Comportamento Político

A sinceridade mente? – Darwinismo, Teoria da Mente e Redes Sociais

Meu despertador não tocou, diz o aluno que chega ao final da prova. O professor, um darwiniano raiz, responde: o meu tocou. O aluno esbugalha os olhos, certo de que a sinceridade é virtude e servirá de borracha para a impontualidade. No mínimo, prossegue o professor, era esperado que você me contasse uma história triste justificando o atraso. O aluno, incrédulo, reitera: mas fui sincero! Só que o darwiniano está irredutível em sua verdade: a sinceridade não é adaptativa.

A natureza seria menos cruel que este professor? Dificilmente. É que faz tempo que boa parte de nós não lida tête-à-tête com ela.

Bichos gregários e de reprodução sexuada que somos, andamos em bandos, porque, sozinhos, além de não durarmos muito, não passamos genes para frente. O lance é misturar carga genética, mutar a torto e a direito, dar lastro de escolha para a natureza pinçar sabe-se lá qual for o repertório gênico vitorioso da vez. Enquanto o DNA faz o trabalho dele, nós fazemos o nosso. Viver em grupo exige bom manejo de habilidades sociais complexas.

Como escreveu nosso querido filósofo Andrei Venturini Martins, em A verdade é insuportável (2019), “quem fala a verdade não dura muito tempo, ao passo que a hipocrisia é posição que conserva a vida: só os hipócritas ficam vivos em segurança” (Martins, 2019, p. 72). Infelizmente a natureza parece gostar de poupar mentirosos e covardes em porções generosas, isso numa conta baixa, de bater o olho. É, o medo também é adaptativo. E um dos nossos maiores medos é o da avaliação (negativa) dos nossos pares. Mentira e medo, é disso que somos feitos?

Ficar sozinho na floresta era complicado, mas viver em bando é mais arriscado do que parece. Ser excluído do grupo, mais do que bullying pré-histórico, era morte certa. Aprovação social ressoa nos ossos porque é o que sustenta a sobrevivência do bicho-homem. A exclusão rasga a carne, o cadáver apodrece a céu aberto. Dominar o conhecimento social do outro é decisivo. Como fazemos isso?

Os psicólogos cognitivos chamam de Teoria da Mente. É a capacidade de atribuir estados mentais a outras pessoas, com o intuito de prever os comportamentos dos outros. Trocando em miúdos, é saber quem é amigo e quem não é. A habilidade de teoria da mente começa a funcionar de forma rudimentar por volta dos três anos de idade e a tendência é ir melhorando com a experiência. É nessa fase que a criança começa a trabalhar com símbolos, com imagens mentais, delicia-se com a memória e os jogos simbólicos, é aí que tem as primeiras noções de papel sexual. Bom, já deu para entender que é quando se começa a mentir. Aprender a mentir é aquisição do processo de amadurecimento; melhor dizendo, faz parte do nosso desenvolvimento enquanto espécie. A mentira não cria o homem mentiroso, ela o encontra (cognitivamente) pronto.

A Teoria da Mente é conhecida como a habilidade de representar representações – parece redundante, mas tenha calma. Representar representações refere-se à capacidade de representar na sua cabeça a cabeça do outro, o que seria dizer que a Teoria da Mente é a habilidade de inferir os desejos de alguém, seus sentimentos e, talvez com sorte, ter uma ideia de seus pensamentos. No caso do bicho-homem, a luta pela sobrevivência é também uma luta social. Para nós, mentir é fundamental para lidar com o grupo.

Para a teoria darwiniana, se o comportamento se mantém, é porque ele teve valor para a sobrevivência e foi selecionado. Uma maneira interessante de pensarmos o comportamento normal – no sentido estatístico (e não valorativo), ou seja, de como em média as pessoas funcionam – é observar o comportamento que se distingue da média. Um dos quadros psicopatológicos mais relacionados à sinceridade é o autismo. Não vou me estender, pois autismo é assunto para mais de cinco livros. O que temos na literatura especializada, nos casos em que a linguagem se encontra desenvolvida (o que geralmente cursa com inteligência normal) os autistas falam o que lhes vêm à cabeça, doa a quem doer. Supersincerões, eles colocam em risco muitos eventos sociais. “Essa comida está horrível”, “você fede”, são exemplos dos mais comuns. Mentalize os jantares na casa dos amigos, os almoços de domingo na casa da sogra. Cada saia justa…

Mas a sinceridade não era virtude? Perceba com que facilidade perdemos algumas perspectivas. “Ser civilizado é, em certa medida, fazer um pacto com a mentira que funda as relações sociais e, por consequência, as mantêm” (Martins, 2019, p. 17). A frase famosa de Nelson Rodrigues, “mintam por misericórdia”, é, evolutivamente falando, mais um “mintam para evitar a discórdia”, “mintam para sobreviver”. Disso podemos levar uma lição para a vida: dizer que nunca se mente pode ser patológico, se não for, claro, uma mentira.

Todo mundo mente (2018) é o título do livro do economista americano Seth Stephens-Davidowitz. Nele, o autor faz uma interessante ressalva: ninguém mente para a barra de busca do Google, por motivos óbvios, senão ele não responde o que você quer saber. Já nas redes sociais, a nossa propensão pela desejabilidade social, o nosso forte desejo de criar uma boa impressão nos leva ao que os filósofos Tosi e Warmke chamaram de exibicionismo moral (grandstanding), “nossos feeds das redes sociais estão cheios de pessoas tentando provar que se encontram do lado certo da história” (Tosi & Warmke, 2021, p. 23).

Erving Goffman, antropólogo e sociólogo canadense, em A representação do eu na vida cotidiana (2014), apresenta uma perspectiva sociológica, empregando a metáfora teatral para estudar a vida social do homem. Assim, a divide em palco/cenário/bastidores, ator/personagem/atores e plateia. O ator, no palco, diante da plateia, precisa convencê-la e faz isso fornecendo uma impressão (com atos, vestimentas, falas), incorporando e exemplificando os valores reconhecidos na imagem que deseja projetar. Quanto maior o esforço para representar, em contrapartida, menos tempo ele gasta para de fato se aprimorar em desempenhar bem uma tarefa.

“Há muitos indivíduos que acreditam sinceramente que a definição da situação que habitualmente projetam é a realidade verdadeira” (Goffman, 2014, p. 83). Ou seja, o ator, no palco, quer dar a entender que possui certas características sociais, que é de fato o que pretende ser. O cenário – leiam-se filtros e legendas – tem importância, lógico. E o ator faz isso usando a Teoria da Mente. Não é à toa que o virtuosismo moral nas redes “pegou”: as redes sociais injetam esteroides na nossa necessidade de aprovação social.

O moralista, como todos sabem, diz que é sincero e que tem boa conduta. Tem urticárias com a mentira. “Automaticamente exerce uma exigência moral sobre os outros, obrigando-os a valorizá-lo e tratá-lo de acordo com o que as pessoas de seu tipo têm o direito de esperar” (Goffman, 2014, p. 25). A verdade é que a representação do moralista faz o nosso sadismo salivar. O virtuoso moral é comovido pela defesa do bem e, não poderia faltar, pela defesa da sinceridade. Ele acredita inspirar, com sua encenação, a admiração da plateia.

Aliás, como anda sua timeline no Instagram? Cheia de moralistas virtuosos, simpáticos e sorridentes? Paul Ekman, psicólogo americano que ficou conhecido pelos seus estudos sobre a mentira, em Telling Lies (2009), relatou que a máscara mais usada para falsear uma emoção, ou seja, para mentir, é o sorriso.

Henri Bergson, filósofo e diplomata francês, escreveu que “o remédio específico para a vaidade é o riso, e que o defeito essencialmente risível é a vaidade” (Bergson, 2018, p. 113). Bom, é assim que se planta uma dúvida em cima de um algodão úmido: a que serve o sorriso que vejo? Todo sorriso é sincero? E a sinceridade mente? Se você tem Teoria da Mente e ainda tem uma vida social, sabe a resposta.

Referências bibliográficas

Bergson, H. (2018). O riso: ensaio sobre o significado do cômico. São Paulo: Edipro.

Ekman, P. (2009). Telling Lies: clues to deceit in the marketplace, politics, and marriage. New York/ London: W. W. Norton & Company.

Goffman, E. (2014). A representação do eu na vida cotidiana. 20ª ed. Petrópolis: Editora Vozes.

Martins, A. V. (2019). A verdade é insuportável: ensaios sobre a hipocrisia. São Paulo: Filocalia.

Stephens-Davidowitz, S. (2018). Todo mundo mente: o que a internet e os dados dizem sobre quem realmente somos. Rio de Janeiro: Alta Books. Tosi, J. & Warmke, B. (2021). Virtuosismo moral (Granstanding): as ideias por trás dos cancelamentos, boicotes e difamações nas redes sociais. 1ª ed. Barueri: Faro Editorial.

Imagem: Joaquin Phoenix em “Joker” (2019), divulgação

Sobre o autor

Carolina Rabello Padovani

Pós-doutora em Ciências pelo Instituto de Psicologia da USP. Doutora e Mestre em Ciências pelo Instituto de Psicologia da USP. Especialista em Neuropsicologia pelo CEPSIC do HCFMUSP. Psicóloga, bacharel e licenciada pelo Instituto de Psicologia da USP. Pesquisadora dos grupos de pesquisa "Comportamento Político" e "A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade" e também pós-doutoranda no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.