
O presente trabalho visa compreender as contribuições de dois autores cujas teorias são, em grande parte, antagônicas. De um lado, temos o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que explorou profundamente temas existenciais e é amplamente conhecido por “profetizar” a morte de Deus e rejeitar qualquer metafísica. Apesar de sua visão crítica sobre o mundo, Nietzsche apresentou uma perspectiva radical da vida, mesmo que não ofereça um sentido intrínseco. Para ele, viver verdadeiramente e plenamente significa abraçar a vida sem a necessidade de um propósito ou parâmetros pré-estabelecidos.
Do outro lado, temos Viktor E. Frankl, fundador da Logoterapia e da Análise Existencial. Sobrevivente dos campos de concentração, Frankl descreveu em seu best-seller Em Busca de Sentido o valor e o sentido da vida, mesmo em meio ao sofrimento extremo. Em sua teoria, o sentido é o fundamento primordial para a existência humana, e cabe a cada indivíduo descobri-lo. Para Frankl, a vida não é desprovida de sentido ou marcada apenas pelo caos; ao contrário, a vida é sempre um encontro com o sentido; e, a realização de valores na vida é a forma mais autêntica de se humanizar.
Diante dessas visões, perguntamo-nos: há algum ponto de aproximação entre esses autores em relação ao enfrentamento da vida mesmo sendo de teorias tão opostas? Poderiam suas teorias, por mais especificidades que tenham, oferecer um ponto de conexão? A seguir, exploraremos o conceito do pensamento dionisíaco em Nietzsche e o otimismo trágico em Frankl, buscando estabelecer possíveis pontos de aproximação entre suas perspectivas.
1) Afirmando a Vida no Sofrimento: O Pensamento Dionisíaco em Nietzsche
O pensamento dionisíaco em Friedrich Nietzsche representa uma ruptura com a tradição metafísica e um convite à liberdade plena da vida, mesmo em seus aspectos mais dolorosos e caóticos. A partir de sua obra O Nascimento da Tragédia, Nietzsche identifica em Dionísio uma força que vai além do bem e do mal, simbolizando a facilidade do mundo como ele é, com todas as suas contradições. No conceito dionisíaco, Nietzsche contrapõe o impulso apolíneo, que busca forma e harmonia, ao impulso dionisíaco, que celebra o devir e a destruição das fronteiras individuais. Esta visão reflete o que Nietzsche descreveu como uma “sabedoria trágica”, uma compreensão do mundo que envolve o sofrimento como parte integrante da existência (KUSSUMI, 2006, p. 85).
Inicialmente, Nietzsche se baseia em influências schopenhauerianas, nas quais o dionisíaco representa uma expressão da “vontade” que está além das aparências. Contudo, ele logo se afasta dessa abordagem e passa a defender uma filosofia trágica, onde a liberdade da vida em sua totalidade é uma afirmação estética e ética. Em Ecce Homo, Nietzsche define o trágico como “o dizer sim à vida, até mesmo em seus problemas mais estranhos e mais duros, uma vontade para a vida, que se alegra em sua própria inesgotabilidade até mesmo no sacrifício de seus mais altos tipos” (NIETZSCHE, 2003, p. 86).
O impulso dionisíaco não busca consolo em um sentido transcendente ou metafísico; ao contrário, ele desafia qualquer necessidade de justificação moral ou teleológica. Nietzsche questiona a “ordem moral do mundo” ao afirmar que a realidade não possui uma estrutura final que deva ser alcançada ou explicada. Para ele, o mundo é “caos por toda a eternidade”, sem valores absolutos que orientam a existência humana (NIETZSCHE, 2007, p. 109).
A celebração do sofrimento como parte da experiência dionisíaca é vista também no conceito de amor fati, ou amor ao destino. Nietzsche propõe que o ser humano ame e aceite a totalidade de sua vida, incluindo dificuldades e limitações. Através desse amor ao destino, ele encorajou uma afirmação radical do devir, onde o ser humano se torna “artista e criador” de seus próprios valores. Como afirma Nietzsche, “somos nós apenas que criamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a específica” (NIETZSCHE, 2007, p. 21).
Para Nietzsche, uma existência dionisíaca permite uma reconciliação entre o homem e o mundo, pois ambos são vistos como partes de um ciclo eterno de criação e destruição. O sofrimento, longe de ser negado, é constatado como uma condição necessária para a intensificação da vida. Ao contrário da visão apolínea, que busca limites e ordem importantes, o dionisíaco dissolve-se como fronteiras, permitindo que o indivíduo se sinta parte de um todo maior. “Sob a magia do dionisíaco”, escreve Nietzsche, “volta a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa, volta a celebrar a festa da reconciliação com seu filho perdido, o homem” (NIETZSCHE, 1994, pág 30).
No decorrer da sua filosofia, Nietzsche redefine o dionisíaco como uma resposta ao niilismo e ao pessimismo. Em vez de rejeitar a vida por seu sofrimento, ele propõe uma aceitação trágica que transforma a dor em força criativa. O “eterno retorno”, conceito central de seu pensamento, exemplifica essa afirmação da vida: ele desafia o ser humano a desejar que todos os momentos, até os mais dolorosos, se repitam eternamente, pois é essa disposição que confere à vida sua maior intensidade.
Portanto, o pensamento dionisíaco de Nietzsche desafia a busca por um sentido transcendente e, ao invés disso, encontra na própria vida, com toda sua dor e caos, um valor intrínseco. A tragédia, para Nietzsche, não é algo a ser superado, mas sim uma afirmação estética que permite ao ser humano enfrentar o sofrimento e dizer “sim” à vida em todas as suas formas. Ao abordar essa perspectiva, Nietzsche estabelece uma filosofia de afirmação que exalta a vida em sua totalidade e convida cada indivíduo a ser o criador do próprio sentido, celebrando o sofrimento como parte da grandiosa obra da existência.
2) O Otimismo Trágico em Viktor Frankl: Afirmando a Vida Apesar do Sofrimento
O conceito de “otimismo trágico” de Viktor Frankl reflete sua visão sobre a capacidade humana de encontrar sentido e valor em meio ao sofrimento doloroso. Ao contrário de um otimismo ingênuo, o otimismo trágico reconhece as dificuldades da existência e propõe que, mesmo diante da dor, culpa e morte, é possível responder de forma otimista e transformadora. Frankl enfatiza que a vida possui sentido em todas as situações, inclusive no sofrimento, e que é uma postura imposta pelo indivíduo, o qual pode transformar o sofrimento em uma oportunidade de crescimento pessoal (FRANKL, 2015, p. 33).
A base desse conceito é a “tríade trágica”, que engloba três aspectos inevitáveis da existência humana: sofrimento, culpa e morte. Segundo Frankl, essas realidades não precisam levar ao desespero; ao contrário, elas podem ser vivenciadas de maneira a conferir um sentido à vida, desde que o indivíduo adote uma atitude em prol da vida. Ele afirma: “o sentido da vida é incondicional, por incluir até o sentido potencial do sofrimento doloroso” (FRANKL, 2011, p. 94). Ou seja, a inevitabilidade do sofrimento não é motivo para desistir da busca pelo sentido, mas sim um chamado para enfrentá-lo como caráter de missão.
A logoterapia defende que o ser humano é capaz de autotranscender suas situações e responder de forma mais autêntica aos desafios da vida. Segundo Frankl, a logoterapia oferece uma visão otimista, pois “não há nenhum aspecto negativo da existência que não possa ser transmutado em conquistas positivas, a depender da atitude que se assume” (FRANKL, 2011, p. 94). Portanto, o fator essencial para transformar experiências dolorosas em realização pessoal, levando à superação da dor e à descoberta de novos valores que se realizam na caminhada existencial.
Entre os valores que podem emergir de uma visão otimista em relação à vida destacam-se os valores de atitude, que, segundo Frankl, são realizados por meio da postura diante do sofrimento. Nesse sentido, ele afirma que “a morte pertence à vida tão plena como o sofrimento. Nenhum dos dois torna a existência do homem sem sentido, mas antes plena de sentido” (FRANKL, 1990, p. 76). Essa percepção da vida como um conjunto finito de experiências dotadas de sentido é central para o otimismo trágico. Frankl argumenta que, ao aceitar a finitude da vida e o caráter doloroso do sofrimento, o ser humano pode encontrar motivações autênticas para viver e agir de forma responsável.
O otimismo trágico de Frankl sugere que é possível “transformar uma tragédia em triunfo pessoal” (FRANKL, 2015, p. 33). Em situações de sofrimento extremo, como as vividas por ele nos campos de concentração, Frankl testemunhou que indivíduos que encontraram um sentido para além deles mesmos – uma causa, pessoa amada ou um Deus – tinham maiores possibilidades de sobrevivência em meio a todo aquele sofrimento. Essa força (espírito) advinha da capacidade de encontrar um sentido à dor e de manter a dignidade, mesmo em condições desumanas. Para Frankl, essa postura não é masoquista, pois “sofrer desnecessariamente é ser masoquista, e não heroico” (FRANKL, 2015, p. 33). Assim, o sofrimento deve ser enfrentado com responsabilidade, e não buscado por si mesmo.
Em resumo, o otimismo trágico de Frankl oferece uma visão de vida em que a dor, a culpa e a morte são compreendidas como partes inevitáveis da existência, que não devem ser negadas ou evitadas, mas sim enfrentadas a partir de uma perspectiva em que a possibilidade de encontrar sentido sempre estará presente, apesar da situação. Através dessa perspectiva, Frankl convida o ser humano a autotranscender suas dificuldades e encontrar o sentido que está além dele mesmo, que em última instância, é dizer “sim” à vida e todo o conjunto de possibilidades de realização concreta em sua vida.
Esse compromisso com o sentido e com a capacidade de responder à vida de maneira única e irrepetível torna-se um verdadeiro ato de coragem, pois revela que “é possível encontrar sentido em todas as situações da vida, inclusive naquelas marcadas pela tragédia” (FRANKL, 1990, pág. 76).
Considerações finais
Os pontos de aproximação entre o pensamento dionisíaco de Nietzsche e o otimismo trágico de Frankl residem em suas abordagens afirmativas da vida em meio ao sofrimento. Ambos defendem que, mesmo diante do sofrimento e da morte, que são imanentes, é possível encontrar sentido e valor na existência.
Embora a forma de compreender o sentido seja completamente diferente entre os dois autores, isto é, enquanto para Nietzsche o sentido é elaborado pelo próprio indivíduo como impulso para o enfrentamento da vida, para Frankl o sentido só pode ser encontrado no mundo, através da sua consciência como órgão de apreensão da situação que exige uma resposta. Ou seja, o sentido só será realizado quando for visto de forma autotranscendente, pois ser humano é decidir diante de algo, e este algo é o mundo dos valores objetivos que aguardam para serem realizados de forma única e singular. Cabe ao indivíduo descobrir o sentido que o está exigindo para ser realizado.
Diante disso, o dionisíaco de Nietzsche representa a liberdade plena da vida, incluindo o caos e o sofrimento, sem a necessidade de uma justificação metafísica. Ele defende que o ser humano pode abraçar o devir e a transitoriedade, encontrando alegria e realização na própria luta e na criação de valores pessoais, mesmo em um universo indiferente. O sofrimento, nessa perspectiva, é uma oportunidade para a intensificação da vida, uma força que impulsiona o indivíduo a afirmar sua existência sem ilusões transcendentais.
Frankl, por sua vez, com o conceito de otimismo trágico, sugere que é possível encontrar sentido, inclusive no sofrimento. Para ele, a dor, a culpa e a morte são aspectos que residem da condição humana, mas que podem ser transformados em oportunidades de crescimento e realização pessoal. A atitude diante das adversidades permite ao indivíduo autotranscender sua situação e a enfrentar de forma única e irrepetível dentro da sua caminhada existencial.
Assim, ambos se aproximam da ideia de que a vida pode ser afirmada de forma digna, e que o sofrimento, longe de ser um obstáculo, pode ser um caminho para o fortalecimento e para a realização. Embora suas teorias sejam antagônicas em grande parte de suas interpretações sobre vida existencial, é certo que ambos compreenderam o valor de atitude que o ser humano precisa enfrentar em relação à vida e ao sofrimento. Ambos nos impõem a responsabilidade de viver da melhor forma e de uma vida mais autêntica em relação às demandas que assolam a experiência humana.
Bibliografia
FRANKL, VE A presença ignorada de Deus: ensaio sobre a religiosidade humana. Petrópolis: Vozes, 1990.
FRANKL, VE A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia . São Paulo: Paulus, 2011.
FRANKL, VE Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração . Petrópolis: Vozes, 2015.
KUSSUMI, MM Dionísio contra a metafísica: o Trágico após O Nascimento da Tragédia . Ítaca, 25. Edição Especial. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006
NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal . São Paulo: Companhia das Letras, 2007
NIETZSCHE, F. Ecce Homo . Tradução de Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2003
NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia . Tradução de J. Guinzburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1994
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