Comportamento Político

Era Digital: mídias sociais, Internet Addiction Disorder e a ascensão da tecnopsiquiatria

A nova revisão da Classificação Internacional das Doenças, a CID 11, anunciada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2017[1], inclui um novo transtorno: gaming disorder (transtorno em jogos eletrônicos/games, em tradução livre). Não é consenso: o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em sua 5ª edição, do inglês Diagnostic Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-5), não incluiu aquele transtorno como uma categoria diagnóstica à parte. Para a Associação Americana de Psiquiatria (APA), não está claro que a condição proposta pela OMS seja muito diferente do vício em cafeína. Seria um ponto positivo para o DSM? Não se apresse.

O Internet Addiction Disorder (transtorno de vício em internet) não é um quadro psicopatológico oficialmente descrito, mas há razoável literatura com a descrição de suas características – falta de paciência, sintomas de isolamento, distúrbio emocional (depressão, ansiedade, mudança de humor, sentimento de solidão), interrupção das relações sociais – associadas a sintomas físicos (aumento ou redução de peso, problemas de visão, dor no pescoço, insônia, dor de cabeça e dor nas costas) (MASIH, & RAJKUMAR, 2019). Quem está sobrevivendo à pandemia gabaritou a lista, não é mesmo?

Será que o nosso mal-estar encontrou um diagnóstico para chamar de seu? Nunca foi tão fácil conseguir um diagnóstico, os manuais psicopatológicos (o queridinho segue sendo o DSM-5[2]) ampliaram o catálogo de ofertas e ainda permitem a montagem de combos com três ou quatro comorbidades. É a lógica do mercado: o indivíduo empreendedor de seu próprio laudo psiquiátrico.

A expansão dos jogos online e das mídias sociais, de fato, alteraram o jeito como os adolescentes (não só eles) se comunicam, socializam, iniciam e mantêm relacionamentos. Os adolescentes continuam feitos da mesma matéria dos seus antecessores: mega inseguros, preocupadíssimos com a crítica social, querendo experimentar novidades, afoitos por modismos e desconfortáveis com o próprio corpo. Que fase! Para alguns não passa – mas coloquem-nos em suas orações.

Chegamos, então, ao dilema filosófico do primogênito: quem veio antes, o ovo ou a galinha? A interação social face-a-face reduz o risco de depressão. O tipo de feedback (número de likes, comentários, compartilhamentos) que a pessoa recebe na rede social pode desencadear ansiedade e depressão. O jovem passa a maior parte do tempo livre nas telas e encorpa os números dos índices de ansiedade, automutilação, depressão e suicídio.

Em contrapartida, são os jovens desse caldo que dizem como o mundo deve ser, encabeçam as discussões sobre as mudanças climáticas, escolhem o currículo das escolas e faculdades, ocupam as redações, censuram as propagandas. Nada mais pós-moderno do que desconfiar dos mais velhos. Realmente, temos precedentes vergonhosos.

Com “a identidade do consumidor sobressaindo a de cidadão” (MOROZOV, 2018, p. 19), amadurecimento é detalhe – se fosse rentável, tinha virado startup. O conceito-tendência é trabalhar na própria reputação – nós mesmos como “uma obra em andamento” (MOROZOV, 2018, p. 34). Bom, parece que está dando errado há algum tempo…

O que tem a ver gaming disorder, Internet Addiction Disorder e DSM-5 com pós-modernidade, neoliberalismo e tecnologia? Tirando o último item que é óbvio, a resposta é: tudo e mais um pouco. A psiquiatria está a um milímetro de tomar formato tecnológico.

Etiologia, ou seja, conhecer as causas e as origens de um fenômeno, é algo muito complicado em saúde mental. Claro que uma doença pode ser descrita sem que se saiba sua etiologia, pois a descoberta de uma doença é uma questão empírica, ao passo que a descoberta da causa é uma questão de técnica. Bom exemplo é o caso da sífilis, descrida desde 600 a. C., enquanto o seu agente causador, o treponema pallidum, só foi conhecido em 1913. Mas a maioria é como a depressão: descrita desde 500 a. C., até hoje ninguém sabe exatamente todos os mecanismos nela envolvidos.

Em terreno de imprecisão, os equívocos florescerem melhor. Uma das inovações (tenha medo dessa palavra – “inovação”) do DSM foi a ideia de “transtornos” substituindo a ideia de “doenças”. Transtorno seria tudo que afeta o indivíduo, que impacta sua vida (emocional, pessoal, acadêmica ou laboral), um conceito francamente impreciso. Tudo bem que as causas de enfermidades mentais são difíceis de identificar, mas nos dias correntes nem se discutem mais as causas, e sim os efeitos. Os transtornos são, nessa perspectiva, os efeitos, tanto que o próprio sujeito relata seus sintomas e, em muitos casos, faz seu próprio diagnóstico (o que é, evidentemente, absurdo). Ah, esse indivíduo empreendedor de si mesmo…

Causas não são apenas difíceis de identificar, mas costumam ser caras de arrumar. Efeitos têm soluções mais baratas: medica-se o efeito, não se trata a causa (com exceção de síndromes mentais orgânicas, esse modelo primariamente farmacológico não se sustenta em psiquiatria séria – algumas condições sequer merecem abordagem farmacológica, como é o caso da dislexia[3]).

Vamos voltar aos jovens que passam muito tempo em tela e são diagnosticados com depressão e ansiedade. Tratados os efeitos (depressão e ansiedade), ninguém lhes indica – com justa firmeza – a redução do tempo em tela, fazer atividade física, comer adequadamente. Esse tipo de terapêutica não gera muito dinheiro – e raramente gera dependência. Já a doença, gera. A visão de doença é distorcida para caber em um modelo de negócios.

O cientista social, pesquisador e escritor bielorrusso Evgeny Morozov (que já apareceu aqui), em Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política (2018), descreve como os efeitos estão na mira das grandes empresas em detrimento das causas. Atuar nos efeitos gera (mesmo que aparentemente) resultados mais imediatos e ganhos mais avantajados. As causas são trabalhosas de solucionar. O autor dá como exemplo a obesidade, tornada “neoliberal e banal”. Podemos ter um aplicativo que avisa o sujeito sobre as calorias dos alimentos que come, que monitora seus passos, mede sua pressão arterial. Parece que tudo tem a ver com o indivíduo, mas a principal causa da obesidade é a pobreza – não vamos ser tão fatalistas e simplistas, certo, mas há um vínculo entre obesidade e pobreza.

Caso você seja pobre, obrigado a ter vários empregos e não disponha de um carro para comprar alimentos orgânicos em mercados especializados, fazer refeições de baixa qualidade em um McDonald’s seja uma decisão perfeitamente racional: você obtém a comida pela qual pode pagar. Qual é o sentido de dizer o que você já sabe: que está comendo comida barata e ruim? O problema a ser resolvido nesse caso é o da pobreza por meio de reformas econômicas–, e não o da carência de informações (MOZOROV, 2018, p. 40).

O aplicativo que dá informações gratuitas ao sujeito não faz caridade. “Criamos aplicativos para resolver problemas que os aplicativos conseguem resolver – em vez de enfrentar os problemas que de fato precisam ser resolvidos” (MOZOROV, 2018, p. 41). Atuamos nos efeitos, porque é o âmbito de ação dos algoritmos, e deixamos as causas de lado, afinal, elas não podem ser monetizadas.

Estamos dispostos a ter nossa saúde mental avaliada por algoritmos? Mas e se for em prol de maior precisão, de maior segurança, de maior velocidade? A retórica da plataforma seduz uma cultura fascinada pela inovação (falei, tenha medo dessa palavra). A sedução sempre distorce a nossa percepção das coisas e das pessoas: desame alguém para entender, ou melhor, desiluda-se. Como escreveu o filósofo romeno Emil Cioran, “neste mundo tudo decepciona, até a santidade” (CIORAN, 2011, p. 163).

Bom, que fique claro: uma descrição de tristeza é efeito, não indica causa e tampouco indica depressão (pode ser luto, assédio, abuso, violência…). Entretanto é assim que os diagnósticos têm sido feitos: como checklists, o que, certamente, facilita sua completa futura automação. Logo o psiquiatra será dispensável. O aplicativo será mais rápido, mais eficaz e mais seguro – tudo isso é, lembre-se, questão de fé – e “Bem-vindos à tecnopsiquiatria! Diagnóstico e tratamento chegam a todos pelos seus smartphones”.

A tecnologia não cria o mal-estar: encontra-o pronto. Ela não inova, ela o aperfeiçoa.

Referências bibliográficas

Cioran, E. M. (2011). Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco.

Masih, J. & Rajkumar, R. (2019). Internet Addiction Disorder and Mental Health in Adolescents. J Depress Anxiety S13: 002. Morozov, E. (2018). Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora.

[1] Entrou em vigor em 1º de janeiro de 2022.

[2] Apesar do Brasil ser signatário da OMS e, portanto, deve usar a CID.

[3] A dislexia é um dos transtornos específicos da aprendizagem, no caso, especificamente marcado por prejuízo na aquisição da leitura.

Imagem: Heraldo Galan

Sobre o autor

Carolina Rabello Padovani

Pós-doutora em Ciências pelo Instituto de Psicologia da USP. Doutora e Mestre em Ciências pelo Instituto de Psicologia da USP. Especialista em Neuropsicologia pelo CEPSIC do HCFMUSP. Psicóloga, bacharel e licenciada pelo Instituto de Psicologia da USP. Pesquisadora dos grupos de pesquisa "Comportamento Político" e "A Crise do Amadurecimento na Contemporaneidade" e também pós-doutoranda no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.