Venho de uma família de professores. Meu pai era matemático, minha mãe historiadora. Minha mãe inclusive foi minha professora em uma das escolas em que estudei: Escola Estadual de Primeiro Grau Deputado Nelson Fernandes. Na minha casa, cresci em meio aos livros, em sua maioria, livros didáticos. Além dos livros, o jornal era um objeto sempre presente nas mãos do meu pai, durante o café da manhã. Esse ambiente professoral de minha infância talvez tenha me influenciado a escolher a profissão que hoje exerço, a de professor.
Aprendi a apreciar a atividade docente olhando para os meus pais e professores, que exerciam notória “autoridade”. Autoridade esta que, nas décadas de 1980 e 1990, significava a excelência do docente, seu profundo conhecimento da disciplina na qual era formado, assim como a generosidade didática em transformar as pedras brutas da ciência em conteúdos acessíveis às crianças e aos jovens. A sala de aula era sagrada, lugar em que ninguém entrava de modo descuidado quando lá se encontrava um professor. Batia-se na porta e perguntava-se ao docente: “com licença, posso entrar?”. O respeito ao docente não estava ligado somente à sua pessoa, mas a tudo aquilo que ele representava: o conhecimento, a formação dos alunos, os livros, os materiais didáticos e, de forma mais ampla, a própria instituição escolar. Havia uma identidade imediata entre o professor e a escola no imaginário popular. Diante disso, ao assumir o ofício de docente, me tornei responsável por um legado, fruto do trabalho árduo de inúmeros colegas que, antes de mim, haviam assumido a tarefa de pesquisar, ensinar, escutar, dar esperança, propor caminhos, estimular, corrigir e abrir as portas do futuro para inúmeras pessoas.
Imbuído dessa responsabilidade, passei boa parte de minha juventude sentado em uma cadeira, debruçado sobre a minha escrivaninha, lendo escritos que meus professores indicavam e as obras que se apresentavam no meio do caminho. Após minha formação em Filosofia, comecei e dar aulas. Primeiro em Centros de Formação de Condutores, depois em escolas do ensino primário e médio. Por fim, encontrei o espaço escolar que mais me agradou, e nele permaneço até hoje: os cursos superiores e de pós-graduação. Posso dizer, então, que percorri quase todos os níveis escolares do Brasil, como aluno e professor.
Hoje, depois de alguns anos de docência, quando lanço meu olhar para o passado, sempre me vejo lendo, ministrando aulas de filosofia ou mesmo lecionando alguma disciplina ligada a esta área. Percebi, então, que existem duas atividades substanciais na vida docente, sem as quais ela se tornaria inviável: pesquisar e lecionar. Contudo, nos últimos anos, algo diferente vem acontecendo.
É difícil ver que a pesquisa e a docência, em algumas as escolas, universidades e Institutos Federais, sejam vistas como atividades de segundo plano, complementares, prescindíveis, dispensáveis e marginais. Além disso, a burocratização educacional tomou conta das instituições. Durante a pandemia, essa precarização teve um aumento hercúleo. Por exemplo, no Instituto Federal de São Paulo foi publicado um documento digno de pesar: “Os estudantes que atingirem a frequência após análise do conselho de classe serão aprovados em 2020 independentemente das notas obtidas neste período”.[1] É claro que houve alunos que assistiram a todas as aulas no período de atividades remotas, tiraram boas notas e foram devidamente aprovados. No entanto, após a publicação de tal resolução, a instituição manchou a sua bandeira com as cores da irresponsabilidade: aprovou aqueles que simplesmente deixavam o seu computador ligado e que, com a câmera desligada, não faziam absolutamente nada. Hoje, alguns desses alunos são docentes, tendo sido aprovados em seus cursos sem saberem o mínimo. Exercem seu ofício em regiões precaríssimas, que necessitariam de um bom professor. Aquela “aura” única, autêntica e quase com valor de culto que pairava sobre a atividade docente e as instituições educacionais está sendo paulatinamente maculada pela inépcia de profissionais da educação que concebem as instituições educacionais como ONGs dispostas a “diplomar” sem verdadeiramente qualificar. Inconformados com tal resolução, muitos docentes cruzaram os braços e não acataram a aprovação automática determinada por aquela resolução que consideravam imoral. Apesar desse ato resistência, as notas que os professores reproduziram em seus diários foram alteradas por terceiros e, em seguida, os docentes foram obrigados a assinar os diários modificados. Essa alteração, a meu ver, tem nome: crime.
Como se não bastasse, os docentes, devidamente concursados para realizar três tarefas – ensino, pesquisa e extensão –, agora são obrigados a fazer o inventário das instituições em que lecionam. Imagine, caro leitor, um professor de 60 ou 70 anos, deitado no chão de uma classe para anotar um número minúsculo que fica colado em cada cadeira, mesa e estante de uma sala de aula, ou subindo em escadas, com caneta e papel em mãos, para registrar o número anexado ao ventilador das classes insalubres em que suas aulas são ministradas. Com todo respeito ao relevante trabalho de inventariar, penso que o Instituto Federal de São Paulo deveria contratar pessoas especializadas para realizar esse trabalho, pois definitivamente não se trata uma atividade docente.
Infelizmente, os professores são vistos pela instituição como uma espécie de “faz-tudo”, “prestadores de serviços”, “mercadorias”, “forças de trabalho” – talvez um “Pereirão” – sempre disponíveis “para assumir atribuições extras, responder a chamados de emergência, ou ser realocados a qualquer momento”.[2] Para não se desgastarem com um processo administrativo ou jurídico – ou para não sofrerem retaliação com horários, denúncias duvidosas na ouvidoria, ou mesmo por medo –, os professores, já esgotados, se submetem a mais uma atividade que os desvia de suas tarefas primordiais, aquelas que aprendi com meus pais e professores: pesquisar e lecionar.
De cabeça em pé – e amparado por um valor grego tão comum aos heróis, a megalopsiquia (μεγαλοψυχία), que podemos traduzir como tomada de consciência de seu próprio valor, de sua excelência (ἀρετή) –, levanto a minha voz, representando o legado docente que recebi, para divergir daqueles que fazem do ambiente educacional uma máquina exclusivamente burocrática, sem nenhum compromisso com os professores, alunos e funcionários. Essas pessoas de carne e osso são atores fundamentais dos espaços que deveriam ser os mais luminosos e instigantes do Brasil: as instituições de ensino. Ao professor deveria ser garantido o direito de lecionar e pesquisar. “Esta liberdade de ensinar não pode ser desligada da liberdade de dizer aquilo que o professor pensa: como o docente poderá formar um pensador se ele mesmo se abstém deste movimento autônomo da razão?”.[3]Assim, faço jus à liberdade de cátedra, direito garantido pela Constituição[4] – mas que, para mim, é um verdadeiro dever, um compromisso com arte de pensar e com a Filosofia –, para reivindicar a permissão para que eu dedique o meu tempo àquilo para o que me preparei com afinco: lecionar, ler, escrever livros, artigos, traduzir, dar palestras, coordenar projetos com os alunos e orientar trabalhos. Seria isso pedir demais?
Se a vida docente for consumida com atividades burocráticas a ponto de desviar a vida do docente do ensino e da pesquisa, então precisamos começar a fazer um inventário, mas o inventarium dos próprios docentes, que terão como causa mortis a insipiência educacional dos administradores.
Referências
[1] RESOLUÇÃO N.º 85/2020, DE 15 DE DEZEMBRO DE 2020. Disponível em:
<https://itp.ifsp.edu.br/files/DAE/Resol_85_2020_Delibera_no_mbito_dos_cmpus_do_IFSP_quanto_aos_procedimentos_dos_resultados_aprovao_e_reteno_4.pdf>. Acesso em 30/08/2022.
[2] Henry Holt apud Zygmunt BAUMAN. Vida para o consumo. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 17.
[3] Andrei Venturini MARTINS. A Verdade é Insuportável: ensaios sobre a hipocrisia. São Paulo: Filocalia, 2019, p. 90.
[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Org. Alexandre de Moraes. 42. ed. São Paulo: Atlas, 2016, art. 206, inciso II
Imagem: Andrei Venturini Martins coordenando pesquisadores no grupo de pesquisa “Estudos Agostinianos”, do LABÔ (foto de Flávia Sarinho)