
Resumo
Esta comunicação tem como objetivo apresentar A Crucifixão Branca, obra de Moshe Shagal – nome mais tarde transformado para o francês Marc Chagall (1887-1985), artista judeu nascido em Vitebsk, hoje Bielorrússia. Chagall cresceu na atmosfera fechada de uma comunidade judia da Europa Oriental, que ainda era sujeita a perseguições e ferozes explosões de violência oficial ou velada, porém, sempre conservou suas tradições. Viveu na Rússia a Primeira Guerra, estava em Paris quando, a partir de 1933, o clima de guerra e de perseguição aos judeus repercutiu em sua pintura, onde os elementos dramáticos, sociais e religiosos passaram a tomar vulto. Em sua arte retrata-se a perseguição sofrida, através do uso de cores escuras nas diversas obras, e o tema da solidão dos judeus na cidade. Seu belo trabalho reagiu à brutal discriminação dos judeus e à Shoah, pintando novas imagens de Cristo morto e crucificado como metáforas do sofrimento, o que transparece ainda mais na obra que será analisada, A Crucifixão Branca, de 1938, onde demonstra seu temor pelos acontecimentos do mundo. Chagall vai exprimir sua poli-identidade por vias escondidas, como nas locuções em iídiche, não compreendidas pelos franceses que liam suas imagens como fantasias poéticas. Longevo, faleceu com 97 anos em Saint Paul de Vence, França. Marc Chagall, considerado um dos maiores pintores do século XX, sempre reafirmou sua pertença.
Palavras-chave: Marc Chagall – Judaísmo – Símbolos – Shoah
1. Introdução
A boa análise de uma obra depende muito do conhecimento que se tem dos símbolos, pois permite apreender a leitura de uma grande parte de obras de arte, assim como a leitura de poesia, contos etc.
Por meio de retoques, Marc Chagall não excluiu nenhum símbolo importante de uma religião se pudesse ser utilizado por uma outra, mesmo com séculos de diferença, para expressar qualquer coisa de sua crença e de sua experiência histórica. Esse tipo de permuta com reinterpretação, recorrentes na Antiguidade e na Idade Média — como a psicostasia e a Ísis amamentando do Egito que ressurgiram como o Arcanjo Miguel pesando as almas e a Virgem Maria amamentando — tornou-se rara durante séculos, mas retornou vez ou outra, por exemplo, no uso do motivo de homem ou mulher na cruz no século XX. Marc Chagall é testemunha desse exemplo. Utilizou símbolos para denunciar a perseguição antissemita, bem antes da Shoah[1].
Nasceu em 1887, na Bielorrússia, em uma família judia-hassídica. O movimento hassídico[2] insiste em uma comunhão alegre com Deus. Essa pertença, um traço do artista, foi uma influência sobre a pintura de Chagall, onde as cores vivas, alegres e brilhantes têm um papel preponderante. “Se toda a vida vai inevitavelmente em direção ao fim, devemos durante a nossa, colorir de amor e de esperança[3]”.
Para aperfeiçoar sua arte, viajou bastante. Primeiro pela Rússia, depois, em 1911, Chagall se instalou em Paris, onde se relaciona com grande número de artistas de cultura cristã. Recebeu uma educação religiosa judaica, não foi um grande praticante, porém, a dualidade do mundo interior (mundo do qual ele saiu) com as realidades exteriores (com as quais era confrontado) marcou sua obra.
Em 1931, Chagall viaja para a Palestina onde será profundamente marcado pela atmosfera da Terra Santa. A partir daí, retoma consciência de sua judicidade. “No Oriente, encontrei a Bíblia e uma parte de mim mesmo.” Essa viagem foi para Chagall ocasião de perceber as numerosas ameaças que pesavam sobre os judeus na época e de mensurar a realidade antissemítica. Embora não tenha sido um militante, nunca foi indiferente à sociedade nem à realidade de seu povo[4].
2. Análise simbólica
A obra de Chagall evidencia a primazia de textos bíblicos em seu imaginário, também marca o texto hebraico nas suas lembranças e especialmente os símbolos essenciais no judaísmo, assim como evidencia a vontade de Chagall de transmitir através de passagens da Bíblia uma mensagem universal de paz e amor. Com absoluta liberdade, o pintor aborda, tece e faz encontrar as leituras judaicas e cristãs. Favorável ao diálogo judaico-cristão, toma a figura do Jesus judeu e integra referências judaico-cristãs às suas obras artísticas a lugares de culto católicos e protestantes. Chagall marca sua linguagem originária do judaísmo com olhar no cristianismo na esperança de levar a eles suas fontes. O artista se vê como um profeta, um vidente, um anjo pintor[5].
Diante das obras de Chagall temos a tendência de nos deixar levar pela poesia da pintura, mas quando se olha A Crucifixão Branca, pintada em 1938, não se deixa de notar o quanto a mensagem é forte. Chagall compreendeu bem que para ser ouvido pelos cristãos, deveria usar linguagem simbólica deles.

Dominando a composição por seu formato, com o lugar central e o largo raio branco oblíquo sobre o qual se inscreve Jesus na cruz, a representação emblemática do cristianismo, surge um Jesus cuja identidade judaica é sublinhada por juntar elementos característicos do judaísmo. Jesus, a princípio um judeu piedoso, marcado pela tradição de Israel e vice-versa: ou seja, os judeus da Europa não estão mais bem instalados que Jesus em sua época.
Há uma cruz em Tau — (forma de T do grego tau) que recebe, às vezes, a denominação de cruz de Santo Antão — que simbolizaria a morte vencida pelo sacrifício. Embora o título e o sujeito propostos no quadro sejam a crucifixão, logo se percebe que não se trata de uma cena tal como os cristãos a imaginam.
A representação do Cristo não é habitual. Sob as letras INRI, iniciais latinas de Iesus Nazarenus Rex Iudaeourum, “Jesus Nazareno Rei dos Judeus”, que figuram na maioria das vezes acima da cruz, sua tradução literal está em hebraico, o que é raro (mesmo Pilatos tendo mandado escrever em hebraico, latim e grego, conforme João 19: 19-20). De forma mais inovadora, o Jesus crucificado em Chagall trocou a coroa de espinhos e o perizonium[6] por um turbante de linho e o tallit, xale com franjas usado pelos homens judeus durante o estudo e a oração, sendo o mais comum branco com listas negras ou azuis[7].
A origem judaica do Cristo, muitas vezes esquecida, desconhecida e mesmo rejeitada nessa época, foi fortemente evocada e quer questionar os cristãos. O Cristo representa na obra, por sua pessoa, o povo judeu. A dor do Cristo aqui mostrada denuncia o sofrimento de todo o povo judeu. Chagall lembra aos cristãos, utilizando símbolos religiosos marcantes, que perseguindo os judeus, eles perseguem seu Deus, ou seja, a eles mesmos.
O branco dominante é muito importante. Muito da simbologia dessa cor aparece aqui presente. O branco lívido, cor fria, cor da morte, dá mais força às atrocidades representadas em torno do Cristo na cruz.
O branco também é a cor da pureza, da inocência. Isso enfatiza a ausência da culpa do povo judeu, considerado como deicida pelos cristãos. São notáveis a doçura e a serenidade que emanam da figura do crucificado. O branco também é a cor do silêncio abafado, como é o protesto do artista que coloca sua arte para se insurgir contra os pogroms[8] dos quais são vítimas os judeus[9].
Um importante raio luminoso, vindo do alto, ilumina a cruz, a escada e o candelabro, isolando assim o motivo principal do quadro. O branco, cor da revelação e da graça, coloca em evidência a auréola da cabeça do Cristo. O branco, também da aurora, rico em promessas de dias melhores, cor que ilumina e dá uma nota de esperança, em oposição às cidades incendiadas, onde a salvação se torna impossível.
A escada que faz parte do plano central é o símbolo por excelência da ascensão gradual, da verticalidade, da passagem do humano ao divino, da sombra à luz. Ela faz a ligação entre a terra e o céu. Nesse contexto, logo se pensa na escada de Jacó. A escada, como a cruz, é iluminada pela luz que emana do alto. Traria ela também uma mensagem de esperança nos lembrando de que Deus intervém a favor dos homens? Essa escada de equilíbrio duvidoso incita o observador a se interrogar sobre sua maneira de agir[10].
Aos pés da cruz, uma menorá, candelabro de sete velas, com uma auréola que repercute no nimbo luminoso do Crucificado, simboliza a luz espiritual e a presença divina, lembrando o destino de Israel, escolhido por Deus como o povo eleito.
O candelabro, sem dúvida, ocupa um lugar preponderante. Nota-se que nem todas as velas brilham, sublinhando a fragilidade de um mundo onde, no entanto, a esperança está presente. A cruz, um prolongamento do candelabro, sublinha a raiz do cristianismo no judaísmo.
Várias cenas ilustrando as atrocidades sofridas pelo povo judeu estão dispostas em um círculo em torno do tema central. A escolha dessa disposição não foi ao acaso. O círculo é um símbolo essencial, representa o todo, a unidade. É o desenvolvimento de um ponto central, que aqui é o Cristo. Uma disposição que coloca à frente a solidez do povo judeu diante da adversidade. O círculo exprime sempre uma ideia do eterno recomeço. Pode-se pensar na roda da Samsara[11], onde todo homem busca a via da libertação. Há milênios o povo judeu é oprimido, caçado, perseguido. Aqui o raio que corta o quadro na diagonal vem quebrar o ciclo infernal e deixar um lugar para a esperança.

No alto, à direita, uma sinagoga está em chamas, não pelo fogo cujo símbolo remete à renovação, mas sim ao fogo destruidor. A sinagoga pode ser reconhecida pelos temas superpostos no alto do portal: tábuas da Lei, a estrela de Davi e leões afrontados esculpidos, motivo tradicional das sinagogas da Europa do Centro e do Leste, mas também, talvez, uma alusão ao evangelista Marcos, homônimo do pintor[12].
São símbolos de força como os leões, de pertença como a estrela de Davi e as tábuas da Lei que se consomem, lugares santos foram vandalizados e os objetos sagrados, tais como os rolos da Torá e o candelabro, foram disseminados. Um caos reforçado pela cadeira derrubada, enfim, é a estabilidade desse povo que está ameaçada.
Aos pés do edifício, um homem parece se precipitar para abrir um cofre. Ele está vestido de marrom e com uma braçadeira sobre a qual se destaca uma cruz que faz lembrar os “camisas marrons”, membros da SA. O cofre, nesse contexto, compreende uma forte simbologia. É o lugar que se escolhe para conservar e proteger o que se tem de mais precioso. Pode-se colocar nele tanto riquezas materiais como coisas que lembram importantes momentos da vida. O cofre abriga os tesouros da Tradição e, com certeza, esse cofre também nos leva à Arca da Aliança, descrita na Bíblia (Ex 25: 10-21), que foi construída para preservar as tábuas da Lei. Seus dez mandamentos definem um caminho de vida para os crentes. O cofre é então o portador da imagem de Deus.
O cofre está aberto, abertura que simboliza muitas vezes a revelação, no entanto, nesta obra, o cofre escancarado parece expressar uma profanação. Só quem legitimamente dispõe da chave tem o direito de abri-lo.

O judeu errante é motivo recorrente na obra de Chagall e aparece várias vezes em sua pintura. Esse tema surgiu na literatura no século XII e relata um episódio lendário segundo o qual Jesus, no caminho da cruz, tendo recebido a recusa de um sapateiro para lhe dar pão, lhe previu ser errante eterno[13].
Nesta obra, o judeu errante aparece com sua trouxa sobre as costas, vestido com um longo manto verde e com um boné de trabalhador russo. Essa figura emblemática da condição judaica nos envia também à realidade da época, quando os judeus são novamente perseguidos e obrigados a fugir, assim como na memória estão a fuga do Egito e o exílio na Babilônia. Diante dele, a seus pés, os rolos da Torá e outros símbolos próprios da comunidade judaica estão em chamas[14].
Nesse episódio, a simbologia da cor também é importante. O verde guarda uma característica estranha e complexa que tem sua polaridade: o verde do embrião, do broto vegetal e o verde da morte, do bolor, do mofo. Chagall soube utilizar as duas facetas da cor em suas obras, mas aqui é à vida errante do povo judeu, à sua instabilidade permanente que ele faz referência.
Pode-se ressaltar que em iídiche a expressão verde-amarelado é usada para descrever o estado de uma pessoa tomada por uma moléstia grave. Essa tonalidade remete ao sofrimento dos judeus perseguidos e obrigados a fugir com sua magra trouxa. O personagem se encontra à mesma distância da Torá que se consome e da escada em equilíbrio que conduz ao Cristo, como se fizesse a ligação entre a destruição da Escritura e da demolição da escada.

Ainda no primeiro plano, um homem de boca aberta vira a cabeça para vigiar o que acontece. Ele segura contra o peito um rolo da Torá, rolo de pergaminho, enrolado sobre dois troncos (denominados “árvore da vida”) sobre o qual foi registrado o Pentateuco, textos dos cinco primeiros livros da Bíblia – Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio — e que representa para os judeus praticantes o conjunto de suas prescrições.
Diante dele, o homem de camisa azul está escandalizado por um letreiro, talvez a lembrança de uma das humilhações infligidas aos judeus alemães quando eram obrigados a colocar no pescoço uma placa inscrita com mensagens antissemitas; como num estágio precedente ao do quadro a placa trazia a inscrição Ich bien jude (eu sou judeu).

Uma mulher carregando uma criança em seus braços está em primeiro plano, ela abriga sua criança para protegê-la, assim como faz o homem com a Torá do outro lado da cruz. Essas duas figuras presentes em outras obras de Chagall encarnam a angústia de todos os judeus face aos perigos que os ameaçaram e os que ainda os ameaçam: a Torá é então o primeiro objeto a ser salvo em caso de perigo, custe o que custar, por exemplo, no caso do incêndio de uma sinagoga[15].
A mulher, o único personagem que olha para o espectador, parece implorar, questionar. É uma forma simbólica para Chagall. Essa dupla representa a inocência ameaçada, mas, por sua vez, há também a esperança de um renascimento graças à proteção da mãe.
Esses três personagens, vítimas perseguidas, fogem tentando salvar o rolo da Torá, símbolo de sua história. Eles estão vestidos com cores vivas, são humilhados e estigmatizados pelas placas que lhes são impostas.

Encontramos algumas pinceladas de vermelho, cor do sangue. A cor é usada para colorir as bandeiras dos soldados (bandeira russa) que vêm atacar as cidades, ou ainda a bandeira que tremula acima da sinagoga em chamas (com a cor da bandeira da Alemanha). Encontra-se o vermelho sobre a face e a braçadeira do soldado que vem profanar a sinagoga. É a simbologia belicosa dessa cor que é tomada. Ela acentua o aspecto selvagem, determinado e cruel dos soldados. O negro será associado ao vermelho para acentuar o lado diabólico dos soldados.
Outra cena que aparece plena de simbologia trata-se da vila com casas brancas. Típicas das obras de Chagall, esta cena mistura o onírico, com as casas destruídas que simbolizam a desordem e a triste realidade das casas incendiadas. Nota-se a cadeira bem colocada em oposição à cadeira tombada. Essa cadeira está acompanhada de uma cabra que parece esperar passivamente seu proprietário.
Pode-se ver aí uma manifestação divina? Diz-se que Yaveh “se manifestou a Moisés no meio de clarões de trovões[16]. Lembrando-se dessa manifestação, a cobertura do tabernáculo foi feita com pelo de cabra[17]”. Ela também é associada à alimentação, à infância e por isso mesmo à inocência. Sua posição, sentada diante da cadeira causa um sentimento de felicidade tranquila, de plenitude, que contrasta com as cenas que a circundam. É o tempo de antes… Uma pequena cena à parte, como um parêntese que simboliza a rejeição da violência e uma atenção especial para os seres sem defesa. Bem próximo, há três pequenas sepulturas que remetem ao temor de Chagall face aos trágicos acontecimentos desse período, mas igualmente à sua esperança de uma maior compreensão e de uma paz entre os povos.
Adiante, uma embarcação lotada de pessoas esgotadas ou em pânico que parecem fugir. Da barca, símbolo na mitologia grega do transporte das almas dos mortos para o além, note-se o papel do remador, aquele que permite passar de uma margem à outra. O negro, contra-cor do branco, toma aqui todo o seu símbolo de cor das trevas, sensação reforçada pela proximidade das casas bastante brancas. Trata-se aqui de denunciar a expulsão em massa dos judeus em 1938.

Na última cena, à esquerda, acima da cruz, não há azul no céu, apenas a fumaça das cinzas, e no lugar de anjos há três anciãos com barbas longas, cabeças cobertas, vestidos como judeus tradicionais, acompanhados de uma mulher com véu. Provavelmente, é uma invocação a judeus piedosos, a menos que se trate dos três patriarcas: Abraão, Isaac e Jacó, e de Raquel, a mulher de Jacó (Jr 31,15) chorando suas crianças mortas: “Assim diz o Senhor: Uma voz se ouviu em Ramá, lamentação, choro amargo; Raquel chora seus filhos; não quer ser consolada quanto a seus filhos, porque já não existem”. Eles parecem lamentar e chorar pela sorte do seu povo.
Será a cor branca que unirá todas as cenas em uma espécie de paisagem enevoada, abafada, como em um sonho. Chagall usa com talento a simbologia das cores para nos transmitir emoções. Como todas essas atrocidades e esses sofrimentos são possíveis? As noções de bem e do mal parecem ser lembradas graças a um jogo de cores.
Um último elemento ainda nos chama a atenção: Chagall representa na obra oito cenas para questionar o espectador. Oito é o número da ressurreição para os cristãos. Isso permite acentuar o que já se sentiu diversas vezes: a esperança que move o pintor apesar dos horrores que ele bravamente denuncia.
Chagall coloca à frente a imagem do Cristo mártir como símbolo do povo judeu perseguido e do seu sofrimento. Ele usou a simbologia dos objetos, das formas e das cores que permeiam toda a sua obra. Ele soube tirar proveito de sua arte para transmitir uma mensagem forte do período atormentado que precede a II Guerra Mundial. Ele interpela os cristãos, os incita por imagens inabituais, tenta lhes fazer tomar consciência da urgência de reagir face à violência que vivia no momento o povo judeu.
Há ainda uma mensagem mais discreta, a resiliência do povo judeu, que a fé e a esperança sustentaram nos períodos mais trágicos.
Este quadro ilustra essa maneira, que é própria do artista, de transmitir sua mensagem. A compreensão dos símbolos é então essencial para uma boa compreensão da obra. Porém, também se impõe uma análise histórica para esclarecer certas partes.
Nota-se que várias cenas fazem alusões diretas a acontecimentos recentes na vida de Chagall, mas graças à simbologia dos objetos escolhidos, podemos ir ainda mais longe na história do povo representado.
3. Considerações finais
Nascido em uma família praticante em Vitebsk, Bielorrússia, onde a comunidade judaica era numerosa, Chagall permaneceu toda sua vida ligado às tradições da comunidade hassídica de sua cidade, que foi para ele uma fonte inesgotável de inspiração para sua obra, referindo-se constantemente aos objetos cultuais de sua religião.
Com A Crucifixão branca, a primeira e a mais importante de uma série de composições que colocam em cena o Crucificado como o supliciado hebreu e que Chagall multiplicará em seguida, sobretudo em seu exílio em Nova Iorque (1941-1948), o artista evoca em Jesus: “um poeta, um dos maiores pela sua forma incredível, insensata, que ele teve de tomar para si o sofrimento”.
Nesse contexto histórico dramático que sofreram as comunidades judaicas pode-se compreender que Chagall tenha tido a ideia de associar a causa do Crucificado às perseguições e aos desastres da II Guerra.
Os judeus foram objeto de perseguição, a partir do final do século XIX, em toda a Europa e na Rússia, pois uma crescente hostilidade e uma literatura antissemita e não apenas antijudaica se desenvolvera.
Com as leis de Nuremberg, 15 de junho de 1935, e os rigores contra eles se multiplicando, tomando proporções jamais esperadas como a dramática Noite de Cristal[18] de 9 a 10 de novembro de 1938 e a catástrofe da Shoah.
Após a Segunda Guerra, o trauma da Shoah continua a marcar a obra de Chagall, que se expressa através de representações do shtetl[19] em chamas e pelo símbolo de Jesus crucificado. Ao retorno dos Estados unidos à França em 1949, tenta se adaptar e assimilar a sociedade francesa e realiza obras para Igreja, obras que testemunham a missão que o artista havia discretamente assumido: fazer uma ponte entre judeus e cristãos[20].
Mas além dos infortúnios sofridos pelos judeus, é significativo que a figura do Crucificado tenha se tornado para um número relevante de artistas — não apenas cristãos e judeus, mas também àqueles que não reivindicavam nenhuma pertença religiosa ou mesmo se declarando agnósticos ou ateus — a figura do homem injustamente maltratado e cuja dignidade foi ultrajada.
É assim que no século XX, não somente em Chagall, mas em toda a pintura ocidental, os motivos da cruz e do Crucificado se tornaram o símbolo do sofrimento arbitrário e injusto.
____________________
Notas
[1] O termo Shoah é originário de um dialeto alemão falado pelos judeus ocidentais e é a palavra que representa, ou substitui, o termo holocausto. Os judeus preferem usar essa expressão porque é originária do idioma de seu povo e significa calamidade. Holocausto, por sua vez, possui um significado relacionado com a prática da expiação de pecados por incineração, o que alivia o peso da catástrofe e permite a perpetuação do antissemitismo. É precisamente nesses pontos que se baseia o argumento para o uso do termo Shoah, já que a prática nazista foi um genocídio, e não qualquer manifestação de sacrifício a Deus.
[2] Hassidismo: um movimento surgido no interior do judaísmo ortodoxo que promove a espiritualidade através da popularização e internalização do misticismo judaico como um aspecto fundamental da fé judaica. Essa vertente não deixou de existir ao longo de praticamente toda a história judaica. Hoje, no entanto, o uso do termo “chassidismo” ou “hassidismo” se restringe à tendência desenvolvida na primeira metade do século XVIII na Europa Oriental – com o rabino Israel Ben Eliezer, mais conhecido como Baal Shem Tov – em reação ao judaísmo legalista ou talmúdico, mais intelectualizado.
[3] Denise Galtier. https://pt.slideshare.net/icm13/denise-galtier, p. 1.
[4] Ibid., p. 1.
[5] Cf. https://www.mahj.org/sites/mahj.org/files/atoms/files/chagall-et-la-bible-dossier-pedagogique.pdf. Acessado em 3 de mar. de 2019.
[6] Perizonium (em grego antigo περίζωμα, “ao redor da cintura”) é o pedaço de pano usado para ocultar a nudez de Jesus de Nazaré na cruz. O evangelho apócrifo de Nicodemos evoca esse atributo. A relíquia Perizonium é preservada na catedral de Aachen, na Alemanha.
[7] François BOESPFLUG; Françoise BAYLE. Les monothéismes en images: judaïsme, christianisme, islam, p.76.
[8] Pogrom (em iídiche, פּאָגראָם, do russo погром) é um ataque violento e maciço a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente (casas, negócios, centros religiosos). Historicamente, o termo tem sido usado para denominar atos em massa de violência, espontânea ou premeditada, contra judeus, protestantes, eslavos e outras minorias étnicas da Europa, porém é aplicável a outros casos, a envolver países e povos do mundo inteiro.
[9] GALTIER, Denise. La crucifixion blanche. Disponível em: http://pt.slideshare.net/ icm13/denise-galtier. Acessado em 6 de mar. de 2019.
[10] GALTIER, Denise. La crucifixion blanche. Disponível em: http://pt.slideshare.net/ icm13/denise-galtier. Acessado em 6 de mar. de 2019.
[11] Samsāra, o termo sânscrito e pâli para “movimento contínuo” ou “fluxo contínuo” refere-se no budismo ao conceito de nascimento, velhice, decrepitude e morte, do qual todos os seres no universo participam e do qual só se pode escapar através da iluminação. Samsāra está associado com o sofrimento e é geralmente considerado a antítese do nirvana (ou nibbana).
[12] François BOESPFLUG; Françoise BAYLE. Les monothéismes en images: judaïsme, christianisme, islam, p.76.
[13] Cf. https://www.mahj.org/sites/mahj.org/files/atoms/files/chagall-et-la-bible-dossier-pedagogique.pdf, p.12. Acessado em 7 de mar. de 2019.
[14]Cf. François BOESPFLUG; Françoise BAYLE. Les monothéismes en images: judaïsme, christianisme, islam, p. 78-79.
[15]Cf. François BOESPFLUG; Françoise BAYLE. Les monothéismes en images: judaïsme, christianisme, islam, p.78.
[16] Êxodo: 19 (15-16): 15 Em seguida, avisou ao povo: “Estai, pois, preparados para depois de amanhã e até lá não vos chegueis a mulher!” 16 Ao alvorecer do terceiro dia, houve trovões, relâmpagos e uma espessa nuvem sobre a montanha, e um clangor muito forte de trombeta; e todas as pessoas que estavam no acampamento começaram a tremer de medo. 17 Então Moisés conduziu o povo para fora do acampamento, para encontrar-se com Deus, ao pé da montanha.
[17] Ex 26:7-14; 36:14-18.
[18] Noite de Cristal (em alemão Reichskristallnacht ou simplesmente Kristallnacht) é o nome popularmente dado aos atos de violência que ocorreram na noite de 9 de novembro de 1938 em diversos locais da Áustria e da Alemanha então sob o domínio do Terceiro Reich ou nazi. Tratou-se de pogroms, com a destruição de muitas sinagogas, lojas, habitações e de agressões contra as pessoas identificadas como judias. Para o regime foi a resposta ao assassinato de Ernst von Rath, um diplomata alemão em Paris, por Herschel Grynszpan, um judeu polaco, condenado múltiplas vezes a deportação da França.
[19] Shtetl (em iídiche, שטעטל, no singular; שטעטלעך, shtetlech, no plural), é a denominação iídiche para “cidadezinha”. Chamavam-se “shtetl” as povoações ou bairros de cidades com uma população predominantemente judaica, principalmente na Europa oriental, como na Polônia, na Rússia ou na Bielorrússia, antes da Segunda Guerra Mundial.
[20] Ziva Amishai-Maisels. Les artistes juifs du XVIII siècle à nos jours. In SED-RAJNA, Gabrielle (ed.). L’art juif. Paris: Citadelles & Mazenod, 1995. p. 352.
____________________
Bibliografia
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. 9ª ed. São Paulo: Paulus, 1993.
BESANÇON, Alain. L’image interdite: une histoire intellectuelle de l’iconoclasme. Collections folio/essais. Paris: Gallimard, 2000.
BOESPFLUG, François. Dieu et ses images: une histoire de l’Eternel dans l’art. Paris: Éditions Bayard, 2008.
BOESPFLUG, François; BAYLE, Françoise. Les monothéismes en images. Montrouge: Bayard, 2004.
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993.
SED-RAJNA, Gabrielle (ed.). L’art juif. Paris: Citadelles & Mazenod, 1995.
____________________
Sites
DOSSIE PEDAGOGIQUE. Chagall et la Bible. Disponível em: http://www.mahj.org/docu ments/Chagall-et-la-Bible-dossier-pedagogique.pdf. Acessado em 20 de out. de 2015.
GALTIER, Denise. La crucifixion blanche. Disponível em: http://pt.slideshare.net/ icm13/denise-galtier. Acessado em 6 de mar. de 2019.