Resenha do livro The Women Are Up to Something
de Benjamin J. B. Lipscomb
2022
A ética contemporânea ainda lida de alguma forma com o quadro do universo da bola de bilhar. Segundo Benjamin J.B. Lipscomb, autor do livro The Women Are Up to Something, esse quadro de referência da teoria moral dominou Oxford e ainda tem influência. Mas quatro estudantes formadas no espaço vazio deixado pelos jovens combatentes da Segunda Guerra Mundial desafiaram essa abordagem. Seus talentos puderam aflorar em discussões que até então lhe eram vedadas nas universidades. Suas trajetórias diversas contribuíram para apontar as falhas e substituir a conjuntura dominante, que não condizia com as exigências da época ao pensamento acerca da moralidade, e ainda abriram caminho para outras mulheres. As obras de Elizabeth Anscombe, Philippa Foot, Mary Midgley e Iris Mudoch, cujos pais haviam lutado na Primeira Guerra Mundial, ampliaram a compreensão da ética.
O título do livro se refere diretamente ao comentário sobre um protesto de Anscombe contra uma honraria que seria concedida ao ex-presidente norte-americano Harry S. Truman, em 1956. Ela escreveu o texto “Mr. Truman Degree” criticando duramente a universidade e seus colegas que aceitavam tal concessão, sem qualquer questionamento, a um político que havia lançado bombas em civis, as bombas atômicas nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. Essas críticas foram desprezadas, mas a referência ao episódio é mote para o destaque ao propósito pelo qual essas mulheres se levantaram: a necessidade de uma forma diferente de compreensão, de uma nova ética. Anscombe foi mais incisiva na crítica ao quadro teórico dominante, retomando Aristóteles. Foot participou mais ativamente do embate direto na universidade e elaborou concepções em três momentos marcantes. Murdoch, apropriando-se de Platão, usando referências da psicanálise, compreendeu a moralidade como esforço contínuo de nossas mentes e almas, concentrando-se nos conceitos de amor e de Bem.[1] Midgley ampliou seu campo de atenção, relacionando filosofia e ciência, além de ter sido a única a escrever sobre gênero. O livro conta a história dessas quatro mulheres, de sua amizade e de sua luta para se estabelecerem como filósofas em um contexto bastante hostil; nas palavras do autor, “é sobre o poder da junção de circunstância e caráter: sobre quatro pessoas que estavam no lugar certo e na hora certa – e com a companhia certa – para fazer coisas transformadoras e sem precedentes” (p. xi).
Lipscomb faz uma bela apresentação dos percursos das quatro amigas, unindo o tratamento tecnicamente competente de seus escritos e trajetórias à generosidade quanto ao demasiado humano de suas idiossincrasias. O livro se concentra nas alternativas que elas criaram para a ética antirrealista de seus contemporâneos homens, herdada da modernidade, que de modo geral tentou banir os aspectos qualitativos da experiência humana, insistindo no quadro do universo como bola de bilhar, cuja história é muito bem resumida em um trecho-chave do início do livro. O apelo a esse quadro, o paradigma antiaristotélico que exclui todo movimento intencional, toda ideia de propósito ou de ideal, tentando reduzir a natureza e a experiência humana à matematização, era até compreensível como resposta aos absurdos e colapsos da guerra, mas de modo algum teria a capacidade de lidar com esses mesmos absurdos. As revoluções que as filósofas empreenderam dizem respeito à quebra desse paradigma cujo padrão se resume à frase “Para um homem com um martelo, tudo é prego”. Esses homens com martelos, ao simplificarem teoricamente a realidade, defendendo a objetividade e excluindo todo o resto, fizeram com que a teoria tomasse o lugar da própria realidade e, assim, como afirma Lipscomb, tornasse os valores irreais.
No século XIX, a reação dominante a esse paradigma moderno foi o que, no fim do século anterior, Edmund Burke havia nomeado “o sublime”, a reação emocional diante da catástrofe, a cegueira, a morte, o vazio diante de um universo letal, indiferente, sem sentido. Propósito, valor, amor e significado se tornaram irreais. Em sua formação, os estudantes recebiam essa ideia de que os juízos morais expressavam meramente a aprovação ou desaprovação do falante. Esse paradigma moderno que vigora desde o século XVII, e que é o pano de fundo do nosso pensamento, inclui a ideia de que ele é a própria realidade, como insiste o biólogo Richard Dawkins, autor de O Gene Egoísta, e que Lipscomb chama de “o sublime de Dawkins”. Mary Midgley se opôs à concepção de Dawkins, empreendendo um embate bastante significativo.
A filosofia moral dos anos 1930 aos anos 1950, na Inglaterra, estava submetida a essa imagem questionável sobre o que é real e o que não é, e que ainda tem sua ressonância: a expressão, a partir dos intelectuais do Círculo de Viena, fundado em 1929, da dicotomia entre fatos e valores. Os principais representantes do Círculo de Viena, por causa da ascensão do nacional-socialismo, refugiaram-se principalmente nos Estados Unidos, mas também na Inglaterra, onde seus simpatizantes se reuniram na revista Analysis – entre eles, Gilbert Ryle e Alfred Jules Ayer, dois dos maiores representantes e responsáveis pela filosofia moral predominante em Oxford, desdobramento do movimento derivado do Círculo de Viena chamado “positivismo lógico” ou neopositivismo. Essa filosofia moral “científica”, centrada na análise da linguagem moral em detrimento da psicologia moral, defendida também por J. L. Austin e Richard Hare, foi o alvo de contestação das quatro amigas.
O tema da distinção entre fatos e valores passou à primeira ordem no período entreguerras, no qual surgiu a influência da propaganda como um meio amoral de manipular a opinião pública, capitaneado por Edward Bernays, sobrinho de Sigmund Freud – uma espécie de Steve Bannon do século passado, que se tornou o primeiro consultor de relações públicas. Consequentemente, contextualiza Lipscomb, surgiu um movimento de contraposição, de estímulo ao “pensamento crítico” e seu ensino, de combate à confusão entre fatos e opiniões. Como fundamentar da melhor maneira a distinção entre fato e opinião, tema que se tornou ainda mais preponderante nos últimos anos? Lipscomb cita a última pesquisa feita pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, de avaliação da educação em 79 países, da qual um detalhe chamou muita atenção, e foi inclusive amplamente comentado aqui no Brasil: apenas 9% dos jovens de 15 anos conseguiam distinguir fato e opinião. Como melhorar isso? Para Lipscomb, o problema não está nos estudantes ou nos professores, mas na própria distinção. Nos manuais usados nas escolas, as declarações avaliativas se tornam opiniões porque são criados modelos, deixando de lado o mais importante, que é a capacidade de avaliar as situações, o estímulo à capacidade de verificar a veracidade de algo. Nas palavras do autor, cria-se um quadro, um padrão a partir do qual juízos se transformam em meras respostas subjetivas e valores nunca podem ser fatos. Todo movimento intencional, de propósito, é excluído. O quadro de simplificação teórica moderna pela matematização continua a tomar o lugar da própria realidade. A consequência disso é uma concepção ética sem valores, pois eles não se encaixam nessa descrição paradigmática. Os valores se tornaram irreais.
O que desencadeou a contestação desse quadro dominante? Ao assistir à produção German Atrocities, um dos cinejornais mais fortes feito pela Pathé a partir de gravações realizadas por uma delegação do governo britânico em Buchenwald, tendo em vista as dúvidas relativas aos relatos dos crimes nazistas, e que teve como resultado a substituição da descrença por uma experiência que moldou toda uma geração na Grã-Bretanha, Philippa Foot se deu conta de que aquilo não era apenas o resultado de uma decisão pessoal ou a expressão de desaprovação. Havia algo objetivo ali. Lipscomb afirma que Foot não precisaria procurar sozinha as palavras necessárias para dar conta do desafio daquele colapso moral, pois contaria com suas amigas. Cada uma, a seu modo, em momentos distintos, propôs um entendimento diferente daquele que haviam aprendido, uma contrapartida aos desdobramentos do paradigma do universo da bola de bilhar.
A dicotomia entre fato e valor foi endurecida em Oxford pelo já citado Alfred Jules Ayer, autor do livro Language, Truth and Logic, que se tornou um best-seller em 1936 e obteve ainda mais sucesso em sua segunda edição, de 1947. Segundo Ayer, os julgamentos morais simplesmente elogiam ou culpam, não relatam nem preveem. Em parte por sua causa, a ética em Oxford passou a ser considerada um assunto sem objeto, o que, na década de 50, foi reforçado por Richard Hare, autor de The Language of Morals (1952), contemporâneo e grande adversário de Elizabeth Anscombe e, principalmente, de Philippa Foot. Para Hare, não há fatos éticos, mas apenas pessoas vivendo diferentes compromissos éticos. “Tomamos ‘decisões de princípios’, como Hare os chama, e então tentamos viver com eles” (p. 95). De acordo com Lipscomb, Hare estava comprometido com um quadro metafísico no qual as coisas que os nazistas haviam feito não eram objetivamente erradas. Foot e suas amigas estavam determinadas a resistir a esse pensamento.
Elizabeth Anscombe trabalhou com Wittgenstein, algo que afirmava ter sido uma libertação. Considerava como seu mais importante trabalho a Introdução ao Tractatus, que também traduziu. Viu-se impelida a escrever sobre ética por causa do episódio Truman. Seu artigo “Modern Moral Philosophy”, de 1958, se tornou uma das publicações filosóficas mais citadas do século XX. É nesse texto que aparece pela primeira vez o termo “consequencialismo” para designar os trabalhos dos autores que seguiram o utilitarismo a partir de Henry Sidgwick. Em contraposição a essa filosofia moral moderna, o consequencialismo, que chama de filosofia rasa, Anscombe retoma Aristóteles e defende o sentido histórico do uso das palavras. O ponto principal do argumento de Anscombe é a reclamação acerca do absurdo de se aceitar a morte de um inocente, de acordo com a necessidade e aplicação de um padrão, segundo o consequencialismo. Anscombe reconhece o ponto lógico, mas lembra que há outros tipos de inferência racional além da dedução. Apesar de ela mesma manter uma convicção ética própria profunda de temor a Deus, e recorrer muito a Tomás de Aquino, não estendeu sua opção de modo absoluto, defendendo a abrangência e o vocabulário aristotélicos. Anscombe não se dedicou mais à ética, mas estimulou sua amiga Foot com a liberdade que havia aprendido de Wittgenstein.
Anscombe e Foot foram filósofas acadêmicas, permanecendo e produzindo, assumindo enfrentamentos por mais tempo na universidade. Formaram muitos pesquisadores e muitas pesquisadoras, abrindo assim esse outro novo caminho. Mas Foot, segundo Lipscomb, fez o que Murdoch e Anscombe não puderam: ela colocou a alternativa à concepção ética predominante na agenda oficial (p. 191). É de Foot o famoso experimento de pensamento que ficou conhecido como problema ou dilema do bonde: um condutor tem duas linhas de trilhos para seguir; em uma, cinco homens estão trabalhando, na outra há apenas uma pessoa; ele vai matar quem estiver nos trilhos. Seu objetivo com este e outros casos que apresenta no texto, foi demonstrar o problema do consequencialismo, ou seja, que a distinção entre intenções diretas e oblíquas, base da doutrina de duplo efeito – a distinção entre o que se prevê como resultado de uma ação e o que, no sentido estrito, se pretende com essa ação –, de modo algum corresponde a uma resposta simples e imediata para uma situação.[2]
Murdoch e Midgley tiveram carreiras mais inusuais. Apesar de ter permanecido na academia até 1963 e ter escrito uma pequena joia, o livro A soberania do Bem, Murdoch não suportava mais o clima de Oxford. Passou a se dedicar mais à literatura. Midgley saiu da academia em 1951 para se dedicar à família. Manteve seu interesse pela compreensão das continuidades entre seres humanos e o resto do mundo natural por anos. Como destaca Lipscomb, que começa o livro contando seus encontros, chás e conversas com Midgley, se aquilo pelo que se interessava era filosofia ou não, ela não se importava. Era melhor ser amaldiçoada com Aristóteles do que salva com Austin (p. 220). Ela foi uma pensadora multidisciplinar, escrevendo sobre tudo – filosofia, psicanálise, antropologia, biografias – para a BBC. O ponto de virada em sua carreira foi um curso sugerido por David Russell sobre comportamento animal, em 1965. O principal tema de interesse de Mary Midgley foi a multifacetada natureza humana e a inadequação de todos os modos oficiais em tratar o tema (p. 227). Ela lançou Beast and Man, centrado na nossa animalidade, em 1976. Mary Midgley era uma ativista. Tomou parte em várias discussões e lançou vários livros, o último – What is Philosophy for?, de 2018 – um mês antes de sua morte.
Lipscomb termina o livro lembrando, citando Foot, que tudo o que fazemos é conjunto. Somos ajudados, estimulados e colaboramos uns com os outros. Damos continuidade às coisas do mundo com o nosso trabalho. O livro conta parte de uma história de quatro amigas tão diferentes, desafiadas pelo mesmo tempo, criadoras de novos caminhos que podemos também fazer florescer.
[1] Sobre a contribuição de Murdoch, ver o esclarecedor artigo de Flávio Williges “Platão e Iris Murdoch: o Bem, o Amor e a retomada da ética das virtudes antiga na filosofia moral britânica”, Revista Archai, nº 26, Brasília, 2019.[2] Cf. o texto “The Problem of Abortion and the Doctrine of the Double Effect”, publicado na Oxford Review, nº 5, em 1967, e no livro Virtues and Vices, em 2002.