
Acompanhando, sempre que possível, as lives do LABÔ, redescobri temas, leituras, discussões a respeito de assuntos tão diversos quanto instigantes.
Uma dessas lives – “A experiência mística e o conhecimento: amor, desejo, sofrimento e êxtase“, com as professoras Ceci Baptista Mariani, Maria José Caldeira do Amaral e Maruzânia Dias – deu a oportunidade aos participantes de conhecer e pensar a respeito de um grupo de mulheres, que têm em comum a experiência mística como parte essencial no processo de criação artística, política e poética. São mulheres, quase sempre, da Idade Média, que só são lidas por pesquisadoras, corajosas e insistentes.
A discussão, além de nos apresentar essas mulheres, também atualizou o tema, analisando produções contemporâneas que evocam a pulsão mística na elaboração das obras, nas diferentes linguagens da arte, como a literatura e a música.
Muitas das mulheres citadas – Sophia de Mello Breyner Andresen, Violeta Parra, Clarice Lispector – revelam características especiais e, em cada uma delas, a experiência mística é fundamental. Vale a pena assistir à discussão, ainda disponível no Facebook do LABÔ @labopuc.
E, numa epifania própria de um momento como esse, lembrei-me de um texto escrito já há um bom tempo em que aproximei duas poetas – a portuguesa Natália Correia e a mineira Adélia Prado – buscando um ponto em comum no discurso poético que recupera o tema da live.
A partir daqui, deixo alguns excertos do texto, para talvez provocar curiosidade e, certamente, para contribuir com a questão.
“Escrevo poesia porque me é exigência ética e espiritual lembrar-me dos outros e de que todos somos partes integrantes da unidade básica do Universo.” (Natália Correia)
“…sou tocada pela poesia…” (Adélia Prado)
Em Natália Correia, fiz alguns recortes no poema Comunicação, em que a personagem principal, Feiticeira Cotovia, declara:
“Os Deuses estavam contentes com o que a Mulher tinha feito”.
Ela é reconhecida pelos Deuses, ela sabe que a palavra poética mais importante é LUZ. Seu palco é a praça pública atemporal e nela será julgada pela prática da poesia.
Da mesma maneira, Adélia Prado, escondida em seu quintal mineiro, tem consciência da poesia:
“Cumpro sina. Inauguro linhagens, fundo reinos.”
Existe em ambas a ciência do poder que o discurso poético tem. E que desse discurso emana de uma força para além do real. É mais profunda. É o discurso fundante da femealidade. Um discurso perigoso.
Nas duas, está presente a natureza e suas forças incontroláveis.
Feiticeira e Cotovia, Natália Correia é rebelde, guerreira, domina o poder encantatório da palavra. Ensina aos homens um outro olhar, não um olhar apolíneo, um olhar desgarrado das amarras da ilusão do seu poder de homem. Ela não é “nem boa, nem má”. Ela é. E ser, para a Feiticeira, significa anunciar o prazer, o que o proporciona. Quando o coro anuncia a Cotovia, símbolo do voo livre, da alegria, prenúncio da união entre o céu e a terra: “Vulto do vento alto e cantante”, a reação é imediata. Acusada de bruxaria, vê o vento cantante transformar-se em “uivo de lobo”.
A razão masculina reage à liberdade da natureza feminina.
Para a Feiticeira Cotovia, a poesia é o elo entre o corpo e a alma. Experiência mística que aprofunda a femealidade.
“Cantar é crime. Voar é vicio”
“Confessa que és poente”
“… que andas muito contente
Quando deves andar triste”
“Confessa que és Sibila
Com bico de rouxinol.”
Em Adélia, o que é revelado é a interdição da sensualidade que revela e liberta no poema:
“mulher do povo, mãe de filhos…”
“Quando dói, grito ai,
Quando é bom, fico bruta,
As sensibilidades sem governo.”
O palco de onde essas mulheres dizem seus poemas vem do mundo primitivo. Lembro que a dramatização da voz feminina, na poesia, vem da tradição das Cantigas de Amigo.
“Podemos dizer que as Cantigas de Amigo são uma forma ativa e nativa de participação mútua do ritual do amor, sendo uma concretização espontânea de seus símbolos rituais, entre o masculino e o feminino.” (EM de Melo e Castro, in Caminhos atuais da poesia feminina em Portugal)
Natália e Adélia, uma na praça outra no quintal, continuam lançando mão desses rituais, para que suas várias personas possam ser ouvidas.
No poema Comunicação, A Feiticeira Cotovia comanda muitos personagens: o pregoeiro, o coro, o inquisidor, a solteirona, os juízes, o patriota. É sua incumbência coordenar esses discursos, reestruturando-os contra a castração do prazer. Sendo julgada, é na dimensão do discurso poético que faz a defesa.
Quanto à Adélia, é o palco cotidiano que abriga a mãe primitiva, a mística, aquela que ora guarda ora revela o misterioso drama da femealidade. Ora é Dona Doida ora é o Pelicano cuja natureza úmida precisa transformar-se sempre para renascer como a Fênix.
Elas conjuram:
“Dei-te uma canção como um fruto aberto
De mulher em arco na proa de um barco
(…)
E pus-te uma pomba infinita na mão”
(Natália Correia)
“A palavra é disfarce de uma coisa mais grave
(…)
Puro susto e terror”
(Adélia Prado)
Quando se coloca em meio à praça pública para dizer seu discurso, Natália Correia investiga “o poder mágico da palavra escrita falada”. Adélia explode a palavra numa manifestação ctônica, como nos revela em entrevista:
“A obra de arte é fruto de uma compulsão maior, não do meu intelecto, é do meu espírito, algo muito mais profundo em mim e à minha elaboração. O máximo que faço, depois do texto pronto, depois da criança parida, é tirar a placenta.” (AP)
E Natália confirma:
“Se a palavra poderosa
For um astro incendiado
Há-de abrir-se a brusca rosa!” (NC)
Natália Correia e Adélia Prado são autoras cujos poemas são obras do desejo de ser e devedoras das autoras místicas medievais, no que elas trouxeram de revelação e crítica da condição feminina, principalmente da produção cultural feminina.
Mulheres, como canta Adélia no seu poema Catecúmena:
“Ela foi admitida com reservas!”
Não se trata aqui do jogo de poder que antagoniza homem/mulher; razão/sentimento. Trata-se da luta por mais ar, mais fogo, mais terra, mais água. Trata-se de reconhecimento. De território.
Na poesia dessas duas escritoras, o feminino transcende, avança o caminho trilhado por autoras feministas. O tom recupera o elo descrito por Camile Paglia, em Personas Sexuais.
Na obra de ambas ressoa a fala do crítico: “o que faz do homem um poeta é a força demoníaca, porque é uma força que distribui e que divide (…) A divisão o leva à ordem, confere conhecimento, desorganiza o já conhecido e nos abençoa com uma ignorância capaz de criar uma nova ordem.”, diz Harold Bloom, em A angústia da influência.
Essa nova ordem está tanto no poema Comunicação, de Natália Correia, como nos excertos citados de Adélia Prado.
É a velha ordem feminina, com toda a carga de femealidade, demonismo e prazer.
Bibliografia básica
Correia, Natália. Poemas a rebate, Publicações D. Quixote, s/ed, Lisboa 1975.
Prado, Adélia. Poesia Reunida, Edições Siciliano, s/ed, São Paulo, 1991.
Bloom, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Trad. Arthur Netrovski, Imago Editora, RJ, 1990.
Melo e Castro, Ernesto M. As vanguardas na poesia portuguesa do sec. XX. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, MEC, Lisboa, 1980.
___________. O dom da poesia e sua dona: a propósito da poesia de Natália Correia, in Voos da fênix crítica, Edições Cosmos, Lisboa, 1995.
__________Caminhos actuais da poesia feminina em Portugal. Revista Humbolt, ano 1, nº 1, 1961.
Paglia, Camille. Personas Sexuais: Arte e decadência de Nefertite a Emily Dicknson, Cia das Letras, São Paulo, 1994.
Imagem: montagem com fotos de divulgação