhe corresponde e vai ao seu encontro.” (Jung, 2011d, p. 124)
Ao desprezar o mundo interno, há o risco de reprimir o fator individual e favorecer a sombra coletiva na formação de massas, o que pode ser altamente infeccioso em razão de um conhecimento muito limitado produzido sobre si mesmo. Neste sentido, “a massificação não tem absolutamente a intenção de promover a compreensão e a relação entre os homens. É orientada para atomização, isto é, para o isolamento psíquico do indivíduo.” (Jung, 2011e, p.63)
A pandemia, este momento de instabilidade e incertezas, provoca o indivíduo a entrar em contato com o outro nele mesmo através da sombra individual e, como sociedade, com a sombra coletiva. Esse enfrentamento só será possível se houver disponibilidade de cada indivíduo para agir em favor de uma reflexão profunda sobre ele mesmo, um refluir momentâneo, onde vai ao encontro da insubstancialidade essencial e, consequentemente, da sua responsabilidade sobre a sociedade em que vive. Algo que, vagarosamente, poderá nos levar a um processo de maior conscientização. Confiamos, assim como Jung, que sem conhecer e compreender o outro de dentro e de fora, a travessia da vida e o enfrentamento da pandemia ficam mais angustiantes e obscuros, insuportáveis a ponto de provocar um medo paralisante ou a negação. Com tomada de consciência é possível se tornar capaz de suportar, com resiliência, as forças desconhecidas e as incertezas apresentadas diante das crises e mudanças.
Referências bibliográficas
JUNG, C.G. Aion: estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. In: Obras Completas, vol.9/2. 8.ed. Petrópolis: Vozes, 2011a.
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_________.Presente e Futuro. In: Obras Completas, vol.10/1. Petrópolis: Vozes, 2011e.
_________. Psicologia e Alquimia. In: Obras Completas, vol.12. Petrópolis: Vozes, 2012a.
_________. Psicologia e Religião. In: Obras Completas, vol. 11/1. Petrópolis: Vozes, 2012b.
_________.Símbolos da transformação. In: Obras Completas, vol. 5. Petrópolis: Vozes, 2011f.