Comportamento Político

Um playground sob a proteção de Deus

O que o estudo do comportamento humano pode nos dizer sobre o aumento da participação dos evangélicos na política?

Imagine um condomínio com 50 habitantes de nossa espécie. Tomando por base o Censo 2010 do IBGE, teríamos 28 católicos, 15 evangélicos e 7 condôminos de outras religiões ou abstêmios (no sentido de não terem religião). Estou dividindo dessa forma acochambrada porque nossa cabeça funciona por economias cognitivas, que os especialistas chamam de “heurísticas”[1] – elas facilitam o raciocínio, embora não o purifiquem, muito pelo contrário, mas um problema por vez.

Organiza-se nesse condomínio uma assembleia para votação da implementação de um playground.

Sabemos que a tendência geral é reduzir o número de filhos e os dados indicam que, em média, não chegam a dois por casal. Há quem atribua tal disposição ao individualismo da modernidade, com seu foco no trabalho, no desenvolvimento pessoal e, eu acrescentaria, à preocupação (de que raros não sofrem) com saúde mental, muito próxima do personagem Argan de Molière, um hipocondríaco que, no fim, torna-se médico (hoje chamamos de “autodiagnóstico”) – a peça é “O doente imaginário”.

Porém, as médias, à maneira das heurísticas, tanto ajudam a pensar quanto atrapalham. Nesse condomínio inventado, algumas famílias têm outros princípios, não tão centralizados em um indivíduo, basta ver como povoam os andares com choros e lotam os latões de lixo com fraldas e vidros de papinhas. Nada mais coerente do que lutarem por um playground.

Decidir pela existência ou não do playground já irá dar um trabalho danado. Depois virá a decisão quanto ao mobiliário, tipo de areia, cor do balanço, altura do escorregador. A lista se mostrará extensa a ponto de exaurir o maior dos admiradores de Excel.

Não me importa quem pode votar nessa assembleia, tampouco o resultado. Aqui, o que merece nosso conhecimento é que os habitantes desse condomínio são democráticos e concordam que a maioria decide.

Àqueles que interessa o parquinho, basta saber como unir votos aos lotes. O empate iria criar um enorme impasse, afinal, há coisas para as quais não há critério de desempate considerado justo por ambas às partes: seria outra trabalheira.

Playground quase resolvido e alguém sugere colocar uma placa na entrada com a seguinte inscrição: “sob a proteção de Deus”. Cerca de 87% do condomínio não irá se opor. Vale perguntar: é um condomínio com administração religiosa ou laica? Duvido que os 7 condôminos de outras religiões ou sem religião irão fazer muito barulho contrário à placa, senão por falta de quórum, talvez por indiferença, timidez ou mesmo prudência.

Comecei essa história pelo tamanho do grupo. Tenho minhas intenções. Primeiro que usei o número 50 para a quantidade de habitantes, porém, um grupo humano tem ao redor de 150 pessoas[2]. Nossos primos, os chimpanzés, costumam formar grupos com um terço desse tamanho. Somos racionais e daremos conta. Será?

Criar coesão em um grupo é fundamental para um bicho incapaz de sobreviver sozinho – pensando em milhões de anos atrás, claro. O que acontece é que as dificuldades modernas seguem sendo gerenciadas por um cérebro que continua a ser em modelo ancestral. Assim, somos grupais e, para sobreviver, temos de organizar nossa convivência e sermos leais ao nosso grupo.

Achen e Bartels encontraram que a lealdade ao grupo é muito mais significativa (ou seja, tem mais impacto) do que detalhes das posições políticas.

Pessoas tomam suas visões a partir de grupos dos quais pertencem e, além disso, frequentemente se orientam por essas visões porque as pessoas em volta, nesses grupos, tornam difícil não funcionar desse jeito (ACHEN & BARTELS, 2017).

A religião é, sem dúvidas, um grande organizador de grupos e orientador de atitudes e significados uma vez que fornece delimitações para o que é certo e errado.

O psicólogo Jonathan Haidt, citando Darwin, aponta que os grupos mais coesos e cooperativos geralmente derrotam os grupos egoístas e individualistas e, uma das colas mais eficazes (provavelmente uma adaptação evolutiva) é a religião, pois ajuda a criar comunidades com uma moralidade compartilhada (HAIDT, 2020).

A religião serve como uma estrutura de ligação: “grupos criam seres sobrenaturais não para explicar o universo, mas para organizar suas sociedades” (HAIDT, 2020, p. 12). Penso que explicar o universo acaba sendo uma forma de organizar, porque, venhamos e convenhamos, ficar na dúvida nos perturba, melhor ter alguma história que nenhuma.

Usei a ideia do playground para ilustrar dois pontos: 1. grupos têm problemas a serem resolvidos – “(…) todas as sociedades precisam resolver um pequeno conjunto de questões sobre como ordenar a si mesma” (HAIDT, 2020, p. 15); e 2. grupos humanos precisam direcionar o cuidado da prole.

Resumindo, e considerando nosso processo evolutivo, a espécie humana parece ter tido (e ainda ter) três grandes razões para disputas:

  1. Brigas por espaços – sejam espaços físicos (território) ou espaços de poder (política) – igualmente poderíamos falar em espaços abstratos (de ideias/ teorias/ e mesmo religião).
  • Brigas por recursos – comida, vestimenta, utensílios. Hoje falaríamos em dinheiro – que dá acessos a outros recursos. Poder e atenção também podem ser considerados recursos.
  • Brigas por conta da prole – orientadas para proteção e cuidado dos nossos filhotes.

Somos territorialistas (e expansionistas) e, em certa medida, a extensão do território não está ligada apenas ao tamanho do grupo: está ligada à extensão do poder, de um grupo ou de um líder.

Quanto maiores os grupos, maior a necessidade de recursos para sua sobrevivência. É preciso, pois, haver uma organização para distribuição desses recursos e, consequentemente, regras que orientem para quem vai esses recursos e em quais quantidades.

Com vistas à defesa da prole, o ambiente de criação dos filhos torna-se muito significativo. Ademais, nossa prole é vulnerável e frágil, por vezes levando ao redor de 40 anos para sustentar-se por si mesma.

Portanto, a questão da prole não é mero detalhe. Sociólogos identificaram que casais com filhos, em especial em idade escolar, são mais presentes nas igrejas – isto é, comparecem mais – e participam mais da política (MARGOLIS, 2018).

Para muitos casais com filhos, criá-los em um ambiente ditado por regras claras proporcionaria a interiorização da disciplina (o que facilita a obediência), a evitação de situações de risco (como uso de drogas) e a construção de seu caráter.

Nesse sentido, há uma condensação entre educação e moralismo com mais um outro item, que tem muito diálogo com a política: a possibilidade de um futuro melhor.

Pais participam mais (na escola, na política, na mídia) quando sentem que sua atuação fará diferença na vida dos filhos e não só hoje, mas principalmente amanhã. Ora, até onde chequei, os pais não ficam conosco para sempre.

Como disse, acochambrei as categorias religiosas para facilitar o raciocínio. Aproveito o momento para informar que entendo que a palavra “evangélicos” é imprecisa, o mais adequado seria falar em “evangelicalismos”.

Um breve e excelente histórico sobre os movimentos protestantes pode ser encontrado no livro Evangélicos & Política, organizado por André Anéas, Lucas Merlo e Rafael Gama. Nele, podemos nos familiarizar com a influência norte-americana, a relação dos evangélicos com a ditadura, a discussão para colocar a frase “sob a proteção de Deus” no início da Constituição, o envolvimento nos meios de comunicação, o crescimento de seu poder no Estado, seus avanços em direção à educação e, chegando mais próximo de nós, nas redes sociais.

Trazendo para o contemporâneo, (lembrando novamente que esse universo é heterogêneo, mas buscando aqui algumas similaridades) o aumento da participação dos evangélicos na política pode ter a ver com o aumento do seu grupo, atrelado ao desconforto com quem detém o poder, a forma como essa pessoa o exerce e, consequentemente, como que ela estabelece a disposição de recursos.

Tudo isso vem atrelado aos valores que são defendidos, valores estes que sustentam as ações a partir de determinadas narrativas. Nesse cenário, é compreensível que as pautas morais sejam o carro-chefe dos debates.

Acontece que o tema moral não deixa de ser um tema econômico: alegar que, ao colocar no preâmbulo da Constituição a frase “sob a proteção de Deus”, teremos prosperidade por nos mostrarmos respeitosos a Deus é aliar conduta a potenciais resultados. O difícil é que prosperidade é um alvo móvel: pode sempre ser posto mais adiante. Que ninguém se engane: as pautas morais são pautas domésticas – têm a ver com a nossa casa e, evidente, com a casa do nosso vizinho.

A tríade que proponho – espaço, recurso e prole – fez sentido agora?

Finalmente, reconhecendo a impossibilidade de se esgotar o assunto, à resposta sobre o que o estudo do comportamento humano pode nos dizer sobre o aumento da participação dos evangélicos na política acrescento um trecho de Haidt: “as pessoas se conectam a grupos políticos que compartilham de suas narrativas morais. Uma vez que aceitam essa narrativa específica, elas se tornam cegas para mundos morais alternativos” (HAIDT, 2020, p. XX).

Decisões em grupos humanos nunca são fáceis. Mesmo quando deixamos as soluções a encargo dos adultos, não podemos esquecer que muitos deles ainda comem areia: a domesticação que nos tira da barbárie, infelizmente, até quando alcança algum sucesso, se dissolve à toa.

Ardemos de esperança de transformar os homens.
Raph Waldo Emerson

Referências bibliográficas

ACHEN, C. H. & BARTELS, L.M. Democracy for realists: why elections do not produce responsive government. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2017.

ANÉAS, A.; MERLO, L. & GAMA, R. (orgs). Evangélicos & Política. São Paulo, Editora Recriar, 2023.

EMERSON, R. W. A conduta da vida. Campinas: Auster, 2019.

HAIDT, J. A mente moralista: por que pessoas boas são segregadas por política e religião. Rio de Janeiro: Alta Books, 2020.

MARGOLIS, M. F. How politics affects religion: partisanship, socialization, and religiosity in America. The Journal of Politics, vol.80, n.1, p.30-41, 2018.

[1] Evidências sugerem que nós, seres humanos, usamos a heurística para resolver problemas complexos. Heurísticas são simplificações, atalhos. Facilitam, mas são perigosas. Não somos bichos com capacidade cognitiva para manejar muitos detalhes, por isso, recorremos a aglomerados, narrativas prévias e crenças circundantes.

[2] O homem tende a formar bandos de 100 a 230 pessoas, o que se convencionou dizer um número médio de 150 pessoas, número de Dunbar (na verdade, 148, mas arredondamos) extraído pela associação entre tamanho do neocórtex.

Imagem: Christian Rebernik/Wikimedia Commons (Tailândia, 2006)

Sobre o autor

Carolina Rabello Padovani

Pós-doutora em Ciências pelo Instituto de Psicologia da USP e pelo LABÔ. Doutora e Mestre em Ciências pelo Instituto de Psicologia da USP. Especialista em Neuropsicologia pelo CEPSIC do HCFMUSP. Psicóloga, bacharel e licenciada pelo Instituto de Psicologia da USP. Pesquisadora do grupo "Comportamento Político" do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.