
A ascensão de movimentos religiosos como Machonaria[1] e Legendários[2] revela um fenômeno contemporâneo de reconfiguração da masculinidade no campo evangélico, fortemente influenciados por comunicação e capital. Tais grupos, embora se apresentem como iniciativas espirituais e de fortalecimento pessoal, mobilizam um imaginário antigo de poder, autoridade e domínio. Liderado pelo pastor Anderson Silva, o Machonaria propõe uma leitura do homem como “rei, profeta e sacerdote”, retomando o conceito teológico do Munus Triplex Christi[3]. No entanto, essa retomada de papéis bíblicos é filtrada por valores modernos de empreendedorismo, produtividade e domínio econômico.
Ao se afirmar como um resgate, o movimento aponta para uma perda imaginada da masculinidade tradicional, e propõe uma recuperação ancorada em práticas que, historicamente, estão ligadas à exclusão das mulheres e à centralidade do homem como padrão universal. Segundo Hellen Schüngel Straumann e Athalya Brenner, a própria leitura do Gênesis pode ser revista à luz de sua historicidade e recepção. O conceito de masculinidade não é universal, mas culturalmente construído, e não está presente em todas as sociedades. Ao fazer uma leitura do modo de vida clânico no Gênesis, vemos nas mães míticas — Eva, Sara, Agar, filhas de Ló e Tamar — os mesmos padrões repetidos, comparando-as com as de Isaías 57,3-9. Podemos perceber que todas essas mulheres clânicas, por possuírem conhecimentos do reino animal e vegetal, exerceram influência na vida e morte das famílias e dos clãs, e foram gradualmente combatidas pelos grupos de homens ao longo do tempo.
No contexto do Pós-Exílio, as movimentações desses clãs são carregadas de sinais de fertilidade e resolução de conflitos pela solidariedade. A cristalização de textos proféticos com conteúdo negativo contra essas mulheres denuncia, de forma velada, a violência sistemática de exclusão que se instaurou. Nesse sentido, a pergunta sobre qual “resgate” está sendo proposto por movimentos como Machonaria se torna ainda mais urgente.
A evocação do “homem guerreiro”, como figura central do resgate, alinha-se a mitologias patriarcais que emergem da transição das sociedades nômades para a agricultura, com a consequente acumulação de bens e estratificação social. O patriarcado, nesse sentido, não é intrínseco à humanidade, mas resultado histórico de sistemas de poder. Estudos sobre o Pós-Exílio (Is 57) e a influência de mulheres clânicas na profecia apontam para uma história silenciada de resistência feminina, que tensiona a lógica excludente dos movimentos de “resgate”. A crítica ao conservadorismo religioso passa também por seu uso do tabu e da repressão sexual como dispositivos de controle. A ascensão de deuses-guerreiros em detrimento da mulher com sagrada simboliza a institucionalização da violência masculina como força divina. Essa lógica, reiterada por leituras teológicas enviesadas e por tradições filosóficas como a aristotélica, contribuiu para a invisibilização da mulher e sua subjugação.
O Machonaria e Legendário, nesse contexto, pode ser lido como parte do movimento mito-poético masculino, surgido nos EUA com Robert Bly, que buscava restaurar uma suposta essência masculina em resposta ao declínio do patriarcado. Esses grupos oscilam entre a sensibilidade e o sexismo, muitas vezes utilizando a linguagem da crise masculina para justificar práticas excludentes. Ao mesmo tempo, emergem movimentos antipatriarcais e pró-feministas, que tentam ressignificar a masculinidade de modo inclusivo.
A crítica pós-feminista e a teoria queer expandem o debate sobre gênero, mas encontram barreiras no elitismo acadêmico e no tecnicismo de suas linguagens. Como aponta Luiz Felipe Pondé, o risco é que se percam as contradições humanas em nome de uma assepsia moral. Ainda assim, os espaços de escuta e diversidade entre homens crescem, oferecendo alternativas ao modelo patriarcal hegemônico.
O imaginário da masculinidade resgatada se ancora em pressupostos meritocráticos, que exigem do homem a produção de valor e o provimento. A cultura, nesse modelo, explora os homens como descartáveis, exigindo deles performance, competitividade e excelência. O “resgate” proposto é, na verdade, um reforço das tensões e inseguranças que historicamente moldaram a masculinidade. Assim, em vez de uma restauração, estamos diante de uma mitologia, na qual o homem busca no passado respostas para angústias contemporâneas — e o faz, muitas vezes, reproduzindo as estruturas que causaram tais angústias.
Referências bibliográficas
BLY, Robert. *Iron John: A Book About Men*. New York: Addison-Wesley, 1990.
BRENNER, Athalya (Org.). *Gênesis a partir de uma leitura de gênero*. São Paulo: Paulinas, 2000.
DERRIDA, Jacques. *A escritura e a diferença*. São Paulo: Perspectiva, 2009.
FOUCAULT, Michel. *História da sexualidade: a vontade de saber*. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
SANTANA, Marcos Camilo de. O impacto do pluralismo religioso na Igreja brasileira: um estudo de caso. São Paulo: Editora Recriar, 2021.
_______. “Eu sou a Universal”: A reprodução da masculinidade hegemônica no imaginário midiático. São Paulo, Editora Diaconia 2024.
PONDÉ, Luiz Felipe. *A era do ressentimento*. São Paulo: Leya, 2014.
REIMER, Haroldo. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2024.
STRAUMANN, Hellen Schüngel. *Santa Praxedes*. Goiânia: PUC Goiás, 2024.
Notas
[1] Uma confraria nacional de homens, onde se aplicam esforços de empreendedorismo e finanças do homem.
[2] O Movimento Legendários foi fundado em 2015, na Guatemala, por Chepe Putzu, pastor da Igreja Casa de Dios. Trata-se de uma iniciativa cristã voltada à restauração da masculinidade com base em princípios bíblicos, utilizando experiências intensas — como o Desafio TOP, uma imersão de 72 horas na natureza — para promover o quebrantamento espiritual, a superação emocional e o resgate do papel do homem na família e na sociedade. Desde 2017, o Brasil é o país com o maior número de participantes no movimento. Inscrição no valor de $300,00 (dólares). Disponível em: https://legendariosbr.com.br. Acesso em: 21 abr. 2025.
[3] Munus Triplex Christ – No caso da disseminação da doutrina do munus triplex Christi, trata-se de um fenômeno singular na ecumene. Com efeito, esse dogma adquiriu sua forma dogmática depois e não antes da separação das igrejas, e seus enunciados sobre a obra salvífica de Jesus Cristo se impuseram como ensinamento comum, que transcende todas as cisões eclesiais. SCHLINK, Edmund.
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