Pensamento Público

Diásporas: antissemitismos e racismos

Quero cumprimentar inicialmente os organizadores deste evento, Profa. Dra. Anelise Fróes (LABÔ e IBI) e Prof. Mestrando Francisco Carlos Gomes e a parceria do Instituto Brasil-Israel, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ), e o Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ pela realização do simpósio DIÁSPORAS: ANTISSEMITISMOS E RACISMOS, e agradecer o convite para participar dessa sessão de abertura. Agradeço, em particular, à Dra. Andréa Kogan pelo convite.

Não sei se fui convidada porque durante um longo período dos anos que atuei na curadoria do Museu Judaico de São Paulo, antes de sua inauguração, fui uma das encarregadas de um dos aspectos do tema Diásporas Judaicas – que, na prática, resultou em um grande mapa contendo a maior parte das transferências e mudanças territoriais pelas quais o povo judeu passou ou sofreu. Vale conferir o resultado no Museu. Sou do campo da literatura judaica e o conhecimento de mapas e diásporas são pertinentes ao fazer literário. Autores judeus escreveram em diversas línguas ao longo das regiões e países onde viveram e essas condições fazem parte das identidades judaicas contidas em suas obras. O Brasil está incluído aí. E, é lógico, também a identidade brasileira. E até que ponto isso chega? Cada um pode avaliar por si mesmo. A escritora Conceição Evaristo lançará na próxima FLIP o seu conto “Macabéa, flor de Mulungu”, uma releitura do livro A hora da estrela, uma das obras máximas da literatura brasileira, de Clarice Lispector. Clarice foi judia. Conceição Evaristo é negra.

Não há dúvida de que o povo judeu representa o fenômeno clássico da diáspora (ou diásporas) de todos os tempos. A diáspora judaica existe há pelo menos 2.600 anos e talvez até mais. Existiu ao lado de um Estado judeu em funcionamento e, depois, durante quase dois mil anos, sem qualquer Estado reconhecido como politicamente independente. Além disso, durante 1.500 anos o povo judeu existiu sem um centro político efetivo no seu território nacional, ou seja, exclusivamente como uma comunidade de diáspora – tanto que as próprias instituições da comunidade judaica em Israel foram modeladas de acordo com as da diáspora e os judeus funcionavam como uma comunidade da diáspora dentro da sua própria terra. No entanto, o povo judeu não só preservou a sua integridade como comunidade etnorreligiosa, mas continuou a funcionar como uma comunidade política ao longo da sua longa história, através das várias condições de Estado e de diáspora.

Segundo Daniel Elazar, a maioria das análises dos fenômenos da diáspora centra-se no seu estudo como uma categoria sociológica, quer seja considerada um grupo étnico, um grupo religioso, ou ambos. As análises políticas deste fenômeno sociológico vão um passo mais longe para examinar o impacto desta categoria sociológica nas sociedades de acolhimento em que o grupo da diáspora se encontra. Estas são certamente dimensões importantes da experiência da diáspora para os judeus, bem como para todos os outros grupos.

A autopreservação judaica, através da diferenciação religiosa e cultural e da endogamia, é merecedora de um exame sob o ponto de vista sociológico, como, por exemplo, a forma como os judeus, enquanto comunidade da diáspora, criaram um modo de vida próprio, envolvendo um calendário de especificidade diária que estabeleceu um ritmo separado de vida judaica, diferenciando-os dos seus vizinhos. De forma paralela, é possível estudar a natureza da exclusão judaica das sociedades cristã e muçulmana através de uma combinação de atitudes e medidas antijudaicas, por um lado, e do princípio mutuamente aceitável de que os judeus eram uma nação no exílio e, portanto, merecedores de autonomia corporativa, por outro.

O termo hebraico galut refere-se ao conceito de exílio conforme consta na Bíblia, quando os israelitas foram exilados de sua terra para a Babilônia. O conceito de diáspora surgiu na língua inglesa na segunda metade do século XIX. É mais ou menos equivalente a tefutsot, dispersões. Todavia, o termo galut permaneceu entranhado na consciência judaica, referindo-se também ao estado de dispersão, subjugação, sofrimento não só físico, mas também psicológico, espiritual. As imagens de desenraizamento, dispersão e andanças obcecaram judeus por toda parte. Será que devemos passar essa frase para o presente? Obcecam os judeus por toda parte? Os judeus escreveram sobre isso incessantemente, em termos de lamento, ou de justificativa, rejeição ou luta, aflição, desagrado.

O conceito de diáspora, com uma conotação política, sugere dispersão geopolítica. Pode ainda implicar dispersão involuntária de um centro, de uma pátria. Na atualidade, por exemplo, com mudanças nas circunstâncias como a chegada de novas gerações, novas condições sociais e movimentação de um local diaspórico para outro, destaca-se uma população diaspórica voluntária. A população de Israel é de quase dez milhões de habitantes. Há quem declare que um milhão de israelenses vive dispersa pelo mundo. Não sei se confere. Levantamento do Ministério das Relações exteriores brasileiro mostrou que, em 2022, eram 4,59 milhões de brasileiros morando no exterior.

É ainda Daniel Elazar que considera que, com a ascensão do Estado-nação moderno, a noção dos judeus como uma nação distinta no exílio foi abandonada, primeiro pelos construtores do Estado de Israel e, depois, pela maioria dos judeus da diáspora, à medida que aceitaram os termos de emancipação nos países onde viveram e vivem. Simultaneamente, as atitudes antijudaicas de cristãos e muçulmanos, que se desenvolveram numa época em que a religião estava no centro da vida, foram transformadas no antissemitismo moderno.

Há poucos anos o Museu da Diáspora (ou das Dispersões), Beit Hatefutsot, de Tel Aviv, adotou esta visão abrangente do povo judeu, modificou os seus objetivos e adotou o nome de ANU, museu do povo judeu.

Antissemitismo é o termo usado para se referir ao preconceito ou discriminação dirigida contra os judeus. O termo foi cunhado no século XIX e o fenômeno atingiu o seu ápice na era nazista, quando o ódio racial aos judeus, enraizado em conspirações obscuras sobre o poder judaico, culminou no assassinato de seis milhões de judeus europeus. Mas muitos acreditam que as raízes do antissemitismo remontam ao início do cristianismo e à acusação de que os judeus foram responsáveis pela morte de Jesus.

Após o Holocausto, as expressões abertas de antissemitismo deixaram de ser amplamente toleradas na Europa Ocidental e, em alguns países, a negação do Holocausto e a exibição de símbolos nazistas foram criminalizadas. Em 1965, a Igreja Católica adotou a Nostra Aetate, que declarou que os judeus contemporâneos não podem ser responsabilizados coletivamente pela morte de Jesus, eliminando a justificação teológica de séculos de antissemitismo europeu. Esta mudança doutrinária deu início a uma era de reconciliação judaico-católica sem precedentes, embora persistam dentro da Igreja pequenas bolsas de resistência tradicionalista à mudança.

Os fundadores do sionismo e os líderes do Estado de Israel presumiram que a normalização da condição judaica – isto é, a conquista da condição de Estado e, com ela, uma bandeira e um exército – reduziria drasticamente o antissemitismo; contudo, a partir da Guerra do Yom Kipur de 1973, a existência de Israel pareceu gerar o efeito oposto, alimentando o ódio antissemita.

Na contemporaneidade, as expressões abertas de antissemitismo não são amplamente toleradas nos países ocidentais. No entanto, os estereótipos antissemitas clássicos sobre os judeus persistem e ocasionalmente encontram expressão no discurso público. A violência antijudaica e os atos de vandalismo e intimidação continuam a ser um problema global, com um número crescente de incidentes antissemitas relatados nos Estados Unidos e na Europa nos últimos anos. E no Brasil.

A violência antijudaica também tende a aumentar durante tempos de agitação no Médio Oriente, levando a acreditar que a natureza do antissemitismo está se transformando em ódio a Israel, um desenvolvimento que tem sido chamado de “novo antissemitismo”. Nesta visão, a crítica excessiva a Israel ou o desafio ao seu direito de existir ultrapassa a linha entre a crítica legítima e a intolerância antijudaica. No entanto, outros dizem que opor-se às políticas israelenses ou mesmo desafiar o direito de existência de Israel são pontos de vista legítimos e não implicam necessariamente ódio aos judeus.

Estereótipos antijudaicos foram frequentemente usados como pretexto para punição coletiva dos judeus.

No século XXI, há amplas evidências de que o antissemitismo está em ascensão. Os atos de violência contra judeus e instituições judaicas, a persistência de crenças antissemitas sobre o poder judaico e a ascensão de partidos políticos que traficam retórica e ideias explicitamente antissemitas, particularmente na Europa, são todos indícios de antissemitismo persistente.

Em 2004, o então ministro e antigo ativista soviético dos direitos humanos, Natan Sharansky, sugeriu três marcadores para delinear a fronteira entre a crítica legítima e o antissemitismo. No seu “teste 3D”, quando um destes elementos for detectável, a linha foi ultrapassada: padrões duplos (julgar Israel por um padrão e todos os outros países por outro), deslegitimação (a conclusão de que Israel não tinha o direito de existir), ou demonização (considerar o Estado de Israel não apenas como equívoco ou equivocado, mas como uma força demoníaca no mundo contemporâneo).

Em 2016, a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) adotou uma definição funcional para o antissemitismo:

O antissemitismo é uma certa percepção dos judeus, que pode ser expressa como ódio aos judeus. As manifestações retóricas e físicas do antissemitismo são dirigidas a indivíduos judeus ou não-judeus e/ou às suas propriedades, a instituições comunitárias judaicas e instalações religiosas.

O Rio de Janeiro a adotou no dia 3 de novembro, e São Paulo fez o mesmo em 13 de novembro.

Na sua maioria relegados para as periferias políticas desde o Holocausto, os partidos políticos europeus de extrema-direita obtiveram ganhos eleitorais significativos nos últimos anos. As pesquisas mostram que as opiniões classicamente antissemitas continuam a ser comuns. De acordo com a Liga Antidifamação, a maioria dos adultos na Grécia, e mais de um terço em França, nutrem crenças antissemitas, incluindo a de que os judeus têm demasiado poder nos negócios e excessiva influência sobre a política norte-americana. A Liga Antidifamação é uma organização não governamental judaica internacional com sede nos Estados Unidos. Descreve-se como “agência de direitos civis/relações humanas da nação, que luta contra o antissemitismo e todas as formas de intolerância, defende os ideais democráticos e protege os direitos civis para todos através da informação, educação, legislação e defesa”.

Hoje, no Brasil, contamos com diversas entidades e organismos que defendem os mesmos propósitos, como o IBI, Instituto Brasil Israel.

O impacto global na ascensão da extrema direita foi exemplificado em teorias de conspiração generalizadas, que frequentemente utilizavam tradições antissemitas. Mais de trinta por cento dos norte-americanos acreditam que os judeus são mais leais a Israel do que ao seu país de origem. No Médio Oriente, os números são muito mais altos, com mais de oitenta por cento da população de alguns países nutrindo atitudes antissemitas, de acordo com a ADL.

Em muitos países, uma parte significativa da esquerda política tornou-se altamente crítica em relação a Israel, um desenvolvimento inquietante para os judeus que outrora se sentiam confortáveis na esquerda e perceberam que os seus antigos aliados se viraram contra Israel ou contra as políticas israelenses. A veemência da sanha e ataques contra Israel não parece diferenciar entre Israel, israelenses e judeus. 

Em 2021, o presidente Joe Biden indicou a escritora e historiadora Deborah Lipstadt como Enviada Especial dos Estados Unidos para o Escritório de Monitoramento e Combate do Antissemitismo. O advogado e ativista comunitário de São Paulo, Fernando Lottenberg, foi apontado como primeiro Comissário de Monitoramento e Combate ao Antissemitismo da Organização dos Estados Americanos (OEA). Precisamos dessas e outras personalidades destemidas para apontar, execrar e clamar pelos direitos que deveriam há muito ter sido assegurados a todos.

Acredito que todos aqui têm tido acesso às informações e notícias sobre os inúmeros eventos anti – anti que vivenciamos no Brasil, como em muitos outros países; não vamos mencioná-los.

Esporadicamente é assinada aqui uma lei que relaciona ao negacionismo, antissemitismo, racismo, discriminações diversas; a execução de atos que podem ser enquadrados nestes itens é considerada crime.

A Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências.

A mesma lei estabeleceu que “Consideram-se também hediondos, na sua forma tentada ou consumada, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional previstos na Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989”. (Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor).

O inciso XLII do artigo 5º, da Constituição Federal, estabelece que: “A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.”

Para encerrar, uma situação local:

Há pouco mais de duas semanas, informei uma orientanda minha, que vive no interior, e é professora do ensino público, sobre a aprovação da Lei Estadual Nº 17.817, de 27.10.2023, que proíbe o ensino negacionista a respeito do Holocausto nas escolas (Sistema Estadual de Educação Básica), em instituições privadas, públicas, estaduais e municipais localizadas no estado de São Paulo. E que, dessa maneira, esse ensino deverá, segundo a lei, munir os alunos com as ferramentas necessárias para a identificação de discursos de ódio em nossas vidas contemporâneas.

Mais uma boa iniciativa. Resta saber quanto poder ela será capaz de exercer. Segundo a minha orientanda, – reproduzo aqui a mensagem:

Oi, professora, obrigada pelo envio.
Penso que essa lei não vai mudar muito a realidade da escola pública em São Paulo e interior, considerando que com esse novo material digital do Feder não há muito espaço (nem tempo) para estudar a Shoá.
Me parece um PL realizado por pessoas que desconhecem completamente a realidade escolar. Entretanto, a intenção parece boa.
Para a senhora ter uma ideia, a professora da primeira série do Ensino Médio precisou revisar regras de separação de sílabas com os alunos. Não sabem o que é verbo, pronome, substantivo. É um terror.
Imagina a tragédia…

Bem, com ou sem o conhecimento da separação de sílabas, algo que também ajuda a entender um texto e a aprendê-lo e apreender o seu significado, toda ação de combate à desinformação, incitação, antissemitismo e racismo de todas as categorias merece o apoio de todos. Toda ação faz parte de uma guerra que deve ser combatida e vencida.

Meus cumprimentos a todos os expositores que terão certamente muito a nos ensinar no dia de hoje. Esperemos que este dia de estudos resulte em estímulos para o conhecimento e compreensão do próximo para que atos e atitudes espúrios sejam eliminados.

Imagem: Andréa Kogan e Nancy Rozenchan no simpósio DIÁSPORAS: ANTISSEMITISMOS E RACISMOS