
“Eu detesto a hora de ir para a cama, você bem sabe (os olhos marejados, evitando contato visual). Tenho vergonha de dizer, mas já fico em pânico horas antes pensando no que vem depois de jantar, de colocar o pijama e apagar a luz: eu sou obrigado a dormir (silêncio). A cabeça a milhão, são 3:00 da manhã e os olhos abertos (…) estou exausto, não sei mais o que fazer. Durante o dia, tanta coisa pra resolver, mas de noite só tem o silêncio do quarto, da casa, da cidade… e um barulho ensurdecedor dentro de mim.”
O excerto acima é uma reprodução consentida da fala de um paciente de quase cinquenta anos durante uma sessão de psicoterapia comigo. Queixas angustiadas como esta, sobre uma imensa dificuldade em dormir, infelizmente, são comuns em minha prática clínica, sem distinção de classe, sexo, idade ou profissão. Atualmente, parece que dormir oito horas por noite é luxo ao qual poucos afortunados têm acesso.
De acordo com a Associação Brasileira do Sono, setenta e três milhões de brasileiros enfrentam problemas de insônia, e este não é apenas um incômodo passageiro; trata-se de um distúrbio associado ao aumento do risco de morte, doenças cardiovasculares, depressão, obesidade, hipertensão, fadiga e ansiedade. Mas por que a qualidade e o tempo de sono estão cada vez mais comprometidos, e por que dormir se tornou tão difícil?
Porque dormir é muito mais do que o simples ato mecânico de fechar os olhos para descansar o corpo. É a deliberada desconexão com o mundo real, quando nossas mais belas faculdades de raciocínio ficam suspensas por algumas horas. Tudo ao nosso redor pode acontecer enquanto o corpo repousa, e apesar deste repouso.
Dormir trata da proposital pausa em todas as máscaras que usamos na rotina cotidiana, e da imagem que oferecemos ao mundo e às outras pessoas. A entrega ao desconhecido da noite e do sono é o verdadeiro encontro solitário consigo mesmo, o que exige o desprendimento último do nosso imaginário senso de controle.
A vida contemporânea com seu ritmo urbano agitado e lista de obrigações, nos faz viver num contínuo estado de competição que ignora o respaldo do grupo social e se firma unicamente no indivíduo: somos treinados de dia a viver de checagem, de vantagem, de rapidez, de dar o melhor, de vestir a camisa, “de trabalhar enquanto eles dormem”; tudo o que é radicalmente oposto ao pressuposto do mundo do sono: para dormir, temos que confiar no outro, nas instituições, na estrutura cultural e social – acreditar que a roda lá fora do quarto continuará a girar por nós enquanto repousamos. Explico: para nos desprendermos do mundo desperto madrugada adentro, para acreditar que é possível nos desconectarmos por algumas horas, é preciso ter pirografado em nossa mente a crença de que vai ficar tudo bem. O mundo não vai acabar, claro que o sol vai voltar a brilhar amanhã mais uma vez, inclusive para você, insone.
Não me parece absurdo inferir aqui que tal inscrição arcaica e segura dentro de nós, acerca do mundo e de como ele funciona noite adentro, remonta provavelmente da infância, fase anterior da vida na qual geralmente tínhamos à disposição toda uma ritualística previsível minutos antes de ir para a cama, que nos preparava para que pudéssemos, enfim, dormir: um adulto cantando a cantiga de ninar, a história, a meia-luz, o acalanto preferido, rezar e a ideia do anjo da guarda, o cafuné, contar os carneirinhos, entre outros: tudo que é preciso desde que o mundo é mundo para que aprendêssemos a dormir (e a confiar) nada mais é do que aquilo que aprendemos através do contato com o outro. Tudo o que sabemos hoje sobre como abandonamos nosso próprio corpo e nossa mente na experiência de dormir e sonhar só foi possível porque houve alguém que, num primeiro momento, filtrou para cada um de nós o medo da noite. O que nos é passado quando somos crianças é a ideia de que alguém estará acordado e por perto, quase que dando permissão para que possamos dormir tranquilos.
Podemos inferir, portanto, que o sono, essa experiência tão gostosa do corpo humano, uma vez que condicionada ao contato e proteção de um outro (adulto), trata fundamentalmente de uma experiência de amor. A primeira marca do amor, na verdade, porque ao se entregar ao corpo do outro e confiar que aquele outro “zela por mim”, aprendo que tem amor por perto e que tem sim como dormir em paz. Mas aí, caro leitor, a gente cresce, e descobre que não tem uma força protetora contra todo mal, de plantão, sentada ao lado de nossa mesinha de cabeceira.
Isto porque infelizmente a vida que levamos hoje em dia contribui – e muito – para um esgarçamento dessa nossa hipótese de amor, e consequentemente, do motivo da qualidade reduzida de nosso sono: poder se entregar de noite e confiar que sempre haverá outrem nos protegendo são dimensões amorosas que se perdem no mundo contemporâneo das tecnologias. Traduzindo: não conseguimos desligar.
Como é que se faz para dormir como adulto então, quando aprendemos que fomos “enganados” com aquela encenação toda? Ora, todo o cenário pré-adormecer da infância não passava de uma contingência feliz, afinal quem “garantia” o nosso repouso era, no fim das contas, só mais um humano – que chorava, que se alegrava, que era todo cheio de dúvidas e dívidas como qualquer outro, mas que provavelmente acreditava que ia ficar tudo bem porque um dia alguém também disse isso para ele quando ele era criança. O que muda de figura na vida adulta e que causa aquele friozinho na barriga segundos antes de fechar os olhos é que acabamos por descobrir a duras penas que, para garantir o bom sono, somos nós quem temos de fazer a nossa parte para que, na medida do possível, fique “tudo bem”. Porque amadurecer é isso: entender que somos os únicos fiadores de nossa própria existência (não só de dia, mas também de madrugada).
Dormir, infelizmente, é uma commodity que sempre vai ter margens estreitas, porque durante o dia todo, é esperado de mim que eu devo performar, produzir, me afirmar socialmente, mas a hora de dormir tem um efeito de radicalidade – encarar a noite adentro é aceitar que as estrelas permanecem em silêncio, assim como tudo a nossa volta. O nosso mundo cotidiano nos condicionou a olhar para os problemas concretos, mas toda noite, ao colocar a cabeça no travesseiro, somos lembrados que não há uma resposta única e nem sabemos se ela virá.
O significado disto é que durante o dia somos poupados, porque a realidade do sempre “fazer inconsequente” nos permite não ter que ficar pensando no sentido desta imensidão. A hora de dormir é a hora da verdade, porque o silêncio de nossos pensamentos nos obriga a rever nossa relação com as culpas, com o passado, com as decisões que não tomamos, com a falta de sentido última. E isto pode ser muito desafiador.
Pois bem, uma chamada ‘crise existencial’ é um termo que erroneamente caiu na boca do povo e teve muito de seu significado reduzido, mas que quando pensado numa esfera onde há rigor clínico-científico, diz do nosso modo peculiar e individual de lidar com a consciência de nossa existência na Terra, nossa finitude e o barulho que isso faz nas nossas cabeças. É inevitável, vez ou outra, nos vermos às voltas com tentativas de responder às mais básicas questões humanas, como quem sou eu e por que estou aqui. Uma verdadeira crise existencial, contudo, é condição miserável e sufocante; traz consigo a sensação da derrota e acontece quando começamos a nos preocupar que talvez a (minha) vida não tenha sentido mesmo, posto que absurda. É desesperadora enfim, pois esgotamos as justificativas racionais e começamos a nos perguntar: por que mesmo eu deveria me importar se não saio vivo daqui? Não surpreende ninguém que todo esse questionamento urge na calada da noite, provavelmente durante aquelas horas, dentre as vinte e quatro horas do dia, em que estamos a sós com nossos pensamentos. Mas será prudente etiquetar a minha pontual insônia como uma verdadeira crise existencial? Veja bem, crises existenciais muitas vezes são experimentadas como um vazio persistente e intenso ao longo do tempo, e trazem consigo desespero, solidão, dificuldade em tomar decisões, perda de interesse, desesperança e preocupação excessiva. Não se trata de minimizar tamanho sofrimento comparando-o a uma ou duas noites mal dormidas. Os gatilhos comuns de uma crise existencial são mudanças significativas ou muito repentinas no cotidiano, que abalam a identidade do sujeito e seu modo de ser em sua rotina no mundo, como por exemplo traumas, violências e perdas (separação, divórcio, morte), bem como as grandes transições de fases na vida (infância, adolescência, vida adulta, velhice) e o enfrentamento da mortalidade (de outrem e sua, seja por idade, seja por diagnóstico médico).
Muitos filósofos escreveram sobre a natureza desconcertante e dolorosa de se viver uma verdadeira crise existencial, mas a maioria argumenta veementemente que devemos abraçá-la como parte da vida, em vez de rotulá-la ou tratá-la como patológica. Viktor Frankl é um deles. Em sua Logoterapia, Frankl enfatizou a importância de os indivíduos assumirem a responsabilidade por encontrar significado em suas vidas, mesmo diante da adversidade. Ele argumenta que, mesmo quando confrontados com situações de sofrimento extremo, as pessoas ainda têm o poder de escolher como responder a essas situações. Essa capacidade de escolha é fundamental para a busca de significado na vida, conforme Frankl descreve em seu livro “Em Busca de Sentido”. De acordo com Frankl, a proatividade pode ser vista como a capacidade de assumir responsabilidade pelas próprias escolhas e ações, mesmo quando as circunstâncias externas são desafiadoras. A hora de dormir nos confronta com a verdadeira essência da vida, que é a da responsabilidade para com nossas respostas frente aquilo que não podemos mudar. Só porque dói, não significa que seja insalubre. Só porque não durmo vez ou outra, não significa que cheguei no limite do desespero. Ao reconhecermos que mesmo quando não temos controle sobre todas as variáveis, ainda podemos encontrar significado e propósito em nossa jornada, teremos mais chance de aceitar a vida em sua plenitude, com todas as suas surpresas e desafios, e encontrar paz mesmo nas incertezas. Isso em si não garante uma boa noite de sono, mas ajuda bastante.
Todo ser humano precisa acreditar para dormir – suportar encarar a noite e desconectar-se da realidade dos nossos projetos é o primeiro passo para quebrar o ciclo vicioso da insônia, afinal, integrar o sono como parte da vida – é vida também. Algumas vezes conseguimos controlar algumas variáveis, mas entender que a grande maioria das vezes somos constituídos por nossas próprias moiras é fundamental para conciliar serenamente dentro de nós mesmos o aspecto aberto da existência – onde, de fato, a única certeza que existe é a de que tudo pode acontecer. Cabe a nós vivermos da melhor maneira que for possível, dentro das circunstâncias.
Arrisco dizer que o fundamental e mais belo da vida é justamente ela ser um grupo de possibilidades em aberto: tem o nosso projeto, o nosso sonho, a nossa ilusão de controle, o nosso ideal… e tem também todo o resto que não pode ser mensurado. Conseguir dormir pressupõe se desconectar temporariamente da vigilância antecipatória dos perigos do mundo. Trata-se de consentir, resignar-se, existir de forma relativamente indefesa. Autorizar-se num mergulho nas memórias desconectadas da consciência e com elas ou a partir delas, sonhar talvez – o “para que existo”, que causa tanta paúra por aí e deixa tanta gente sofrendo com noites em claro, está sendo desperdiçado quando deveria ser bússola: questionar-se duramente “para que existo” só tem serventia quando sai do lugar do medo e vem para o lugar da mobilização das nossas próprias tripas. Afinal de contas, ao pó voltarás, mas daqui até o pó, tem a vida inteira no meio, nos esperando. Em vez de serem meramente reativos às condições ao seu redor, as pessoas proativas reconhecem sua capacidade de influenciar seu próprio destino através das escolhas responsáveis que fazem, independentemente do que a vida lhes apresenta. O dia que conseguirmos internalizar esta ideia, talvez possamos dormir o sono dos justos.
E você, leitor: tem dormido bem?
Bibliografia
Frankl, Viktor E. Em busca de Sentido: Um psicólogo no Campo de Concentração. Editora Vozes. Petrópolis. RJ.
Frankl, V. (2010) O que não Está Escrito nos Meus Livros, Editora É Realizações, 1ª edição
Michaelis Dicionário Escolar (2016) – Língua portuguesa, Editora Melhoramentos, 4ª edição
García‐Alandete et al., (2021) A systematic review of the effectiveness of meaning‐centred psychotherapies in depressed participants. January 2024, Clinical Psychology & Psychotherapy 31(1):e2936
Matthew Lee et al. (2016). Altruism and Existential Well-Being. The Official Journal of the International Society for Quality-of-Life Studies. Volume 12, pages 67–88, (2017)
Associacao Brasileira do Sono: https://absono.com.br/ (acesso em 1.4.24)
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