Em 29 de maio de 2006, uma chuva fina caía em Auschwitz quando o céu clareou e abrigou um arco-íris.
“Em um lugar como este, faltam palavras. No fim, pode haver apenas um silêncio no qual um coração clama por Deus. Por que, Deus, o senhor permaneceu em silêncio? Como pôde tolerar tudo isso? Onde estava Deus naqueles dias? Por que ficou ele em silêncio? Como pôde ele permitir esse massacre sem fim, esse triunfo do mal?”[1], discursou o Papa Bento XVI.
Antes da cerimônia, ele passou pelo portão com a inscrição “Arbeit macht frei” (o trabalho liberta) e encontrou 32 dos 200 mil sobreviventes do paredão da morte. O papa ainda confessou “Para um cristão e para um Papa alemão é difícil estar no lugar símbolo do Holocausto, crime sem equivalente na História.”[2]
Na tentativa de encontrar uma linguagem religiosa com a qual se possa expressar a nossa compreensão do Holocausto, Peli (1982, pp. 21 – 31) formula alguns modelos, tal qual o modelo E, no qual o silêncio é uma resposta religiosa legítima ao nosso respeito pelas vítimas, quando o mesmo pode sim ser traduzido em palavras, no entanto a mudez é exigida, como a de Iov, que surgiu após sua conversa com Deus e não em lugar dela. Segundo André Neher, em L’esilio della parola. Dal silenzio biblico al silenzio di Auschwitz, “Somente o homem pode decidir aquilo que, em uma determinada circunstância, é certo ou errado fazer. Nesse sentido, Deus se retirou ao silêncio, evitando indicar-lhe o caminho, não para se afastar do homem, mas para encontrá-lo. Para lhe entregar toda a sua liberdade. Até mesmo a de ‘traí-Lo’.”[3]
“Se existe Auschwitz, não existe Deus”[4], afirmou Primo Levi, nascido em Turim, em 1919. Embora tenha recebido seu doutorado em Química, em 1941, ao fim da vida afirmou “Minha verdadeira universidade foi Auschwitz.”[5] A questão da não existência de Deus, trazida por Levi, é mencionada, de certa maneira, no modelo G de Peli (1982, p. 34), que pressupõe a morte de Deus, que existiu uma vez, mas em certo momento deixou de existir, retirando-se em eclipse permanente. Levi compara Auschwitz ao inferno retratado por Dante, em sua obra A Divina Comédia. Em apenas duas linhas, consegue descrever a vida nesse inferno: “Todos os dias, segundo o ritmo pré-estabelecido, Ausrücken ed Einrücken, sair e regressar; trabalhar, dormir e comer; adoecer, restabelecer-se ou morrer”.[6]
Por outro lado, Martin Buber não enxerga a morte de Deus, senão o seu eclipse – “Um eclipse do sol é algo que tem lugar entre o sol e os nossos olhos, não no sol mesmo” (BUBER, 2007). Quando pensamos que ele não mais existe e que fomos abandonados, acontece a conversão tão esperada por Deus, em que a redenção a nós reservada pode se transformar em nossa própria redenção. A liberdade moral concedida ao homem sobre as questões éticas gerou um genocídio sem proporções, mencionado inclusive como um fator de legitimação da necessidade de um país para o povo judeu na Declaração da Independência do Estado de Israel. (MICHMAN, 2003, p. 307). De acordo com Ariel Finguerman, em entrevista concedida para a Revista do Instituto Humanitas Unisinos, em 2013, acerca de seu livro Teologia do Holocausto, “A Bíblia nos diz que Deus ‘oculta sua face’, isto é, afasta-se eventualmente dos assuntos mundanos, tanto como punição ao pecado quanto pela própria característica da divindade. É um Deus que eventualmente se distancia de nós. É uma forma de responder onde Ele estava.”[7] O modelo F (PELI, 1982, p. 32) sugere que Deus escondeu seu rosto, fazendo jus a seus atributos, às vezes escondido, às vezes revelado, como vemos em Deuteronômio 31:17-18 “… esconderei o meu rosto dele, para que seja devorado; e tantos males e angústias o alcançarão, que dirá naquele dia: Não me alcançaram estes males, porque o meu Deus não está no meio de mim? Esconderei, pois, totalmente o meu rosto naquele dia, por todo o mal que tiver feito…”.
O Holocausto ameaçou a perpetuação do povo judeu – seja fisicamente, seja espiritualmente – e abalou as estruturas da fé de um povo que sempre reivindicou um relacionamento especial com Deus, dotado de bondade, justiça e preocupação com suas criaturas. Conclui Finguerman (2002) que, embora Deus seja perfeito, ele fez um mundo imperfeito; no entanto, quem realiza o mal é o homem. O Holocausto é, assim, o sintoma do colapso moral da humanidade, razão pela qual a pergunta a ser feita não é “onde estava Deus?”, mas “onde estava o homem?”.[8]
Bibliografia
BUBER, Martin. Eclipse de Deus: considerações sobre a relação entre religião e filosofia. Rio de Janeiro: Verus, 2007.
https://7cantosdomundo.com.br/visita-a-auschwitz-parte-1/
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2905200604.htm
https://www.dw.com/pt-br/primo-levi-os-100-anos-de-uma-testemunha-do-holocausto/a-49816303
https://www.icatolica.com/2016/07/ha-10-anos-bento-xvi-estremeceu-o-mundo.html
http://www.ihu.unisinos.br/591328-primo-levi-os-100-anos-de-uma-testemunha-do-holocausto
http://www.morasha.com.br/biografias/primo-levi.html
KOLITZ, Zvi. Yosl Rakover le habla a Dios. Safed. 2008
MICHMAN, Dan, Holocaust Historiography, Vallentine Mitchell, 2003, Págs 303-328
“Onde estava Deus?” Por que Auschwitz é o símbolo do mal
PELI, Pinjas H. Búsqueda de un Lenguaje Religioso para el Holocausto. Majshavot
Referências
[1] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2905200604.htm
[2] https://www.publico.pt/2006/05/29/jornal/onde-estava-deus–nos-tempos-de-auschwitz-81498
[3] http://www.ihu.unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/564290-todos-os-sons-do-silencio-de-deus-artigo-de-roberto-esposito
[4] “Onde estava Deus?” Por que Auschwitz é o símbolo do mal
[5] https://www.dw.com/pt-br/primo-levi-os-100-anos-de-uma-testemunha-do-holocausto/a-49816303
[6] http://www.morasha.com.br/biografias/primo-levi.html
[7] http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/4879-ariel-finguerman
[8] https://outline.com/nxjnZL
Imagem: Kallerna/Wikimedia Commons