Pensamento Público

De Gattaca à Lombardia: proteção ou segregação?

Há poucos dias, em uma conversa informal, em meio à quarentena e ao “home office”, esbocei uma ideia que, a meu ver, já estava se desenhando no âmbito público: que talvez somente pessoas já vacinadas contra o novo coronavírus fossem autorizadas a voltar a trabalhar. O passaporte para o convívio social e para o trabalho poderia ser, talvez, a carteirinha de vacinação ou coisa equivalente.

Mas, eis que me dou conta de que esta possibilidade está sendo avaliada de forma muito mais concreta e imediata. O tema foi tratado em uma matéria do jornal New York Times de 04 de abril (leia aqui) cujo título é “In Italy, Going Back to Work May Depend on Having the Right Antibodies”. O texto informa que as autoridades italianas estão estudando a possibilidade de permitir o retorno ao trabalho somente às pessoas que possuírem os anticorpos para o novo coronavírus. As discussões estão acontecendo especialmente nas áreas italianas que mais sofreram e estão sofrendo os efeitos perversos dessa pandemia.

O que é interessante e estimula a reflexão neste caso é que, aquilo que, até o momento, parecia tema apenas de obras de ficção científica no cinema ou na literatura, ou ainda de especulações filosóficas de autores explorando possibilidades remotas nos conflitos entre ciência e ética, aparece agora como uma possibilidade real, avaliada por autoridades científicas e políticas, trazendo à tona a possibilidade de um “passe” ou “salvo conduto” biológico que permita aos indivíduos voltarem à atividade econômica ou ao convívio social, como forma de saída segura das políticas de confinamento, isolamento social, lockdown de cidades inteiras em vários lugares do mundo, dado o risco de se gerar uma enorme depressão econômica, não apenas local mas até mesmo em nível global.

Esta possibilidade já fora explorada no conhecido filme Gattaca, de 1997, que apresenta uma sociedade organizada através do controle do DNA dos indivíduos. Aqueles nascidos de forma planejada, com a estrutura genética adequada, que lhes garantiria não desenvolver certas doenças ou deficiências de nascimento (problemas cardíacos, oftalmológicos, capacidade pulmonar, etc., apenas para citar alguns), poderiam ter a plena cidadania e ocupar qualquer posição naquela sociedade. Já os que haviam sido gerados de forma espontânea, pela atividade sexual, portanto, que se submeteram ao acaso que se impusera sobre sua estrutura genética, seriam relegados a funções secundárias, de menor responsabilidade, de menor alcance, porque não se poderia confiar tarefas de alta complexidade ou exigência física e intelectual, a pessoas que, repentinamente, pudessem desenvolver certas doenças ou limitações, o que imporia perdas à empresa ou à sociedade. No caso do filme, o que está em jogo é o desejo de um jovem de se tornar astronauta e sair da Terra, objetivo inalcançável uma vez que ele tinha sido gerado em um ato sexual entre seus pais e não por geração assistida e seleção genética, como era o caso de seu irmão. O filme explora esta condição de impossibilidade que a personagem vivida por Ethan Hawke enfrenta, pois ele era o indivíduo gerado em um ato sexual. Toda a sociedade está organizada em função da testagem contínua do DNA do indivíduo, para verificar sua condição de pertencimento ou não à classe genética dos que tinham direito e acesso às funções mais importantes e hierarquicamente mais elevadas.

Este também foi o tema debatido em 1999 pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk, na conferência que foi publicada em forma de ensaio e livro, sob o título de “Regras Para o Parque Humano”, publicado no Brasil pela Editora Estação Liberdade. No texto, Sloterdijk está discutindo, entre outras coisas, a possibilidade de que a biologia, em especial no campo da genética, pudesse cumprir o papel que a cultura não teria sido capaz de suprir, qual seja, de ser o elemento de aperfeiçoamento da raça humana de forma a que esta fosse capaz de controlar seus impulsos destrutivos. Sloterdijk se refere a este processo como o de “domesticação” do ser humano. Mas, isto poderia significar o risco de que uma nova classe surgisse em nossa sociedade, não mais uma classe socioeconômica, mas uma classe definida pela característica biológica. E o autor sinaliza que é preciso discutir esta possibilidade, considerando seus riscos e o caráter de imprevisibilidade a ela inerente, ainda que a justificativa fosse a de que a seleção genética seria uma forma de “aperfeiçoamento” da raça. O problema é que esta é uma afirmação que carrega o pressuposto de que as escolhas das características genéticas desta sociedade serão “boas” porque nós a teríamos escolhido visando o “bem” delas. Não é preciso estender a discussão para se ter claro o quão imprecisos e sujeitos a dúvidas são estes pressupostos e ideias.

Esta possibilidade que o governo italiano está estudando coloca mais uma vez à mesa o tema do conflito ético entre a ciência e a política, entre direitos individuais e o bem coletivo, entre uma ética utilitarista e outra deontológica. Se olhado de forma imediata, o bem que se pode extrair parece muito evidente: sob o argumento de que se está produzindo a proteção dos não portadores dos anticorpos – não a discriminação – e a retomada da atividade econômica, estuda-se a institucionalização da diferenciação entre indivíduos mediante características biológicas. Os portadores dos anticorpos teriam seus direitos restabelecidos e poderiam voltar à vida social normal. Os demais deverão guardar alguma forma de restrição, confinamento, quarentena ou qual seja a forma de contenção estabelecida pelo seu governo.

A matéria do jornal deixa claro que muitos cientistas afirmam que não se sabe ainda os fatores que diferenciaram as pessoas que desenvolveram sintomas mais graves da doença daquelas que tiveram sintomas leves, se as pessoas que não contraíram já tinham os anticorpos ou se tinham outros fatores de proteção, ou, ainda, quais são as características precisas destes anticorpos e se isso muda de população para população.

Mas, mesmo diante destas incertezas técnicas, fica a possibilidade de que um critério técnico e material possa, mais uma vez, se impor sobre um aspecto ético da convivência humana: até que ponto uma sociedade está justificada em institucionalizar a diferenciação entre os indivíduos. No lado mais negativo desta história, já assistimos por muitos séculos o uso de vários modos de segregação: sexo, cor da pele, etnia, religião, condição econômica, direitos de nascimento, dentre outros. O século XX viu até mesmo o modo mais perverso e maléfico de uso racionalizado, institucionalizado e industrializado de estabelecer a distinção e produzir políticas de estado para o genocídio. A escravidão moderna, baseada na cor da pele, é outra conhecida forma de estabelecer a distinção e submeter populações inteiras a condições desumanas de existência.

O fato de os governos, como o chinês, estabelecerem o lockdown total de uma cidade como Wuhan causou-me enorme espanto à época. Parecia-me que somente um regime totalitário como o chinês poderia produzir tal grau de limitação. Mas, qual não foi a surpresa quando regimes democráticos começaram a seguir o mesmo procedimento. Quando se avalia que são decisões que se toma em momentos de crise, no caso atual, de emergência sanitária, somos levados a admitir a necessidade e aceitar estas limitações pensando no bem comum, no interesse de sobrevivência de todos, ou ao menos da imensa maioria. Mas, quando se avalia que se pode gerar políticas públicas baseadas mais uma vez em dados biológicos para estabelecer categorias diferentes de indivíduos e, portanto, de cidadãos, não é nada ilegítimo que se levante imediatamente o questionamento ético a respeito, para se evitar que, mais uma vez, regimes que já flertam com a ditadura, encontrem argumentos para estabelecer políticas públicas de segregação, controle e neutralização de pessoas. E, também, de se evitar que regimes ainda democráticos afrouxem suas regras de pesos e contrapesos e permitam que seus governantes eleitos façam mau uso destes argumentos para se perpetuarem no poder através de formas institucionalizadas de discriminação.

Para alguns, isso pode parecer um exagero, um negativismo apressado, uma perspectiva apenas ficcional, que não é bem assim que somos, etc., etc. Mas, no fundo, sabemos do que somos capazes como seres humanos, sabemos do que os poderes políticos são capazes. Então, toda discussão neste campo das liberdades e direitos fundamentais, tão duramente adquiridos, nunca perde a legitimidade.

Imagem: divulgação Gattaca/Columbia Pictures

Sobre o autor

Luiz Bueno

Bacharel e Mestre em Filosofia, Doutor em Ciências da Religião e coordenador do Núcleo de Filosofia Política do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.