Pensamento Público

Sinuca de bico: a ciência e os significados

A ciência nos fascina. Suas formulações complexas, a partir do que se aprende na escola, podem mudar nosso cotidiano, nossa visão de mundo, hábitos, perspectivas de trabalho. Seu impacto é enorme e todos temos essa noção. Discussões sobre um filme como Oppenheimer, o protagonismo da ciência nos últimos anos por causa da pandemia, as ocasionais disputas sobre a verdade – ora enfatizando a pretensa supremacia da ciência, como no recente livro Que bobagem!, ora relativizando tudo nos achismos dos “influenciadores” – e o vai e vem entre os entusiastas e os alarmistas acerca dos impactos da inteligência artificial conduzem à questão: o que significa a ciência, afinal?

A ciência moderna tem pouco mais de três séculos, período curtíssimo da história da humanidade, mas que provocou impactos profundos e duradouros, criando a modernidade da qual usufruímos as melhores conquistas e sofremos as piores consequências. A ciência foi possível graças à coragem de alguns que enveredaram pela dúvida hiperbólica de René Descartes. Colocar os fundamentos de tudo em questão, transformando a verdade naquilo que os próprios seres humanos constroem, abriu caminho para a realização epistemológica e concreta de tamanho desejo de autonomia. Graças às realizações pela matematização da natureza feitas por Galileu Galilei, pudemos ganhar um mundo novo, móvel, o que desencadeou um processo de ultrapassagem de nossa própria condição. A bomba atômica e a inteligência artificial são desdobramentos não necessários do que se estabeleceu a partir do século XVII.

Concomitante, mas se sobrepondo a esse poder científico – e este é meu ponto – está a política. Nicolau Maquiavel, de modo equivalente a Descartes, fez a apresentação da política moderna. A partir de suas considerações, a política passou a ser a busca de um equilíbrio que nada tem de científico, pois se move aos solavancos históricos e psíquicos, no agitado mar da fortuna, ou seja, da imprevisibilidade. Na política estão implicados interesses, loucuras do poder, do orgulho imposto e ferido, das revoltas e do desejo de segurança. O cálculo matemático nessa seara é sempre parcial e insuficiente, apesar dos teimosos rompantes dos tecnocratas. O ideal de mensuração e controle nos encanta. A política moderna, ao tentar congregar o reconhecimento das diferenças individuais e o ideal de igualdade, permanece no terreno instável das insatisfações e reivindicações. O cansaço em relação às exigências dessa complexidade está atrelado ao atual descrédito da democracia em várias partes do mundo.

A política é a arquitetura das relações entre diferentes agindo como iguais e sua reconfiguração é constante. Há “cálculo”, mas ele é político, não matemático. No uso da ciência e da tecnologia, o que está em jogo é a estratégia de poder político e econômico. Não devemos esquecer que a modernidade se deu nessa união entre ciência, manipulação da natureza, aumento de escala, produtividade, acúmulo de capital, expropriação e tecnologia de ponta. Fato é que se uma descoberta científica for estratégica econômica e politicamente, ninguém vai se importar muito com as opiniões dos cientistas sobre o uso de suas criações. E a opinião pública não resiste a uma boa campanha de marketing. Claro, se a segurança da população for colocada em risco, ela se revoltará e poderá interferir nas decisões. A sanha de lucro e de poder pode ser colocada em xeque quando a ameaça à vida das pessoas for escancarada. O que segura o total desatino talvez seja o que Niels Bohr pensou: diante da demonstração dos terríveis efeitos de invenções como a bomba atômica e a bomba de hidrogênio, haveria um recuo. Tem funcionado, mas nada está garantido.

A vida de perigos da experiência moderna tem trezentos anos, assim como a promessa e a aventura de nossa liberdade. Quem sabe do que ainda vamos usufruir e do que teremos pavor? A sinuca de bico em que nos colocamos a cada nova invenção exige novas reflexões, mas também cria um contexto vulnerável à vaidade de alguns cientistas, que apontam para as pseudociências, e ao ego hiperinflado de alguns empresários, que se aproveitam do fascínio em relação à tecnologia, como a viagem ao espaço e as peripécias com os algoritmos, e criam mais um entretenimento rentável, portanto, estratégico. Mesmo que se considere que a ciência tem um compromisso real com a busca da verdade, ainda que provisória – o que a coloca na posição oposta às bobagens de alucinados que só querem aparecer nessa tresloucada vida paralela de “curtidas” –, ela não é a realidade, o que qualquer cientista com um pouco de informação sobre a história da ciência, e que tenha lido Thomas Kuhn, sabe muito bem.

A vida de cada um e nossa vida conjunta são permeadas por muitas atribuições de sentido e mistérios que não conseguimos alcançar. Uma apreciação sincera, no escuro do quarto, com a cabeça no travesseiro, não escapa a esse assombro: o espanto ou maravilhamento diante dos meandros de nossa condição tão frágil à qual tentamos responder com tantos e extraordinários malabarismos. Às vezes as respostas são comoventes: fazemos catedrais, rituais, obras de arte, músicas e danças de festejos. Às vezes são patéticas, como quando sucumbimos ao medo e nos submetemos a reduções de nós mesmos em seitas e certezas. Os que se declaram donos da verdade querem fugir, mas não há saída. A sinuca de bico é de todos nós.

Imagem: Paul Goyette/Wikimedia Commons

Sobre o autor

Adriana Novaes

Doutora em Filosofia e com estágio de pós-doutorado em Filosofia pela USP. É coordenadora do grupo de pesquisa “A filosofia em Hannah Arendt: significado e experiência viva” no Labô, PUC-SP. Autora dos livros O canto de Perséfone, Hannah Arendt no século XXI: a atualidade de uma pensadora independente e Cultivar a vida do espírito: Hannah Arendt e o significado político do pensamento.