o que os últimos lampejos de término de ciclos iluminam na vida
Há um sentimento de pesar que ronda o consultório ao final de cada ano. Isso não é novo: comumente se chama de “depressão de fim de ano” (ou holiday blues) esta sensação de peso, angústia e tristeza em uma época tradicionalmente festiva. O que é novo para nós é que pela segunda vez passamos por esse período assombrados pelo fantasma da fase que atravessamos. Observo o quanto a carga da pandemia tem pesado mais em relação aos temas relacionados à finitude: luto de pessoas, lugares, papéis, atividades – um luto de si mesmo em relação às consequências (sequelas) da covid-19 que vai completar dois anos, trazendo para a conta da vida um débito exorbitante de perdas e incertezas. Para muitos, dezembro é um mês de encarar emoções incômodas silenciadas ao longo do ano, o que aumenta o nível de estresse e ansiedade. Este texto é um convite a olharmos juntos estas emocionalidades que nos atravessam em fins de ciclo e como a perspectiva de Viktor Frankl pode diminuir o peso das questões em torno da finitude.
O tema da morte afeta profundamente o ser humano. Mesmo que entendamos que o ato de morrer seja natural como o de nascer, o sofrimento gerado por esse fato implacável e sob o qual não temos controle se apresenta em pelo menos quatro dimensões. Em primeiro lugar, a dimensão física, não apenas em relação ao envelhecimento do corpo, mas também da ausência que seremos ou que sentimos de quem partiu. Em segundo lugar, uma dimensão emocional, ou seja, as emoções sufocadas ao longo da vida, as palavras não ditas, as situações não vividas têm um peso no processo final, um apego à vida pela dor do não vivido intensifica o sofrimento em relação à morte – também por isso a dor pela perda de uma pessoa jovem nos afeta tanto: pela projeção que fazemos de tudo que ela poderia viver se houvesse tempo. Em terceiro lugar, a questão da dimensão social, porque nascemos em uma família, relacionamo-nos com pessoas de variados grupos, exercendo múltiplos papéis na sociedade, e a possibilidade de não viver mais em determinados círculos pode causar sofrimento – daí também o luto do desemprego, ou dos papéis familiares quando um ente querido se despede da vida. Por último, a quarta dimensão diz respeito à esfera espiritual, não necessariamente religiosa, mas a uma dor da alma diante da perda de algo que se conecta ao que dá sentido existencial para nossa vida, um desamparo, desesperança e descrença em relação ao que acreditamos ser maior que nós, que pode ser desde a humanidade até Deus. São essas quatro dimensões de sofrimento que nos fazem questionar o sentido da vida.
Ao lado da morte e do sofrimento, Viktor Frankl aponta a culpa como o terceiro pilar da tríade trágica:
porquanto nenhum de nós está livre de ser confrontado com o sofrimento inelutável, com a culpa incontornável e com a morte inescapável. E esta é a pergunta que nos devemos colocar: a despeito de todos esses aspectos trágicos da existência humana, apesar disso, como podemos dizer sim à vida? (FRANKL, 2019, p. 84).
Recentemente, Irvin Yalom lançou o livro de memórias que escreveu Marilyn Yalom, sua esposa que enfrentou o diagnóstico de um câncer terminal. O título já aponta o universo profundo, sensível e fundamental que o conteúdo traz: Uma questão de vida e morte: amor, perda e o que realmente importa no final (2021). É impressionante observar como podemos ler, escrever, ouvir e falar sobre a transitoriedade da vida, sobre a tomada de consciência da existência diante do fato de que somos mortais, mas é apenas na experiência pessoal, única, que mergulhamos nas camadas mais profundas que o tema da finitude desperta em cada um de nós. Não à toa esse último livro de Yalom e o best-seller Em Busca de Sentido, de Frankl, tocam tão fundo em nosso ser: porque são escritos a partir da experiência real, vivida, de quem enfrentou a tríade trágica (no caso de Yalom, a doença da esposa; no de Frankl, a vivência em campos de concentração) e a superou, não “passando por cima”, mas se comprometendo com o que a vida apresentava, dizendo “sim” apesar de tudo. E esse “sim” tem a ver com viver com verdade, inteireza, reconhecendo que, como diz a canção de Marcelo Jeneci, “a gente é feito pra acabar”:
Marilyn, lembro-me com muita clareza do seu comentário frequentemente repetido: “A morte de uma mulher de 87 anos que não se arrepende de sua vida não é uma tragédia”. Esse conceito – quanto mais plenamente você vive sua vida, menos trágica é sua morte – soa muito verdadeiro para mim. (YALOM, 2021, p. 202)
Quando a ideia da morte nos visita de forma concreta, como foi o caso de Marilyn, de Frankl e de todos nós que nos deparamos com um vírus potencialmente letal, com adoecimento e com qualquer evento que imponha um rompimento com quem somos até aqui, a vida se apresenta em sua maior potência. Pode parecer contraditório, mas é diante do fim que nos damos conta de que morrer é um fato real, e é a partir dessa consciência que podemos construir uma vida plena de sentido, que não seja banal, no tempo que nos resta. Só que não precisamos necessariamente tomar esse chacoalhão da vida em momentos de sentença de morte (doença, rompimento, falecimento). Podemos assumir este comprometimento com a vida a partir de agora. Entender que a vida precisa ser vivida de verdade e realmente vivenciar esta vida como uma oportunidade que nos foi concedida durante o tempo que temos, que não sabemos qual é, para fazer aquilo que faz sentido. Nós precisamos realizar aquilo que faz sentido até o momento que a morte nos encontra.
Fim de ano também representa, simbolicamente, uma pequena morte. Podemos estar angustiados e esperançosos pelo ano seguinte, mas sabemos que não repetiremos exatamente o ano vivido – ele vira passado, história a ser contada. É neste tempo de preparação para o novo ano que podemos nos conectar com uma avalanche de emocionalidades importantes para nos conectarmos com o sentido de nossa existência. Se prestarmos atenção a elas neste fim de ciclo, poderemos captar lampejos de sentido que experienciamos e também que ainda queremos criar.
É essa luz que injeta vida em nossa própria vida e ilumina o caminho desde o presente até o futuro. Que pegadas você está deixando na caminhada do viver? Que passos quer dar agora? Com que espaços, pessoas e experiências deseja se conectar? E qual o projeto para criar esta jornada com sentido para você? Fim de ciclo pede revisão de nossos barcos individuais e coletivos de sentido e nos convoca: é preciso remar.
A maré de sorte só chega para quem um dia entendeu que os ventos sempre mudam de direção e não deixou de remar.
Porque ninguém aprende a nadar na areia.
O mar ensina.
Mas é preciso remar.
(Allan Dias Castro)
Referências bibliográficas
FRANKL, Viktor E. O sofrimento Humano – Fundamentos Antropológicos da Psicoterapia. Trad.Renato Bittencourt, Karleno Bocarro. 1 ed. São Paulo. É Realizações. 2019.
GOMES, Francisco Carlos. TED-X: Sentido da Morte e da Vida. 5 jun. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PoF467JwldM> Acesso em 18 dez. 2021.
YALOM, Irvin. Uma questão de vida e morte – amor, perda e o que realmente importa no final. Trad. Fernanda Mello. São Paulo: Planeta, 2021.
Imagem: Heraldo Galan