Consumo de tecnologias e informações em saúde: queremos chegar à ciência de cidadania ou continuar com os coletivos biomédicos? $aúde 4.0, a opção do meio!
“To be a scientist is to be naïve. We are so focused in our search for truth, we fail to consider how few actually wants us to find it. But it is always there, whether we see it or not, whether we choose to or not. The truth doesn’t care about our needs or wants; it doesn’t care about our governments, our ideologies, our religions. It will lie and wait for all time. And this, at last, is the gift of Chernobyl. When I once would fear the cost of truth, I now only ask – what is the cost of lies?” Frase final do 5° e último capítulo de Chernobyl, seriado da HBO[1] – colocada na voz de Valery Legasov – o físico chefe da delegação soviética para conter e investigar o acidente de 1986, em Pripyat na, então, URSS.
Apertei pause/play e rewind à exaustão para poder captar o conteúdo deste último monólogo, transcrito acima ipsis litteris, enquanto observava os detalhes da estrada vazia por entre altíssimas árvores das estepes russas, nesta última sequência que passa repetidamente pela tela da televisão. Assim funciona a mente de um pesquisador: observando curiosa e repetidamente padrões, em busca de pistas – evidências científicas – de algo que aconteça de forma sistemática, passível de ser replicada sob as mesmas condições, ou que se destaque por sua notória novidade capaz de causar aquela sensação de ‘esquisitice’ até que… Eureka!
Lembrei-me da verdade descoberta em sonho pelo homem ridículo de Dostoiévski[2] (outro russo, ocupante sem-terra de corações cerebrais como o meu): ‘a’ verdade que tira o narrador-personagem suicida de um sonho – uma vida ridícula – e o traz de volta ao mundo dos vivos é a presença inexorável da beleza e do amor no mundo. Ele volta para espalhar essa verdade, afinal, de que serve sabê-la se não for para permanecer no mundo para contá-la? Se voltarmos à primeira sequência do seriado Chernobyl, lembramos que o personagem de Legasov comete suicídio logo após gravar e ‘esconder’ fitas cassete contando a história da vida real – não a mentira barata que contaram ao mundo.
A verdade não é uma evidência cientificamente replicável em bancadas de laboratório. Muito menos da forma controlada em amostras suficientemente grandes para conseguirmos alcançar um desvio padrão que caracterize algum ‘p’ estatisticamente significante sobre tal associação com o alcance de uma suposta verdade, como dita a indústria dos estudos clínicos randomizados que busca evidências científicas sobre custo-efetividade e segurança. Segurança… será? Dizem que evidências de mundo real (“real world evidence”) trarão à força, graças à inteligência artificial, a real(idade) verdade científica sobre todos nós. Mas a verdade também não reside em um algoritmo que, lendo os prontuários de centenas de milhares de pacientes suicidas, supostamente consiga estabelecer um ‘ponto de corte’ sobre quais seriam as barreiras e os facilitadores biológicos (genéticos e epigenéticos), psico-comportamentais, socioculturais, político-econômicos ou mesmo ético-regulatórios que sinalizem bandeirinhas vermelhas de alerta nestas grandes bases de dados da vida real, que se abrem para a análise e validação humana da atividade automatizada criada pela ciência de dados e da informação. Mesmo que assim o fizéssemos, ainda não saberíamos nada sobre essa tal verdade, mas muito sobre como repetir, de forma controlada, a experiência do homem ridículo, ou de procurá-lo na multidão, sem nunca verdadeiramente saber se a alcançamos por não conhecer ‘a’ bendita verdade… Legasov nos conta a verdade sobre Chernobyl no seriado porque houve afeto, mas isso lhe custou a vida!
Para que desenvolvemos conhecimento científico e produzimos novas tecnologias? Para contar alguma verdade sobre quem somos, de onde viemos, por que aqui estamos, e para onde vamos – ou para onde podemos ir, mesmo que seja para a mesma direção de onde viemos? Produzimos conhecimento e tecnologias como pílulas de conforto em uma realidade vã de massacre diário, distanciamento, consumo e sinestesia cultural sobre o fato de que todos caminhamos para o mesmo fim. Afinal, viver não é apenas sobreviver! Vivemos às voltas com mentiras baratas, achismos, ações governamentais fomentadas por interesses político-econômicos, ideologias, religião ou necessidades e desejos individuais para chegar a conclusões não-convincentes nem embasadas em evidências científicas sobre tudo aquilo que um grupo privilegiado de pessoas profissionalmente treinadas na verificação sobre nossa realidade não podem, ou não conseguem, por falta de melhor treinamento em comunicação, informar sobre verdades custosas. Começou a enxergar estrelinhas num breu de dar inveja a qualquer buraco negro?
Voltemos à Terra, a você… Qual foi a última vez em que ficou doente? Foi virose? Ou você pegou sarampo, graças aos adeptos do movimento anti-vacina? Já percebeu quais as consequências de mundo (bem) real devido à falta de apenas uma vacina – (efetiva e segura) para covid-19? Quanto você pagaria por uma tecnologia em saúde capaz de lhe fazer imune a qualquer tipo de doença infecciosa? Você é millennial, não é? Se não for, é baby-boomer, convive com millenials e sabe do que estou falando. O treino do Cross-fit ‘tá pago’, mas você adoraria praticar esportes para além do Ibirapuera, afinal, para que tanto dinheiro gasto em consultoria, alimentação, equipamentos, coaching e passagens e mais passagens para participar de corridas ‘gourmetizadas’,‘branded’ … Quanto você pagaria por uma tecnologia que lhe ajudasse a correr mais rápido, a saltar mais alto, a pedalar por mais tempo? De repente, você virou atleta amador, ou ainda: influenciador digital fitness! Dá dinheiro! … E muitos presentinhos além de alguns privilégios na eterna #gratidão. Você poderia comprar um acompanhamento em medicina de precisão que lhe ajudasse a adiar nosso fim inevitável para continuar com sua performance de atleta aos 22 anos. Já pensou nisso? Um dos magos do desejo, Walter Longo nos apresenta uma interessante reflexão em entrevista com nosso diretor Luiz Felipe Pondé, no Democracia da Teia[3], sobre como produzimos e utilizamos tecnologias. Ele também nos conta sobre ‘exteligência’, sobre consumo e sobre a ‘idade mídia’: aparentemente, saímos há bem pouco tempo da idade média, com a revolução na maneira através da qual nos comunicamos hoje em dia. Não por acaso, assisti a esta entrevista devido a um aviso do meu perfil no YouTube, que recebo no smartphone e via Gmail, todas as vezes em que há algum conteúdo novo nos canais que assino sobre tecnologia, política, comportamento e mídia, ou via o ‘algoritmo’ mesmo. Acha que isso não tem nada a ver com $aúde4.0?
Hoje em dia, não existem coincidências, existem algoritmos lendo e ouvindo tudo sobre a sua vida e a daqueles com quem você se relaciona, presencial ou virtualmente, a partir do seu smartphone (o nome já diz tudo, né? Bobo de quem ainda não percebeu). A chave está na comunicação. No mesmo dia em que assisti a esta entrevista do Democracia na Teia, o Android do meu telefone me sugeriu avançar nesta reflexão com o conceito de inteligência coletiva cunhado pelo filósofo Pierre Levy ao me recomendar a entrevista (e vídeos) dele à Folha de São Paulo em 09/09/2019[4], concedida logo antes de um evento que o trouxe de volta ao Brasil para falar sobre o tema para o Fronteiras do Pensamento, em antecipação a seu livro sobre IEML (Information Economy MetaLanguage) – algo que ele espera que só alguém muito ávido por ‘verdades custosas’ esteja aguardando para ler. Afinal, a vida é maior que a sua explicação, mas, se soubéssemos nos comunicar melhor através das gerações e culturas, talvez (tal-vez) algo de mais significativo pudesse emergir deste mar de fotos vazias de sentimento e repletas de ha$htag$ que inundam nossa timeline nas mídias sociais digitais. Alguém achando que isso é algo que só o Zuckerberg, o Dr. Google e a dona da 23andMe querem de nós?
A Wellcome Trust iniciou um projeto chamado Wellcome Photography Prize, em 2019[5], para premiar fotógrafos profissionais, estudantes ou amadores que consigam trazer narrativas visuais que nos contem histórias convincentes sobre os desafios em saúde, hoje em dia, sob a perspectiva daqueles que os vivenciam diariamente. Se você acha que só apareceram questões sobre epidemias como a do Zyka-vírus no Brasil, ou sobre como mulheres que fizeram mastectomia recorrem à tatuagens como forma de aceitação de seu novo corpo mutilado, você está precisando rever seus conceitos sobre saúde global – ou ‘glocal’ – ou mesmo sobre o que significa luxo e necessidade em saúde, hoje… Instituições de saúde para idosos, em diversos países, começaram a experimentar ‘Zora, o robô-cuidador’ pois, segundo Joanne Liu, presidente internacional do Médicins Sans Frontières “we have an aging population across the world and we don’t know yet how to tackle that. Maybe, in the future, our only companion would be a robot, and so I think it speaks to how we are, as a society developing”. Bem, seja você millennial, baby-boomer ou qualquer dessas outras gerações inventadas pela propaganda e marketing, tenho certeza de que ficou curioso em verificar, pelo menos, quais são os países testando o Zora – spoiler-alert! –, se serviria para crianças, se é preciso algum tipo de supervisão humana para seu manejo, o valor desse tipo de tecnologia e se ele serviria apenas para o cuidado supervisionado ou se estaríamos criando novas formas de relacionamento com as tecnologias do dia a dia. Afinal, segundo uma das netas das usuárias: “My grandmamma was an extraordinary doctor and one of the cleverest people. During the last years before she passed-away we spoke online every day. I remember our online call (Senegal-Crimea) and she told that her iPad was the best device for her during these last years because we could stay in touch all the time. Of course, technologies can’t create love by themselves, and I am scared by technologies as a lot of us are, but sometimes technologies really can connect us together”.
Ainda pensando que tecnologia em saúde não se trata de comunicação e consumo? Think again!
Começamos o $aúde 4.0 com esta introdução estético-informacional para pensarmos sobre se e como podemos migrar dos coletivos biomédicos (a forma já desgastada e que apenas aprofundou o vale entre aqueles que produzem o conhecimento científico e as novas tecnologias em saúde e os que as usam, seja para si ou aqueles com os quais profissionais, gestores e cuidadores em saúde apoiam sua implementação) para a ciência de cidadania – a tal citizen science, apressadamente traduzida para o português como ‘ciência cidadã’, da qual quase ninguém sabe de que já participa, ou se gostaria de participar! Mas será que é esta a solução que precisamos? Ou haveria um caminho do meio? Como os coletivos biomédicos ‘came to be and to control both biomedical and health sciences’ (i.e. indústria farmacêutica e da saúde) até os dias atuais, com a virada da era da genômica pós-big data?
Se qualquer uma dessas informações ou questões que coloquei lhe causou algum afeto, convido você a ler e assistir aos referenciais estético-informacionais citados acima e a vir conversar sobre como articulamos estas questões e aprendemos a partir das vivências nas áreas das ciências naturais, biomédicas, da saúde e da vida, humanas, sociais, políticas e aplicadas, neste primeiro semestre de encontros do nosso novíssimo ‘$aúde4.0’. Neste primeiro ciclo, faremos um exercício de ‘thinking and learning’. Nosso objetivo é alinhar diversas fontes de informação, conhecimento e conteúdo que nos auxiliem a articular quais são as verdades custosas sobre os mundos translacionais da governança da medicina de precisão e análise de big data que têm migrado da bancada para o leito e, mais recentemente, para a internet a um toque de distância nos aplicativos em nossos smartphones na palma de nossas mãos. Quais tipos de conteúdo informacionais criamos, coletamos e compartilhamos para que sejam sistematicamente analisados por algoritmos e ‘bots’ que literalmente invadem nosso dia a dia em conversas via aplicativos para criar estatísticas individualizadas e coletivizantes sobre nossos hábitos e comportamentos? A partir de diálogos sobre estes temas, temos produzido textos sobre assuntos que efetivamente estamos observando (cientificamente, com base nas abordagens dos estudos sociais da ciência e tecnologia) como chaves durante os encontros, para estabelecermos diálogo com parlamentares, tomadores de decisões em níveis municipal, estadual e federal, instituições de saúde públicas e privadas, e com você, caro leitor, sobre qual caminho queremos traçar com o setor $aúde4.0, hoje, para construirmos o setor Saúde que queremos para o Brasil. Afinal, somos um think tank!
Leia a primeira parte deste artigo: Verdades custosas (I) – Pandemias
[1] Chernobyl. 2019. Direção: Johan Renck; Produção: HBO e Sky Atlantic. Warner Bros Television Distribution, (360min).
[2] Dostoiévski, Fiodor. 2003. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem ridículo / Fiodor Dostoiévski; tradução de Vadim Nikitim – São Paulo: Ed. 34, 128p.
[3] Pondé, Luiz Felipe. 2019 Democracia da Teia: O que é idade mídia? Com Walter Longo. (30min26s). Disponível em: <https://youtu.be/wk6UMcnI0Fg>. Acessado em: 8 Set 2019.
[4] Hernandes, Raphael. 2019. Tecnologia pode tirar ciências humanas da Idade Média, diz Pierre Lévy. Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/09/tecnologia-pode-tirar-ciencias-humanas-da-idade-media-diz-pierre-levy.shtml>. Acessado em: 09 Set 2019. *Veja os vídeos distribuídos pela matéria e os seguintes também: <https://youtu.be/_cMKAQjK0R8>, <https://youtu.be/sMyokl6YJ5U>.
[5] Wellcome Trust. 2019. Photography Prize 2019 series. Disponível em: <https://www.instagram.com/wellcomephotoprize/>, <https://www.instagram.com/p/BzYblN8lp5L/>, <https://www.instagram.com/p/BzfgyOIDSbg/>, <https://www.instagram.com/p/B0Yzdqole0B/>, <https://www.instagram.com/p/B0d9EpPgZ9t/>, <https://www.instagram.com/p/B0jGovAFYuv/>, <https://www.instagram.com/p/B0oQPMcnZOo/>, <https://www.instagram.com/p/B0tZ0P6lRDE/>, <https://www.youtube.com/watch?v=RdmX9Y62BcQ>. Acessado em: 18 Out 2019.
Imagem: montagem sobre originais NIAID e iStockPhoto