O comportamento ressentido é característica marcante no contemporâneo e, ainda que não seja assunto inédito, segue sendo um terreno espinhoso. Tanto na política quanto na mídia ou nas redes sociais, não é difícil perceber suas infiltrações. A parte interessante disso é contarmos com grandes autores que abordam esse assunto e, a partir deles, refletirmos devidamente respaldados. A parte complicada é saber que tocar nesse tema é, em certa medida, esbarrar no próprio ressentimento dos limites já sensíveis da convivência social.
Mas o que é o ressentimento? No dicionário, ressentimento consta como a mágoa que se guarda de uma ofensa ou de um mal que se recebeu. Um rancor. Maria Rita Kehl, psicanalista, apresenta o ressentimento como categoria do senso comum “que nomeia a impossibilidade de se esquecer ou superar um agravo” (KEHL, 2015, p. 14), e indaga: seria impossibilidade ou recusa em se esquecer? Mais adiante, a autora reflete que o ressentido “é um que não quer se esquecer, ou que quer não se esquecer, não perdoar nem superar o mal que o vitimou” (KEHL, 2015, p. 14), e cita o filósofo Max Scheler, quando este classifica o estado psicológico do ressentido um autoenvenenamento psicológico, em seu livro L´homme du ressentiment (1912). Na Rússia do século XIX, Dostoievski já escrevia sobre as pessoas que se tornavam destrutivas por falta de realização pessoal. O autor descreve esse estado amargo como o “consciente e angustiado sepultamento em vida de si mesmo no subsolo” (DOSTOIEVSKI, 2021, p. 20), num papel vingativo, que mantém a ferida autoimposta, não se conformando com seus desejos não satisfeitos.
A conduta ressentida é, assim, um comportamento individualista, ensimesmado, em que o ressentido mergulha na fragmentação da própria realidade e faz dela uma prioridade, acima de tudo e de todos. Ressentir é sentir e sentir de novo. É não abrir mão desse ciclo vicioso, alimentando-o com ideias desproporcionais de si e do que lhe fizeram, como forma de encorpar justificativas fantasiosas para perdas reais não superadas. Esse comportamento atormentado atua em busca de um tipo de ressarcimento, acreditando que é o outro (ou a vida) quem tem o dever de restaurar sua dignidade.
O ressentimento é como um caminho artesanalmente criado, para evitar questões sofisticadas que batem à porta de quem está vivo, incluindo aqui o chamado à escolha, elemento importante na composição do comportamento ressentido. Tão exaltada em nosso tempo, a liberdade de escolha eventualmente é encarada como um conflito do qual, ao tentar escapar, o ser humano se aliena trocando uma angústia (a escolha) por outra (decidir pela não-escolha). Nesse caso, se alojar no ressentimento é decidir pela não-escolha, uma espécie de opção negativa, que recusa superar o agravo e prefere ficar na dor como forma de se evitar a angústia de encarar um futuro sem controle.
Considerando o pensamento do psicanalista Jorge Forbes, que afirma que o dilema do ser humano do século XXI é decidir-se em um mundo de possibilidades, o ressentimento então seria uma maneira de evitar esse dilema e ainda ter seus direitos utópicos garantidos ante os demais. Quando menciona o ser humano desbussolado, ou seja, a pessoa que se vê perdida na urgência por decidir constantemente no cotidiano, Forbes reivindica para o humano a responsabilidade de arcar com a consciência (e com a consequência) de suas atitudes. Não adiantaria se debater, a escolha tem um sentido para cada pessoa e é somente a partir de seu exercício que se torna possível o amadurecimento, viabilizando a travessia das questões existenciais apresentadas pela vida.
Nessa altura, parece razoável repensar o ressentimento a partir do olhar Frankliano em dois conceitos-chaves: a liberdade responsável e a autotranscendência. Ainda que Viktor Frankl não tenha falado especificamente sobre esse afeto em sua obra, é possível fazer um exercício de anacronismo, refletindo sobre como ambos os conceitos desse autor vienense abrem espaço para o manejo da amargura, nome que Frankl dava à emoção que acometia sobreviventes de tragédias como o Holocausto. O autor não ignorava, tampouco minimizava, o trágico da vida. No entanto, via na liberdade responsável um caminho para escolher como lidar com esse mesmo trágico. Desse modo, no existencialismo de Frankl não se relativiza o sentido da vida, mas é a partir do enfrentamento do inevitável que se encontra com o sentido. Partindo dessa lógica, não há lugar de refúgio no ressentimento, uma vez que o agir se apresenta como componente fundamental em meio à contingência.
Para Frankl, não faz sentido encarar o destino como absurdo, mas como o inevitável que se impõe e demanda do ser humano uma (re)ação. Quando o ressentido decide por não agir, retrai e se acomoda passivamente num afeto que terceiriza a responsabilidade pela própria existência. Olhando num recorte Frankliano, a liberdade responsável seria uma das maneiras de não se refugiar no ressentimento, estando consciente de que ser livre é escolher por não seguir prisioneiro de uma dor. É da ordem do trágico relacionar-se com o sofrimento imprevisto e nem por isso há razão para considerar uma existência vazia.
Junto da liberdade de escolha, que não é livre de determinadas circunstâncias, mas é livre para se relacionar com essas mesmas circunstâncias, Frankl fala da autotranscendência, que aqui servirá como outra possibilidade produtiva no enfrentamento do ressentimento. Esse conceito confronta o comportamento ressentido quando afirma que o encontro com o sentido está para além do ser humano, ou melhor, é preciso sair da esfera do si mesmo para lidar com o vazio. Realizando valores (de atitude, de criação e vivenciais) o ser humano entenderá que, ensimesmado, não dá conta desse vazio. Assim, enquanto o ressentimento isola e estagna, a liberdade responsável e a autotranscendência apontam para uma ação. O ressentimento vive arbitrariamente do passado, a escolha mora no presente.
É decisivo abandonar o eterno retorno à mágoa. Para tanto, se faz necessário olhar para fora e além de si, a fim de interagir com o inusitado da vida. Obviamente não se trata de propor dicas mágicas que impeçam a pessoa de cair no ressentimento. Trata-se de apoiar nos conceitos propostos por um neuropsiquiatra, sobrevivente de uma tragédia inquestionável, que comprovou que a liberdade interior tem um valor inestimável, mostrando a relevância de se lidar com a tríade trágica a que todos estamos sujeitos na vida (a dor, a culpa e o medo) a partir do otimismo trágico: fazendo o melhor possível, escolhendo se posicionar diante do inevitável e não apostando tudo num comportamento individualista em que o vazio só faz aumentar. O documento Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no Mundo Actual prescreve que:
Na verdade, os desequilíbrios de que sofre o mundo atual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem. Porque no íntimo do próprio homem muitos elementos se combatem. Enquanto, por uma parte, ele se experimenta, como criatura que é, multiplamente limitado, por outra, sente-se ilimitado nos seus desejos e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, vê-se obrigado a escolher entre elas, e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz muitas vezes aquilo que não quer e não realiza o que deseja fazer. Sofre assim em si mesmo a divisão, da qual tantas e tão grandes discórdias se originam para a sociedade.
Todos temos, em maior ou menor escala, motivos para ressentir em algum momento da vida. A questão que fica, desde a obra e vivência de Viktor Frankl, é o que será feito desse ressentimento, a quem ele serve e para que involucrar-se nele. Não se trata de extirpar da face da terra esse afeto, mas de encontrar nos valores franklianos os motivos de seguir vivendo e enfrentando a contingência, a fim de superá-lo.
Após a libertação de Auschwitz, Frankl contou:
Um companheiro e eu caminhamos reto, cruzando os campos em direção à prisão da qual há pouco fomos libertados, de repente nos vemos diante de uma lavoura recém-germinada. Automaticamente quero me desviar dela. Ele, entretanto, me pega pelo braço e me impele reto em frente. Balbuciei algo de que não deve se pisar a brotadura. Aí ele se exalta. Com olhar ameaçador grita: “O quê? E o que fizeram conosco? Liquidaram minha mulher e meu filho na câmara de gás – isto, para não falar do resto – e tu queres proibir que eu esmague uns talos de aveia?…”.
Somente aos poucos se consegue levar essas pessoas a reencontrar a verdade, tão trivial, de que ninguém tem o direito de praticar injustiça, nem mesmo aquele que sofreu injustiça. (FRANKL, 2019, p. 117)
Considerando o humano um ser intencional, e não unicamente pulsional, agir de forma cruel pode ser uma escolha, mas superar a crueldade sofrida também o é. Essa escolha não se trata de tarefa fácil, mas pode ser exercida a partir de uma consciência livre e plenamente responsável, pois dela desponta um sentido. Na encíclica Dives in Misericordia, o Papa João Paulo II escreve que
É evidente que exigência tão generosa em perdoar não anula as exigências objetivas da justiça. A justiça bem entendida constitui, por assim dizer, a finalidade do perdão. Em nenhuma passagem do Evangelho o perdão, nem mesmo a misericórdia como sua fonte, significam indulgência para com o mal, o escândalo, a injúria causada, ou os ultrajes. Em todos estes casos, a reparação do mal ou do escândalo, a compensação do prejuízo causado e a satisfação da ofensa são condição do perdão.
Em sua observação enquanto ex-prisioneiro, Viktor Frankl citou a decepção e a amargura como prejuízos que podem deformar a pessoa num ponto de vista caracterológico. Frankl afirma ser uma situação de enfrentamento muito difícil, a da vítima na psicoterapia, mas que de modo algum deve ser motivo de relativização. Ao contrário, para o psicoterapeuta (e para o ser humano), “a dificuldade deve ressaltar o estímulo, pois constitui desafio e tarefa”. Não se trata de estabelecer palavras de ordem que milagrosamente tirem alguém do ressentimento, mas de oferecer elementos que contribuam na libertação desse afeto que, longe de garantir reparação, apenas reforça a arbitrariedade como reação de quem ressente. Certas dores simplesmente não são passíveis de restituição. “Não há felicidade sobre a terra capaz de compensar nosso sofrimento”, escreveu Frankl. Mas é olhando a liberdade responsável como forma de interagir na contingência que se desautoriza a autocondenação.
Ressentir é um tipo de encarceramento voluntário, em que a recusa em superar um mal impingido ganha ares de tortura. Como sobrevivente, Frankl deixou a compreensão de que “a experiência do libertado é coroada pelo maravilhoso sentimento de que nada mais precisa temer neste mundo depois de tudo o que sofreu – a não ser seu Deus.” (FRANKL, 2019, p. 119) Ninguém é isento de encarar a tríade trágica frankliana, definida pela dor, pela culpa e pela morte. Não há como ignorar a contingência, nem há como garantir uma vida sem tensão. É impossível escapar da própria finitude. Ainda assim, nada disso deve ser motivo para ressentir e invalidar o sentido na vida. Há um valor imensurável em atravessar o ressentimento e a partir da liberdade responsável escolher “dizer sim à vida, apesar de todos os aspectos trágicos da existência humana” (FRANKL, 2019, p. 11).
Referências bibliográficas
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Notas do Subsolo. Porto Alegre – RS: L&PM Editores. 2021
FORBES, Jorge. Estamos desbussolados. 2019, disponível em https://experience.hsm.com.br/posts/estamos-desbussolados
FRANKL, Viktor. Em busca de Sentido. São Leopoldo – RS: Editora Sinodal. 2019
FRANKL, Viktor. El hombre doliente. Barcelona: Herder Editorial. 1987
JOÃO PAULO II. Dives in Misericordia. Vaticano. 1980, disponível em https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30111980_dives-in-misericordia.html
KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo – SP: Casa do Psicólogo Editora. 2015.
Imagem: detalhe de “Solitude” (Paul Delvaux, 1956)