Resumo: Inspirado nas reflexões de Nelson Rodrigues, este artigo pretende refletir de forma literária o atual cenário político brasileiro. Para isso, pretende-se ilustrar por meio de passagens da obra do autor aspectos relativos à atemporalidade dos escritos, pois exemplificam fatos concretos que ocorreram na época em que o autor os escreveu e também no período que antecedeu as eleições de 2018. Ainda, o artigo traça um paralelo em relação aos nomes encontrados nas obras de Nelson em relação à realidade do atual estado democrático do Brasil.
Palavras chave: Literatura. Política. Democracia. Atemporalidade. Nelson Rodrigues.
“O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: – um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro e não entranhas vivas”.[1]
Este artigo pretende fazer uma análise literária, psicanalítica e existencial do cenário político pré-eleições de 2018, à luz da obra de Nelson Rodrigues. As análises aqui contidas foram feitas e discutidas ao longo do segundo semestre de 2018, em um grupo de pesquisa sobre Nelson Rodrigues no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ, com a coordenação do Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé.
Inicio este trabalho com as seguintes indagações: Vivemos em tempos de consciência ou inconsciência social? Utopias? Distopias? Democracia ou antidemocracia? Vivemos em tempos de maturidade social e política ou residimos em uma adolescência inconsequente? As indagações serão eternas?
Acrescento: O que é certo ou errado? Temos uma consciência moral, construída pela sociedade, que nos diz o que é o certo e o que é o errado. Mas não é deste espaço da consciência moral que pretendo partir ou me basear, dentro das reflexões que farei de Nelson Rodrigues nos dias de hoje, até porque Nelson não se prendia às construções morais e sociais em sua escrita. Ele apenas escrevia. A fonte da escrita de Nelson não é a fonte do certo e errado vivenciado pelo politicamente correto. Sua fonte é exatamente o espaço, onde o certo pode ser errado e o errado pode ser certo. Escrever neste espaço não quer dizer que Nelson não sabia o que era certo e errado. Ao contrário. Quer dizer que ele teve coragem de mostrar em sua escrita que nem sempre sentimos o certo no momento certo e o errado no momento errado e que, às vezes, ou quase sempre, sentimos o certo no momento errado e o errado no momento certo.
A escolha do tema, a leitura democrática de Nelson Rodrigues nos tempos atuais, está intrinsecamente ligada à tensão, à angústia e ao vazio existencial que vivemos ao observar o cenário político atual. O que vimos e vemos é o desenho de uma democracia teórica e utópica ao lado de uma construção partidária alienante, de atitudes imaturas, que não consegue superar a frustração da rejeição de suas vontades. Vemos a luta pelos diretos, isto é, desde que sejam escolhidos os direitos que me cabem como melhor, claro. Se minhas ideologias são atendidas, isso é democracia, quando não, é golpe. O que é legal nem sempre é moral. O que é moral nem sempre é legal. E a vaidade nos cega frente a esse fato. “E eis que o brasileiro está fazendo a sua autocrítica. Toda semana, alguém faz o próprio retrato, a convite de Manchete”.[2]
Vemos o narcisismo atual na face de nossos políticos. Vemos o narcisismo como ferramenta política. Vemos “os narcisismos” distorcendo ideologias em prol do egocentrismo narcísico.
Assim, vê-se no cenário atual a forma dramática como as pessoas escolheram viver suas ideologias. Ainda, a forma como as pessoas internalizam essas ideologias é no mínimo ortodoxa, pois, a luta pela liberdade de expressão caminha ao lado da imatura necessidade de que meu pensamento não seja contrariado. Encontramos legiões de pessoas que apenas reproduzem informações, que não conseguem refletir de fato o que estão transmitindo, pois, o discurso imposto a elas não é oriundo de um grande trabalho neurológico de ouvir, refletir, analisar, discernir e formar uma opinião. O que se vê é um simples ato de memorização dos argumentos, e com isso vamos, paulatinamente, distorcendo os grandes conceitos teóricos e ideológicos para assim construirmos uma vida e uma política que esteja a favor do narcisismo e do ego individual e pessoal. Na coluna intitulada O Marxista Brasileiro Nelson Rodrigues nos ilustra essa condição:
Essa idealização vem sendo feita por todo este século. Dia após dia, retocamos e enriquecemos a sua figura com virtudes sublimes. Chegamos a adorar a sua furunculose. O pior é que, sem o saber, teremos construído o anti-Marx, a negação do Marx. O verdadeiro Marx está nas cartas.[3]
O impactante neste cenário é o simples fato de que a grande massa não percebe as manobras realizadas e se ilude com as “virtudes sublimes” apresentadas. Ao fazer isso passam a adorar e a idolatrar algo no mínimo duvidoso. Lê-se: “[…] o pior cego é o marxista brasileiro. Ele nada vê e vê menos ainda o próprio Marx. Aliás, não só o marxista. Todos nós fazemos um Marx que nada tem a ver com o próprio”.[4] E o pequeno número de pessoas que consegue discernir os fatos, teorias e idealizações não tem uma expressividade e representatividade para fazer com que as demais pessoas reflitam, isto é, analisem, ponderem, pensem através da construção crítica do pensamento. Reproduzir de forma behaviorista não nos possibilitará uma mudança.
O estilo literário de Nelson Rodrigues é marcado pela ácida análise da realidade. Tão ácida que em alguns momentos se torna de difícil digestão para as pessoas que não querem abrir mão do seu discurso ideológico e das mediocridades que os constitui. Ele conseguiu ver e expressar por meio de seus escritos um Brasil em sua época, e, mesmo anos depois, nota-se que sua observação é ainda contemporânea, visto que ilustra o que se vê em nossa democracia atual. Cito Nelson em uma descrição sobre o que pensa a respeito de nosso país: “O Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, é uma paisagem”.[5]
A falta de objetivação do sentido político que observamos ao longo de alguns anos em nossa democracia produz essa paisagem e nos faz carregar uma ferida. A falta de maturidade social é um câncer para o Brasil, para a pátria e para a nação. O povo quer viver uma paisagem. O povo não quer a ferida e o câncer. O povo quer permanecer com a ideia utópica da paisagem. Digo mais: acredita que poderá viver essa paisagem, mas não tem o mínimo de maturidade para compreender que o sofrimento pode ser benéfico, isto é, quando há nele um sentido. Em especial quando há um sentido coletivo, um senso de responsabilidade coletiva. Indaga-se: Mas será que há esse sentido? Será que os nossos políticos têm um senso de sentido coletivo? Ou somos, coletivamente, seres de vaidade amontoados na pátria das vaidades?
Viktor Frankl compreendia que o ser humano pode operar psicologicamente dentro de algumas tensões psíquicas. Uma destas tensões seria a busca pelo desejo, um elemento puramente freudiano. A busca de poder, um ego que vivencia o poder e regozija em uma plenitude adleriana.
Mas Frankl já sabia, antes mesmo dos campos de concentração, que o ser humano teria que viver por um sentido. Desta forma, é inevitável refletirmos: Qual é o sentido coletivo de nossa nação? Onde está o sentido coletivo de nossos políticos? Voltamos à questão. Vivemos o coletivo na política ou vivemos o narcisismo na política. Não há espaço para o outro no narcisismo, só há uma promessa ao outro. Acredito que, quando Crica Rodrigues, neta de Nelson, verbaliza em uma entrevista sobre seu avô, ela nos responde a esses questionamentos com a melhor expressão de Nelson: “O Brasil não é uma pátria, é uma vaidade”.[6] Complemento seu pensamento dizendo que tudo é desejo e poder.
O desejo e o poder, a vaidade e a ideologia andam de mãos dadas em nosso país. Mas já refletimos quais são as consequências desses elementos em uma única frase? Vejamos:
Dirá alguém que o jovem é capaz de um sentimento forte. Tem vida ideológica, ódio político. Não sei se contei que vi, um dia, um rapaz dizer que dava um tiro no Roberto Campos. Mas o ódio político não é um sentimento, uma paixão, nem mesmo ódio. É uma pura, vil, obtusa palavra de ordem.[7]
Nelson nos responde ao questionamento anterior. A consequência do desejo, poder, vaidade e ideologia é o ódio político. E esclarece que o “ódio político” não é um sentimento. Não é ódio. É apenas uma expressão obtusa, palavra de ordem. Vemos as campanhas políticas adentrarem este campo semântico, onde as palavras de ordem ganham espaço e adoração das pessoas desiludidas, aquelas que estão depositando suas esperanças, ou melhor, suas ilusões nas múltiplas construções de palavras de ordem que vemos. A esquerda e a direita usam a mesma estratégia política. A direita e a esquerda incitam a palavras de ordem de diferentes fontes ideológicas e com isso geram um ódio que polariza a população e não nos permite compreender que o Brasil tem que ser maior que uma paisagem. O Brasil tem que se tornar uma pátria e nós uma nação.
Seremos engolidos, mais uma vez, pela vaidade pessoal de pessoas que ocupam funções públicas? O que está em pauta não são os conceitos, pois eles estão magistralmente descritos, mas sim o que é urgente é o entendimento da aplicabilidade pessoal destes. O que vemos é que nossa pátria muitas vezes é governada pela imaturidade singular e pessoal, personificação que representa muitíssimo bem a imaturidade social da nação que a escolhe.
A falta de atitude e maturidade para Nelson é coletiva. Ele demonstra de forma consistente essa indignação da falta de atitude generalizada existente, conforme podemos verificar em seus escritos:
Reparem: Ninguém aqui se mexe. Há todo um Brasil por fazer. Sim, todos os dias, o Brasil espera que nós o façamos. E nem os intelectuais, nem os políticos, nem os líderes, nem os estudantes, ninguém move uma palha, ninguém tira uma cadeira do lugar. O Brasil é um adiamento infinito. O brasileiro é uma ociosidade compacta.[8]
A clareza da análise que ele faz é dilacerante. Ele nos confronta com uma dura realidade. Entretanto, o que vemos de fato é a tentativa, mais uma vez, de criar um cenário de uma vivência distópica proporcionada pela vaidade. Iremos encarar a responsabilidade? Enfrentar essa ociosidade compacta nos leva a sentir. Confrontar a ociosidade compacta nos fará entrar em um caos. Será que a nação está preparada ou quer o sofrimento que será libertador e nos fará aprender com todo o embotamento que vivemos?
Nelson Rodrigues já compreendia a imaturidade de nosso povo. Ele entendia de forma madura a nossa existência. E sabia do que teríamos que abrir mão. Ausentar-se da vaidade vivida de forma ressentida e mergulhar no escárnio da hipocrisia de ser quem você é e não o que os outros querem que sejamos. Encontramos em Nelson: “O Brasileiro gosta muito de ignorar as próprias virtudes e exaltar as próprias deficiências”.[9] Ignorar a virtude é um ato de desespero hipócrita e exaltar as deficiências é uma burrice humilde do politicamente correto. Só venceremos nossas deficiências com as nossas virtudes. Nelson sabia disso e não tinha medo de ser simples e objetivo. Ao mesmo tempo tão sintético e tão agudo ao descrever a realidade. Não tinha medo de expor suas vaidades, seus desejos e sua postura narcísica. Mas sabiamente conseguia descrever a vida como ela é. Cito um trecho de uma entrevista concedida por Nelson, em que o autor traz reflexões simples e agudas sobre si:
Viveste. Vive. Algumas vezes, essa sinistra ideia. E entrei, sempre, por um cano deslumbrante. Eu sou o pior administrador da terra, e tenho seríssimas dúvidas, se sei ou não, as quatro operações. De forma que qualquer ceguinho me engana. E eu jurei, a mim mesmo, nunca mais me meter em negócio nenhum. Mesmo que eu tenha a garantia mais absoluta de ganhar como rei da Arábia Saudita. Nada me fará entrar em negócio nenhum. Eu, se tiver de ganhar, hei de ganhar por meus direitos autorais.[10]
Essa sinistra consciência de si, sua pressa literária, a forma como ele retira o véu das coisas em sua escrita, o levou a ser amado e incompreendido. Ser visceralmente real, conhecedor de suas paixões e consciente em nos mostrar suas entranhas, suas fraquezas. Mas esse reconhecimento não torna sua glória menor ou sua virtude abalada. Escrever é uma arte para poucos. Escrever é a arte de Nelson. Viver de direitos autorais é, simplesmente, viver a glória de sua virtude narcísica ou uma profunda compreensão de sua vida existencial, do seu vazio e angústia.
Essa linha fina e tênue que vemos em sua obra tem uma precisão cirúrgica dentro do cenário que vivenciamos politicamente, onde o que dita alguns dos matizes existenciais são as fraquezas. Assistimos nas mídias sociais um massacre das virtudes com o uso lascivo da fraqueza pessoal e política de nossos candidatos. Vimos que a campanha político partidária foi feita no ataque das fraquezas e no efeito subliminar que elas causam. Vimos à vida do politicamente correto no berço esplêndido de virtude, moral e de Deus. Ah, meu Deus, a política é um espaço de Deus? O que fazer? Na dúvida, é melhor darmos “Glória a Deus”. A consciência da fraqueza descrita anteriormente nas palavras de Nelson não é a mesma, mas também é Nelson, pois retrata a vida como ela é.
Na virtude da fraqueza ou na fraqueza da virtude vemos as mídias sociais se deleitarem com a construção de estereótipos de liderança. O cardápio da esquerda e da direita é representado pelas mais diversas tipologias de liderança. Há os que fazem uso de Deus, da orientação de gênero, dos direitos dos cadeirantes, da amigável relação com os estudantes e até os que acreditam em dizer que “pior que tá não fica”. O fato é que as representatividades são tão diversas e confusas que formatar critérios para a tomada de decisões é quase impossível, considerando o universo de micro e macro informações tão dispersas bem como a explosão das fake news existentes nas mídias sociais. Não conseguimos muitas vezes detectar se estamos em frente de alguém com má índole ou de alguém moralmente virtuoso. Nelson destaca a relação entre a liderança e a reação do ser humano defronte ao indivíduo moralmente virtuoso e à pessoa de má índole:
É uma verdade historicamente demonstrada: – o canalha, quando investido de liderança, faz, inventa, aglutina e dinamiza massas de canalhas. Façam a seguinte experiência: – ponham um santo na primeira esquina. Trepado num caixote, ele fala ao povo. Mas não convencerá ninguém, e repito: – ninguém o seguirá. Invertam a experiência e coloquem na mesma esquina, e em cima do mesmo caixote, um pulha indubitável. Instantaneamente, outros pulhas, legiões de pulhas, sairão atrás do chefe abjeto.[11]
Nas palavras de Nelson, a canalhice gera mais repercussão que a santidade. Vimos na campanha partidária, e nas mídias sociais, nossos políticos posando de santos, mas atacando os adversários como canalhas. Vimos que o prioritário era estar na mídia independente do assunto em questão. Assistimos um candidato que fez polêmica na bancada de um grande jornal ter sua imagem viralizada, sabendo muitíssimo bem aproveitar-se deste fato posteriormente. Vimos à falta a um debate ser lida como um ato heroico e não como desrespeito aos eleitores. Ou melhor, até vimos às duas posturas, uma se digladiando com a outra em prol de suas ideologias. Isto foi, na prática, retratos da vida como ela é.
A postura do eleitor é cada dia mais angustiante. A pressão da escolha, os discursos pseudointelectuais de alguns, a rivalidade partidária, regados à ideia de que a democracia virou a cena de um golpe dificultou em muito sua escolha nas urnas. Mas, mesmo frente a essas tensões, o eleitor tem que escolher a sua liderança. O excesso de informações não facilita a escolha, mas sim a dificulta. Estar no meio do tiroteio só nos faz querer sobreviver. Tentar ser razoável é uma tarefa cada vez mais difícil, considerando o que assistimos no segundo semestre de 2018. Lemos em Nelson Rodrigues: “Para sobreviver, o intelectual, o santo ou herói precisa imitar o idiota. O próprio líder deixou de ser uma seleção. Hoje, os cretinos preferem a liderança de outro cretino”.[12] Esse choque de realidade rodriguiana é de digestão difícil. Admitir que os cretinos preferem a liderança de outros cretinos é angustiante, pois sabemos que essa liderança não mudará a vida como ela está, mas apenas recriará mais uma vez a vida como ela é.
Aliás, A Vida como Ela É foi uma série de contos descritos por Nelson, no período de 1950 a 1961, que foram publicados em um jornal. Samuel Wainer, o proprietário do jornal, queria que o escritor consagrado retratasse a vida. A série de crônicas fez tanto sucesso que elas foram adaptadas posteriormente para radionovela e para a televisão. Peço uma licença poética na academia. Peço que me perdoem a audácia das próximas palavras. Mas não vejo como descrever Nelson e a democracia de outra forma. Se ele fosse escrever uma crônica sobre a democracia, sobre a vida como ela é, em pleno 2018, certamente leríamos os seguintes temas:
- “O Menino sem Estrelas” (inspirado no texto original A Menina sem Estrela);
- “O Vestido de Marina” (inspirado em Vestido de Noiva);
- “#Ele Não ou #Ele Sim” (inspirado em Anti-Nelson Rodrigues);
- “O homem sem Pecado” (inspirado em A Mulher sem Pecado);
- O Homem Proibido, Meu Destino é Pecar e A Mentira já foram escritos, mas poderiam ser reescritos com os mesmos títulos na versão 2018;
- Por último, mas não menos importante: “A Facada no Asfalto”, inspirado em O Beijo no Asfalto.
Sob este último título ousarei tentar escrever algumas palavras inspiradas em Nelson Rodrigues:
“Um homem leva uma facada no asfalto. Ah, esse ato lhe trouxe dor, mas também lhe trouxe o poder do uso ilimitado da facada. Ele queria com todas as suas forças o triunfo. Queria construir a mais perfeita realidade. Queria que Deus o abençoasse. Queria o bem sobre o mal. Queria a virtude do politicamente correto, vencendo as fraquezas da vaidade humana. Queria que todos conhecessem com sua sinceridade militar a verdade, a sua verdade. E então veio a dor, a dor da lâmina, a dor da limitação, o desespero e a dúvida. O caos nos revelou. A facada que nos mostrou quem somos. A facada que nos mostrou como existimos. A facada que nos mostrou por que e para que existimos. A facada nos sangrou, nos eximiu, nos consagrou ou nos libertou? A faca foi a vida como ela é.
Depois foi silêncio e provocação. Depois foi incerteza e desespero. Verdades e produções de verdades. E o dia chegou… O tempo mostrou-nos sua sinuosa curva, com uma estrada ainda desconhecida que iremos percorrer cada qual à sua forma. O Tempo nos sinalizou que o novo tempo se inicia. E agora? Usaremos o mesmo figurino, o mesmo cenário, o mesmo texto, ou tudo será diferente? E agora nos resta, oração ou adoração?”.
Essas palavras inspiradas em Nelson tentam descrever de forma poética o que aconteceu na prática. No original: “Era óbvio que o crime trazia, em seu ventre, uma tragédia nacional. Podia ser até a guerra civil. Em menos de 24 horas o Brasil se preparou para matar ou morrer”.[13] De fato, o atentado, tentativa de homicídio, acidente ou incidente, foi aproveitado da melhor forma possível pelos responsáveis pela campanha presidencial. Houve uma comoção nacional. Houve também comemorações antecipadas dos apoiadores e dos adversários. Reações controversas. Esse fato preparou a nação para matar ou morrer. O evento possibilitou que os jornais noticiassem sua heroica luta pela vida. Para alguns, ele até se tornou um mártir.
O evento realmente iria ser ou não benéfico? O fato é que ele conseguiu se eleger. Foram as mídias sociais, sua campanha partidária ou seu ato heroico que o elegeram? Foi a esperança ou a ilusão de uma nação cansada de ver na mídia mais um escândalo de corrupção, de desvio de dinheiro? Havíamos recentemente assistido à imagem de um herói político ser ferozmente atacada. Vimos o salvador da pátria ser escoltado pela polícia federal de forma triunfal. Os brasileiros queriam um novo herói, mas não podíamos usar a mesma paisagem do herói anterior. Desta forma, apagamos a memória histórica da ditadura militar e de suas ações ultrajantes. Fizemos o discurso radical soar como libertador e salvador, e assim, elegemos mais um presidente para a ilusão ou esperança desta nação. Quem venceu foi Deus, a moral e os bons costumes? Pensemos:
Mas não é ele o único Narciso da caridade. A toda hora e em toda parte, há íntegros que nos atropelam com a sua integridade, há justos que nos humilham com a sua justiça, há castos que nos ofendem com a sua pureza. Raríssima uma bondade sem impudor.[14]
Agora seremos a nação virtuosa, a vitória foi escrita por Deus. Tornar-nos-emos, desta vez, uma pátria, uma nação ou ainda continuaremos a ser apenas uma paisagem?
Nelson, que se intitulava como um reacionário, apoiou o Regime Militar Brasileiro, tendo uma postura política ultrajante. A vida trouxe a dor e o sofrimento, os anos se passaram e após ver seu filho Nelsinho preso e torturado, aprendeu com seus pensamentos ideológicos e com suas escolhas, revisitando assim seu posicionamento político. Chegou a clamar aos militares pela anistia ampla, geral e irrestrita aos presos políticos.
Espero que a vida se confunda com a arte. Que as próximas cenas deste grande teatro que é a vida nos mostrem que realmente compreendemos de forma vivencial o que é a democracia. Que consigamos vivenciar a maturidade social e ter atitudes de respeito à democracia. Que de fato os grandes homens de nossa nação aprendam que a vida imita a arte e que podemos aprender com nossos erros. Por fim, que podemos, em algum momento do nosso futuro, viver a democracia com respeito e responsabilidade.
Notas
[1] Cf. RODRIGUES, Nelson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. 5° edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 34. (grifo nosso).
[2] Cf. RODRIGUES, Nelson. A menina sem estrela: memórias. 1° reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 122. (grifo nosso).
[3] Cf. RODRIGUES, Nelson. A Cabra Vadia: novas confissões. 3° edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 232. (grifo nosso).
[4] Ibid., p. 232. (grifo nosso).
[5] Ibid., p. 13. (grifo nosso).
[6] “O Legado de Nelson Rodrigues”. In: TV BRASIL. PROGRAMA SEM CENSURA. Agosto de 2017. (grifo nosso).
[7] Cf. RODRIGUES, Nelson. A Cabra Vadia: novas confissões. 3° edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 118. (grifo nosso).
[8] Ibid., p. 321. (grifo nosso).
[9] Cf. RODRIGUES, Nelson. A Sombra das Chuteiras Imortais: crônicas de futebol. 3° edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 34. (grifo nosso).
[10] Cf. “O Legado de Nelson Rodrigues”. In: TV BRASIL. PROGRAMA SEM CENSURA. Agosto de 2017. (grifo nosso).
[11] Cf. RODRIGUES, Nelson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. 5° edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 119. (grifo nosso).
[12] Cf. RODRIGUES, Nelson. A Cabra Vadia: novas confissões. 3° edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 109. (grifo nosso).
[13] Ibid., p. 117. (grifo nosso).
[14] Ibid., p. 36. (grifo nosso).
Referências
BARROSO, Vera. “O Legado de Nelson Rodrigues”. In: TV BRASIL – PROGRAMA SEM CENSURA, 08, 2017, São Paulo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?/v=Mgh0mPQH00. Acesso em: 15 fev. 2019.
FRANKL, Viktor Emil. Em busca de sentido. 35° edição. Petrópolis, Rio de Janeiro: Sinodal e Vozes, 2014.
MARQUES, José Carlos. O futebol em Nelson Rodrigues: O Óbvio Ululante, o Sobrenatural de Almeida e outros temas. 2° edição. São Paulo: EDUC, 2012.
RODRIGUES, Nelson. A menina sem estrela: memórias. 1° reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
RODRIGUES, Nelson. Toda nudez será castigada. 3° edição. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2012.
RODRIGUES, Nelson. A Cabra Vadia: novas confissões. 3° edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
RODRIGUES, Nelson. O Óbvio Ululante: as primeiras confissões. 5° edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
RODRIGUES, Nelson. A Sombra da Chuteiras Imortais: Crônicas de futebol. 3° edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.