“– É verdade que o senhor brigou com o passado da Igreja? (…)
– Quem tem passado é adúltera recuperada.”
(D. Hélder em entrevista imaginária no terreno baldio. RODRIGUES, 2016, p. 317)
Resumo
Este artigo dá início a um diálogo entre as dramaturgias de Nelson Rodrigues e de Valle-Inclán a partir da personagem Mari-Gaila da peça “Divinas Palavras” (1920). Ramón del Valle-Inclán (1866-1936) foi um poeta, romancista e dramaturgo espanhol cuja vastíssima e importante produção ainda não foi amplamente debatida no Brasil. Sua obra funde erotismo, religião e morte tal como a de Nelson Rodrigues (1912-1980), este por sua vez bastante estudado por aqui, mas nem por isso menos controverso. Sendo Valle-Inclán um autor complexo e multifacetado, Nelson Rodrigues permitiria uma chave de leitura brasileira para além das contingências históricas que os aproximam.
Palavras-chave: Nelson Rodrigues. Valle-Inclán. Adúltera. Teatro brasileiro. Esperpento.
Entre o pessimismo jansenista e o otimismo teosófico
Seria extenuante estabelecer uma análise comparativa entre Nelson Rodrigues e Valle-Inclán a partir de categorias de gênero, pois ambos escapam às demarcações excessivamente restritivas. Enquanto o primeiro transitou entre comédia de costumes, tragédia carioca, peças míticas, psicológicas etc, o segundo chegou a inventar um rótulo para classificar sua escrita híbrida – o esperpento, que na acepção popular original significava ato grotesco ou desatinado, mas que ao longo do tempo passou a designar tão somente esse gênero literário.
Alternativamente, poderíamos fazer um paralelo histórico, afinal ambos viveram em períodos de tensão social: Valle-Inclán presenciou as turbulências que fizeram eclodir a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) no exato ano de sua morte, ao passo que Nelson Rodrigues atravessou duas ditaduras no Brasil (1937-1945 e 1964-1985). Os dois assumiram posições indigestas ante as contingências, o brasileiro porque era (segundo sua prosódia de ex-covarde) um anti-marxista confesso, o espanhol porque cometeu deslizes monarquistas quando intelectuais clamavam pela república.
Ao invés dessas ou até de outras abordagens possíveis, nossa baliza será a religiosidade que perpassa a obra de ambos; a partir dessa comparação, poderemos vislumbrar a maneira como cada um analisava o comportamento e os afetos humanos. Comecemos, portanto, por entender a cosmovisão religiosa de cada um.
Magaldi (1992) dizia que Nelson Rodrigues era um jansenista brasileiro, ou seja, um representante dos agostinianos franceses do século XVII – entre eles Pascal, La Fontaine e Racine –, que pensaram o homem como um ser necessariamente dominado por uma natureza pecadora. Depreende-se daí uma profunda convicção da decadência humana, a probabilidade da condenação eterna, a negação do livre-arbítrio e a incapacidade de alcançar o bem. Paradoxalmente, o pessimismo jansenista tinha uma comicidade particular, a ironia cáustica que visava corroer as falsas certezas. Não que o riso fosse uma unanimidade entre os jansenistas, mas não seria nunca um sinal de otimismo; talvez pudor do desespero, resignação diante da perdição ou escárnio da patética derrisão humana (MINOIS, 2003).
Desse eco agostiniano viria a obsessão rodriguiana pelo desejo que nos esmaga, a repetição de personagens como o idiota, o canalha, a adúltera etc, e sua ironia. Outra característica de Nelson é sua comunicação direta, ser profundo jamais significaria ser tedioso nem romper com a linguagem comum.
Em contrapartida, Valle-Inclán revela influências do esoterismo do século XIX, misturando cabala, astrologia, tarô e ciências ocultas. As ressonâncias da Sociedade Teosófica fundada por Helena Blavatisky, em 1875, cujo lema “não há religião superior à Verdade”, são notórias (BORDONADA, 1998, pag. 41). A teosofia moderna partilha bases comuns do cristianismo, budismo e hinduísmo; a sabedoria transcendente vertida culturalmente por símbolos e arquétipos é a única verdade a que vale a pena recorrer. Dessa compreensão de que o homem está sempre se debatendo em ilusões viriam os personagens pecadores e supersticiosos de Valle-Inclán, todos envoltos numa profusão de símbolos para os quais estão cegos. Diferentemente de Nelson, seu estilo é rebuscado e rico de descrições de um mundo a ser investigado. Apesar da ignorância e das infinitas aflições mundanas, a teosofia é otimista e acredita na evolução ao longo das reencarnações. O humor irônico de Valle-Inclán é amargo e anti-clerical, atuando como uma forma de higiene espiritual deste homem em agonia.
Um dos pontos de convergência entre essas duas concepções é o vazio e a angústia do homem, donde se sobressai a personagem da adúltera. Analisaremos a personagem Mari-Gaila da peça “Divinas Palavras”, de Valle-Inclán, sob um prisma rodriguiano. Antes, faz-se necessário conhecer o autor espanhol e sua obra.
Um projeto estético para um mundo em crise
Valle-Inclán é um destaque da geração de 98 – artistas que testemunharam os últimos suspiros do Império Espanhol devido à independência das suas últimas colônias (a perda de Cuba em 1898 teve especial impacto nessa derrocada).
A penúria da população espanhola intensificou uma crise de identidade nacional e de valores comuns, o que marcou essa geração com um peculiar ressentimento nacionalista e um violento enfrentamento de anarquistas e republicanos contra a monarquia.
Depois de romances, contos e peças pautados pelo modernismo francês, Valle-Inclán rompeu radicalmente com o realismo dominante e criou para si um gênero ao qual seu nome ficou inescapavelmente ligado – o esperpento –, por meio do qual ele deformava a realidade e acentuava seus atributos grotescos a fim de revelar os absurdos da existência.
Seu procedimento esperpêntico se caracteriza por uma forte verve tragicômica e, especialmente nas peças, um retorno à estrutura medieval de narrativa, ambiente carnavalesco, uso da máscara, distorção da linguagem e relação de seus personagens com títeres.
Sem ter escrito uma teoria do esperpento, uma vaga definição está na boca de um personagem na peça “Luzes da Boêmia”:
Max Estrella: O sentido trágico da vida espanhola só pode se dar com uma estética sistematicamente deformada […] Minha estética atual é transformar com matemática de espelho côncavo as normas clássicas. (VALLE–INCLÁN, 1999, p. 98)
É, portanto, com um rigor matemático que Valle-Inclán deforma as normas, mistura o trágico com cômico e cria o efeito grotesco. Ora, o humor grotesco surge como uma reação de medo diante da realidade que perde sua estrutura racional, por isso é recorrente na sequência de agitações político-sociais: o horror torna-se cômico (MINOIS, 2003).
Escrita durante a gripe espanhola e publicada em 1920, “Divinas Palavras” é uma obra de transição para o esperpento e provavelmente sua peça mais conhecida. Como as características desse gênero ainda não estão ali lapidadas, o texto é um diamante bruto desse seu incipiente projeto estético.
Desde a primeira fase do nosso Teatro Moderno (aliás fundado com a primeira montagem de “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, dirigida por Ziembinski), a peça, infelizmente, foi encenada poucas vezes no Brasil[1]. Em São Paulo, a primeira encenação profissional aconteceu em 1986, no Teatro FAAP, sob direção de Iácov Hillel, tendo Laura Cardoso no papel da virtuosa e vigilante Marica do Reino e Imara Reis como a adúltera Mari-Gaila. Apesar do sucesso estrondoso, “Divinas Palavras” esperou vinte anos para ser montada novamente na cidade. Em 2007, Os Satyros, cuja concepção relacionava o universo do autor com a realidade vivida pelos moradores da Praça Roosevelt, onde está sediado o teatro da companhia, não poupou esforços para adaptar o texto e atualizar o esperpento para a realidade de então. O crítico Sergio Sálvia Coelho enalteceu a montagem definindo-a como “um pastiche macabro da miséria humana” (COELHO, 2008, p. 2).
Tragicomédia de aldeia
O enredo de “Divinas Palavras” é bastante complexo, contabilizando vinte cenas divididas em três jornadas (ao invés de atos) e mais de trinta personagens. Todos vivem em muita pobreza – aldeãos, pastores, ambulantes e peregrinos –, muitos deles sombrios e repugnantes, mas com a sagacidade do bufão. A prevalência do desejo e do instinto primitivo é marcada por uma proximidade do homem com o bicho; como em muitas de suas peças, é comum que os animais se humanizem e os seres humanos se animalizem.
Situada num mundo rural e primitivo, a fictícia Viana do Prior nos remete às aldeias galegas onde nasceu o autor. As rubricas constituem um discurso complementar que liricamente dão coordenadas estéticas para os diversos ambientes, o que enriquece a composição cenográfica e sonora do conjunto.
Além disso, a peça tem um caráter supratemporal: apesar de algumas alusões que situam a trama no princípio do século XX, a estrutura narrativa é rigorosamente medieval. Não existe unidade de tempo, o que sugere ora um hiato entre os acontecimentos, ora uma concomitância de ação; essa descontinuidade nos remete a um retábulo vivo, aquela série de unidades pictóricas ou escultóricas que oferecem os momentos principais de um processo, mas que omitem as transições.
A partir daqui, deixaremos de lado personagens importantes para a trama e nos concentraremos apenas naquelas que rodeiam e acompanham o percurso de Mari-Gaila.
O percurso da adúltera em “Divinas Palavras”
Na Primeira Jornada, a ambulante Joana Rainha pede esmola expondo a deformidade de seu filho, um anão hidrocéfalo que ela empurra sobre uma carreta. Morta subitamente, o anão se torna motivo de disputa entre seus tios, posto que sua má formação seria fonte de dinheiro nas feiras de verão. Polarizando o litígio estão Marica do Reino, irmã da defunta, viúva virtuosa e fiel a seu marido morto, e Mari-Gaila, sua cunhada, “harmoniosa nos movimentos do corpo e da voz”, que “fala bonito como gente da cidade”. Diante das autoridades, ambas se debruçam sobre o corpo frio e, chorando copiosamente, debelam palavras que tentam provar seu afeto pela morta, duas furiosas carpideiras em confronto que comovem a aldeia. Quando a farsa já não é mais sustentável, elas se agridem até o juiz local propor que partilhem a custódia do anão – três dias uma, três dias a outra, sendo os domingos alternado. Festejando a decisão, elas brindam com um copo encontrado ao lado da defunta e o anão, objeto da disputa, fica com as rãs esquecido num canto.
No início da Segunda Jornada, Marica do Reino, insatisfeita porque a cunhada não cumpre os prazos, descobre por uma vizinha que Mari-Gaila passa as noites divertindo-se em tabernas. Marica do Reino procura seu irmão, o sacristão Pedro Gailo, outrora “o galo rei”, e instiga-o a punir a esposa:
Marica do Reino – (…) O comportamento dessa mulher é a vergonha da nossa família!(…)
Pedro Gailo – Que diabo eu posso fazer? Você quer a minha desgraça?
Marica do Reino – Quero que não seja corno!
Pedro Gailo – Quer a minha desgraça, isso sim!
Marica do Reino – Seja homem! Cadê a sua honra?!
Pedro Gailo – Honrado e preso!
Marica do Reino – Não digo que mate, mas dá uma surra.
Pedro Gailo – Depois volta a ser como sempre foi. (…) Para fazer parar, só matando. Surra não basta, porque ela recomeça.
(II, 4, p. 68-69)
Mari-Gaila de fato volta cada vez menos para casa. Suas andanças, entretanto, são frustradas, pois a carreta lucra menos do que se esperava: um andarilho recém-chegado tem perturbado a economia dos pedintes das feiras. Os boatos sobre esse homem misterioso a excitam; quando finalmente se depara com Sétimo Miau, o encantamento a desorienta. Trata-se de um ambulante que muda constantemente de nome e de aparência, um ex-presidiário sedutor e aventureiro.
Envolvida pelo recém-chegado, Mari-Gaila negligencia os cuidados com a carreta, que fica ao encargo de uma velha alcoviteira. Levado para uma hospedaria que reúne “mendigos e andarilhos de toda laia”, todos ali se divertem às custas do anão; dão-lhe tanto de beber que ele tem uma síncope e morre em meio à esbórnia. Ao receber a notícia, Mari-Gaila se insurge contra o “Senhor Misericordioso” que levou deste mundo aquele que “enchia sua barriga”.
Voltando com a carreta para casa, Mari-Gaila encontra o Bode sentado numa rocha. Desenvolve-se uma cena curta e repleta de efeitos medievais (rituais sabáticos, corpos voando, sino badalando, lua cheia etc) que termina com uma insinuada relação sexual com o Satã.
Quando finalmente chega em casa, Mari-Gaila é recebida com alegria pela filha:
Simoninha –Estão batendo, pai! (…) Pergunto quem é?
Pedro Gailo – Que mal pode haver em perguntar?
Mari-Gaila (voz) – Abram, seus miseráveis!
Simoninha – É minha mãe que voltou! Está vendo: ela é honesta!
(II, 9, p. 94)
Pedro-Gailo e a filha espantam-se com o cadáver do anão e Mari-Gaila indica o que fazer:
Mari-Gaila – (…) Deixa a carreta na porta e, sem nenhuma palavra, você volta.
Simoninha – E eu que tenho que levar a carreta?
Mari-Gaila – Evidente, minha flor, evidente! Os custos do enterro não podem cair nas nossas costas.
Pedro Gailo – E sem prestar depoimentos.
Simoninha – Falta que a tia esteja de acordo.
Mari-Gaila – Quando estiver com a carreta na porta, não vai ter como deixar na salmoura. Vai ter que enterrar.
Pedro Gailo – Então melhor ir logo, antes de amanhecer.
(II, 9, p. 95-97)
A carreta é deixada sob a copa de figueiras e espantalhos, em frente à casa de Marica do Reino. Ao amanhecer, porcos grunhem sobre o corpo; Marica do Reino sai da cozinha brandindo a vassoura com “os peitos de cabra seca pulando para fora”.
Marica do Reino – Fora! (…) Valha-me Nosso Senhor, os porcos em cima da carreta! Me trouxeram na calada da noite. (…) Fora daqui, seus insensíveis! (…) Comeram a cara do menino! (…) Devorado pelos porcos! Ele está todo frio, frio!!!
(II, 10, p. 100)
Na Terceira Jornada, Marica do Reino devolve o corpo carcomido para os Gailos. A fim de conseguir dinheiro para o enterro, Simoninha expõe o grotesco defunto sob “uma mortalha mal alinhavada” na frente da igreja; todavia, enquanto a filha junta essas parcas esmolas, Mari-Gaila é flagrada fornicando com Sétimo-Miau entre as ramas. A multidão se aglutina em torno dela, desnuda-a violentamente, coloca-a sobre uma carroça de feno e desfila “o carro triunfante dos faunos” pela aldeia. Diante da cena humilhante, o sacristão Pedro Gailo sobe no telhado da igreja e atira-se de cabeça no chão. “Cai em voo escuro, fica achatado no chão, os braços abertos, a batina toda rasgada. De pronto se levanta e vai mancando para dentro da igreja”.
Uma voz – Pensei que tinha morrido!
Outra voz – Tem sete vidas!
Quintin Pintado – (…) Olha que deixou os cornos enterrados.
(III, 5, p. 134)
O sacristão sai de novo para o pórtico, com uma vela acesa e um missal. Com o livro aberto e o chapéu torto, atravessa o caminho e se aproxima “do carro do triunfo da alegria”. A mulher desnuda salta da carroça, cobrindo o sexo. O sacristão bate as mãos com o livro.
Pedro Gailo – Quem estiver livre de culpa, que atire a primeira pedra!
Vozes – Corno!
Outra vozes – Broxa!
(…)
Uma velha – Vergonha dos homens!
Pedro Gailo reza em latim a branca sentença.
Sacristão – Qui sine peccato est vestrum, primus in illam lapidem míttat.
(III, 5, p. 135)
Essas palavras incompreensíveis fazem com que, repentina e inexplicavelmente, uma “emoção litúrgica” comova as consciências e mude o “sangrento resplendor dos rostos”.
Serenin de Bretal – Vamos parar essa dança!
Quintin Pintado – Também vou embora, meu gado está solto.
Milon de Arnoya – E se tivermos que depor na justiça?
Serenin de Bretal – Não vai dar em nada.
Milon de Arnoya – E se acontecer?
Serenin de Bretal – Fecha o bico para os guardas e aguente firme!
(III, 5, p. 136)
As últimas palavras da rubrica revelam a misericórdia que encerram esse texto repleto de imagens brutais:
“Conduzida pela mão do marido, a adúltera abriga-se na igreja, circundada pelo áureo e religioso prestígio que, naquele mundo milagreiro, de almas rudes, introduz o latim ignoto das Divinas Palavras”.
(III, 5, p. 136)
A enorme cabeça do “Idiota, coroado de camélias” figura como um anjo sob o pórtico da igreja românica. Fim da peça.
Voltemos para Nelson Rodrigues.
Misericórdia para a adúltera
Pondé (2019) faz filosofia a partir da adúltera insistentemente presente nas peças, contos e artigos de Nelson Rodrigues. O que representa e qual a carga simbólica dessa personagem?
Por mais contraditório que pareça à primeira vista, o anjo pornográfico enalteceu o amor romântico a ponto de reiterar que “se acabou é porque não era amor de verdade” (RODRIGUES, 2014); entretanto, a incapacidade humana de sustentar essa eternidade tem desdobramentos trágicos. A adúltera é uma escrava do desejo ignóbil, por isso sintetizaria toda a humanidade em sua miséria (PONDÉ, 2019). Ela carrega o pecado na própria carne e esse desejo incontrolável é a razão da sua ruína.
Na filosofia da adúltera rodriguiana, Pondé destaca uma cena em especial: flagrada em traição, a mulher se joga aos pés do marido; ele a perdoa, mas o povo continua a vociferar contra “a vagabunda” e inicia-se um linchamento verbal. O filósofo realça que as outras mulheres se juntam ao coro dos insurretos com ainda mais ímpeto, “porque odeiam aquela que goza mais do que elas” (p. 77). Segundo sua análise, Nelson desconfia de quem insiste na própria virtude e atribui ao povo, essa massa sem rosto, o ódio à misericórdia.
A cena é análoga à última de “Divinas Palavras”, donde se percebe que o pessimismo janseniano e o otimismo teosófico podem ter um olhar comum sobre o ódio da massa e da misericórdia do marido.
Mas Pondé faz um recuo e ainda extrai reflexões sobre o matrimônio em si: o casamento para Nelson seria “um lugar onde se tem o maior grau de solidão” e a mulher, que não suporta os tumultos de um grande homem no marido, adora-os no amante, “que deve ser imprevisível, ter contradições, afetos incontroláveis, coragem para aceitar o risco como parte da vida” (PONDÉ, 2019, p. 95). Vimos essa configuração em “Divinas Palavras”, mas, diferentemente da adúltera rodriguiana destacada por Pondé, Mari-Gaila não sente culpa, é consciente da própria formosura, cruel com o marido, com a filha e com a cunhada. A sua entrada na igreja de mãos dadas com o marido no fim da peça tem mais de resignação do que de arrependimento, mas isso pouco importa: não somos perdoados por nossos méritos, mas por misericórdia. Seja como for, a entrada na igreja indica, senão uma renovação dos laços afetivos, ao menos dos votos matrimoniais. Também em Nelson o adultério pode salvar um casamento, como vemos em vários contos de “A vida como ela é…”.
Mas para seguir adiante, dediquemos um pouco de atenção aos dois homens que compõem o triângulo amoroso da peça, o sedentário sacristão em contraponto à existência errante do amante.
Pedro-Gailo, com quem Mari-Gaila vive seu tédio conjugal, é a pedra angular da igreja local, responsável por suas chaves e obcecado por sua limpeza. Sua linguagem evoca alguma erudição escatológica, apesar da sua mediocridade e inconsistência; avaro e pouco viril, quando provocado por sua irmã, a viúva virtuosa, ele entra num vórtice de desespero e afia uma faca para assassinar a própria esposa. Já no desenlace da trama, diante da humilhante nudez de Mari-Gaila, é ele quem tenta se matar, mas, tendo milagrosamente sobrevivido, dispersa a população com as palavras de Jesus Cristo (Jo 8: 1-11) e a adúltera é surpreendentemente salva, resultado da emoção solene oriunda do latim cujo significado a multidão desconhece. A pronta obediência às palavras do sacristão é enigmática: pode ser uma ironia do autor, sugerindo que aquela população imersa em pecado era incapaz de decifrar os dogmas da própria fé e, como títeres, atendiam mecanicamente aos comandos da religião ou, por outro lado, uma aposta no poder da intuição humana para entrever valores superiores em códigos incompreensíveis.
Compadre Miau, por sua vez, é o meliante que se esquiva dos perigos da vida errante; cometeu crimes, esteve num presídio, troca de nome como quem troca de mulher – Lucero e Sétimo Miau são alguns dos seus epítetos. O Diabo na forma de Bode com quem Mari-Gaila se encontra na volta para casa, cena que termina fundindo tesão e asco, parece ser apenas mais uma de suas metamorfoses (Lucero/Lúcifer). Ora, sabemos que o Diabo era uma obsessão na cultura europeia no fim da Idade Média; sendo as mulheres, segundo a visão da época, seres insaciáveis, quanto mais atraentes, mais suspeitas de terem relações sexuais com o Tinhoso. A relação com esse personagem realça a queda de Mari-Gaila, afinal ela não teria apenas cedido à tentação da carne, mas agido sob possessão diabólica, o que dá contornos mais dramáticos à misericórdia da última cena. Aliás, tal como o personagem de Compadre Miau surgiu no começo da peça, ele desaparecerá sem deixar rastros, outra característica do Coisa Ruim.
Avaliando o conjunto da peça, não existe personagem exemplar, são todos coniventes com a barbárie; para além de uma evidente crítica à Galícia do início do século XX, moral e inescapavelmente degradada, existe aí um exame ontológico sobre a realidade humana.
Nelson Rodrigues também repudiava a realidade cruel e seus cúmplices; se ela é inevitável, o melhor para o homem seria isolar-se no inconsciente. Um exemplo é Alaíde, de “Vestido de Noiva”, que, depois de sofrer um atropelamento, refugia-se em seus delírios enquanto, no plano de realidade, a cirurgia a que ela é submetida continua impregnada de frieza e desumanidade. Já em “Divinas Palavras”, é o anão hidrocéfalo quem está alheio ao entorno. Chamado de Idiota, Monstro e Aborto, todos os outros personagens abusam de sua vulnerabilidade e tentam lucrar com a sua deformidade. Avareza e luxúria se entrelaçam a ponto de levarem o anão a uma morte sórdida, da qual todos são corresponsáveis. O único que se vinga da morte hedionda é o Compadre Miau, que humilha publicamente e corta uma pinta saliente no rosto do principal agitador da brincadeira assassina. Nem o Diabo teria tolerado tanto sadismo…
Para além das adúlteras rodriguianas
Em Nelson Rodrigues, o perdão não é o único desfecho possível para a mulher que trai. Em “A cabra vadia”, de onde Pondé extraiu a cena da adúltera perdoada e humilhada pela população, Nelson também conta o caso de um senador (“patriota de causas sublimes”) que fuzilou sua esposa e ainda cuspiu no seu caixão no fim do velório (RODRIGUES, 2016, p. 122). Lembremos ainda da primeira peça do autor, “A mulher sem pecado”, em que um homem finge ser paralítico para testar a fidelidade da mulher, o que acaba induzindo-a ao adultério, além da célebre dama da lotação,personagem de um conto de “A vida como ela é…”, que aborda homens desconhecidos e com isso leva o marido à morte por desgosto.
Seja como for, a adúltera, como vimos na epígrafe deste artigo, tem um passado do qual não se esquece jamais. Em artigos de O Globo, Nelson Rodrigues criava entrevistas imaginárias em que ambos, ele e o entrevistado, falariam a verdade à vontade. Essas entrevistas aconteciam num terreno baldio, à meia-noite, tendo uma cabra vadia como única testemunha. D. Hélder, uma de suas obsessões, sintetizava o sacerdote que desprezava o papel transcendente da religião e foi um dos seus entrevistados. Nesse diálogo fictício com o personagem real, o passado e a tradição da Igreja seriam facilmente suplantados, a mácula da adúltera, jamais.
Por meio da adúltera rodriguiana, podemos vislumbrar uma reflexão de Nelson sobre afeto e sexualidade: idealizamos um amor que não conseguimos suportar e por isso caímos em pecado. A conclusão é que todos os personagens sofrem, sobretudo a adúltera, pois a realização do desejo não supre o vazio do corpo. Em última instância, ela representaria o necessário fracasso de um animal atormentado por um amor impossível.
No primeiro semestre de 2020, o grupo de pesquisa “Nelson Rodrigues: literatura, filosofia e religião” dedicou-se a investigar a misericórdia nas entrelinhas do autor, tendo como objeto de investigação não a adúltera rodriguiana, mas o sofrimento de mulheres envolvidas em relações “bem-sucedidas”. No livro “Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo”, Nelson responde com um pseudônimo feminino às cartas de leitoras do jornal em que trabalhava; como o título antecipa, não há conciliação factível entre amor e felicidade, e o pior é que não há sequer uma resposta racional para essa incompatibilidade. As relações amorosas são, por natureza, tumultuadas, atormentadas e “sem cura”, e é por causa da certeza desse desassossego contínuo que deveríamos clamar por misericórdia para esses desamparados.
O grupo de pesquisa apoiou-se no autor para pensar nossos dias, quando a solidão, apesar do amor-livre, do poliamor, dos inúmeros aplicativos, da liberdade sexual etc, cresce nas sociedades mais ricas. Ora, é de se supor que a personagem adúltera tenha se tornado obsoleta nesse contexto. Se, como supõe Nelson, o desejo e o afeto se enraízam mais em função do impedimento do que das liberações, o que isso revelaria sobre nós?
Conclusão
“Divinas Palavras” é um retábulo da existência primitiva, da fealdade física e das paixões baixas, mas no seu desfecho prevalece o mistério impenetrável. Assim como em Nelson Rodrigues, a adúltera é digna de misericórdia, não porque ela tenha verdadeiramente se arrependido, mas porque é a mais humana das personagens.
O esperpento de Valle-Inclán radiografa a realidade corrupta e denuncia a brutalidade da Espanha de então, mas, além de provocar o espectador/leitor a assumir uma posição diante do mundo que se desmoronava diante de seus olhos, ele fez uma anatomia da condição humana por meio de temas como o adultério, a luxúria, a avareza, o incesto etc.
A estética deformante do espelho côncavo é o reverso da escrita influenciada pelo realismo cinematográfico de Nelson Rodrigues, mas ambos desnudam uma condição ontológica a partir das vicissitudes do cotidiano.
Nascido num vilarejo na Galícia, Valle-Inclán é um dos mais importantes dramaturgos da história do teatro espanhol, sobretudo porque antecipou propostas estéticas de emblemáticos escritores, com quem aliás já foram feitos muitos estudos comparativos, tais como Bertolt Brecht, J.P. Sartre, Albert Camus etc. Dialogando com Nelson Rodrigues, vislumbramos aqui uma chave de leitura brasileira desse autor cujas obras valeriam o empenho de estudiosos e tradutores.
Referências
BORDANADA, Angela Ena. Sobre la religión y lo religioso en la obra de Valle-Inclán. Revista de ciencias de las religiones, n. 3, p. 33-50. Madri, 1998. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=665879
COELHO, Sérgio Salvia. Divinas Palavras, um auto-retrato dos Satyros na Praça Roosevelt. Folha de São Paulo. Ilustrada. São Paulo, (04/05/2008), p. 2.
INFANTE, Joyce Rodrigues Ferraz. A recepção de Ramón del Valle-Inclán no Brasil: traduções e encenações. Revista Electrónica de los Hispanistas de Brasil, v. 15 – n. 57, jun. 2014. Disponível em: http://www.hispanista.com.br/ artigos%20autores%20e%20pdfs/458.pdf
MAGALDI, Sábato. Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
MYRNA [Nelson Rodrigues]. Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo: o consultório sentimental de Nelson Rodrigues/Myrna; seleção Caco Coelho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
PONDÉ, Luiz Felipe. A filosofia da adúltera – 2. ed. São Paulo: Globo Livros, 2019.
RODRIGUES, Nelson. A cabra vadia: novas confissões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
__________________. A mulher sem pecado. In Teatro completo de Nelson Rodrigues – 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. V. 1
__________________. A vida como ela é… Seleção Ruy Castro. Rio de Janeiro: Editora Record, 1992.
__________________. Vestido de Noiva. In Teatro completo de Nelson Rodrigues, v. 1 – 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
VALLE-INCLÁN, Ramón del. Divinas Palabras: tragicomedia de aldea – 7. ed. Madrid: Editora Espasa-Calpe, 1976.
_______________________. Luces de Bonhemia. Madrid: Austral Clássica, 1999.
[1] Entre os intelectuais e artistas brasileiros, Valle-Inclán ficou à sombra de outros importantes espanhóis de gerações subsequentes, como José Ortega y Gasset, da geração de 1914, e Federico Garcia Lorca, da geração de 1927. Na primeira fase do Teatro Moderno Brasileiro, dos anos quarenta ao fim dos anos cinquenta, houve relevantes montagens de autores estrangeiros em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, no entanto, entre os espanhóis, além dos clássicos Miguel de Cervantes, Calderón de la Barca e Lope de Vega, apenas encontramos referências a Federico Garcia Lorca e Fernando Arrabal. Esse panorama mudou com a fundação da Escola de Arte Dramática (EAD/USP), em 1948, quando o repertório se expandiu consideravelmente, mas mesmo assim Valle-Inclán só se tornou conhecido por aqui na década de oitenta (INFANTE, 2010).