Uma vida feliz é desejo de todos e alcançá-la foi uma tarefa difundida pelas escolas helenísticas, é dizer, libertar o homem do domínio das paixões e proporcionar-lhe uma vida superior. Os estoicos denominavam esse modo de vida por ataraxia, ou seja, a tranquilidade com a ausência de desejos, enquanto Sêneca designava-o por tranquillitas animi, que é a tranquilidade da alma. Para a construção dessa felicidade, o desejo exerce um papel fundamental, sendo formulado por Platão como dimensão vital da estrutura humana.
Em sua obra As paixões da alma e as Vicissitudes do desejo em Santo Agostinho, Nilo César Batista da Silva[1] traz ao debate a diferença entre corpo, alma e espírito – cumprindo destacar que, para o platonismo, o desejo é uma sensação que ocorre nas afecções do corpo na sua relação com a alma; a investigação de Platão examinou a gênese de todas as formas de prazer. Um dos pontos importantes levantado no livro é a felicidade, e o fato de que, para buscá-la, o ser humano sempre se curvará ao desejo. Para Platão, a gênese do prazer se inscreve necessariamente num desejo e este exerce um papel essencial na construção da felicidade. Assim, o desejo é uma sensação que ocorre no corpo na sua relação com a alma. O desejo tem sua origem na alma. Vale ressaltar, ainda, que, para os gregos, havia um contraste entre os prazeres corpóreos e os da alma. Para Platão, o prazer era a sabedoria e o bem-viver pautado na materialidade. No hedonismo, o prazer é associado à utilidade, vinculando-se inseparavelmente o conceito de felicidade ao de utilidade.
Nilo levanta a questão sobre a natureza originária do prazer. O que produziria este sentimento? O autor faz referência ao diálogo em o Fibelo 35 d, em que Sócrates e Protágoras encontram uma causa única para o exercício do prazer. “Ambos estão de acordo que o desejo das coisas agradáveis, isto é, o agradável é o que põe em atividade o prazer, dado que o desejo do agradável é a causa do prazer e não o inverso”.[2] A proposta platônica do desejo mostra que é necessário convencer-se de que a beleza da alma é superior à beleza dos corpos, se configura na busca pelo belo e que os “verdadeiros amantes do bem deverão gerar discursos sobre a virtude e, ainda, evidenciar como se deve comportar um homem bom”.[3]
O papel do desejo em Aristóteles
É importante enfatizar a contribuição de Aristóteles no que poderíamos chamar de conduta e ações humanas em relação aos outros – a ética. A filosofia aristotélica afirma que a boa vida na pólis requer o desenvolvimento de habilidades racionais e emocionais, cabendo ao indivíduo decidir guiar-se por princípios que o orientem diante da grande demanda de emoções relacionadas com as instituições sociais e práticas humanas. Sua principal preocupação era treinar os jovens de tal forma em que seus hábitos, incluindo seus sentimentos e emoções habituais, contribuíssem para uma vida boa.
Nilo faz referência àquilo que se encontra no livro II da Ética a Nicômaco, em que o filósofo faz uma analogia entre paixão e afecção:
Quando digo afecção, falo do desejo, da ira, do medo, da audácia, da inveja, da alegria, da amizade, do ódio, da saudade, do ciúme, da compaixão e, em geral, de tudo aquilo que é acompanhado por prazer ou sofrimento. Dizemos que as capacidades são condições de possibilidade para sermos afetáveis por afecções. De acordo com elas, somos capazes de ficar irados, ou passar por sofrimentos ou sentirmos compaixão.[4]
As paixões da alma na doutrina Estoica
O professor Nilo também faz um passeio sobre as paixões da alma na doutrina estoica. No estoicismo, a natureza é o modelo a ser seguido para obter uma excelência da alma,
Zenão foi o primeiro, em sua obra chamada ‘Da Natureza do Homem’, a definir o fim supremo como viver de acordo com a natureza, ou seja, viver segundo a excelência, porque a excelência é o fim para o qual a natureza nos guia. (…) Crísipos afirma também que viver segundo a excelência coincide com viver de acordo com a experiência dos fatos da natureza, e que nossas naturezas individuais são partes da natureza universal. [5]
Nesse caso, podemos olhar para a natureza universal como modelo para a natureza humana e para a ética no âmbito da ordem cósmica, sendo que “o logos organiza todas as coisas de acordo com as leis racionais da natureza, nas quais todos os eventos são regidos pelas estritas regras de causa e efeito”.[6] No estoicismo não há lugar para sorte e acidente. Para os estoicos, há um movimento contrário à natureza, as paixões são vistas como impulso excessivo e desobediente aos ditames da razão.
O cerne da doutrina das paixões dos estoicos tem na sua base a concepção de que as paixões seriam impulsos excessivos opostos a natureza humana.
(…) Os estoicos afirmam que toda a paixão é demasiadamente intensa, uma vez que as pessoas em estados passionais frequentemente veem que não é adequado fazer o que fazem, mas são arrastadas pela intensidade do desejo, como se fosse arrebatado por um cavalo desobediente e induzidas a isso. [7]
As Vicissitudes da Alma em Santo Agostinho
Santo Agostinho também se preocupou em investigar as vicissitudes da alma. Em sua pesquisa, o professor Nilo destaca que, para o Bispo de Hipona, “todas as naturezas, pelo fato de existirem, contêm medida, forma e harmonia, isto é, ordem consigo mesmas e, portanto, são boas.”[8] No caso do amor, necessita-se de uma ordem: é importante ter amor a si próprio, devemos amar a beleza do corpo, mas deve haver medida na escala axiológica de todos os bens criados. “Quando se ama de forma desordenada com o amor desmedido ao bem ínfimo em detrimento ao bem supremo não podemos nos aproximar do centro da gravidade em que a alma tende ao ser”.[9] Dessa forma, o amor à beleza do corpo pode não ser bom quando esse amor se interpõe ao amor de Deus. Na antropologia agostiniana, não se entende o corpo e alma como uma unidade, como se fosse uma natureza, mas há uma integração harmônica, uma junção ontológica. Ainda que o hiponense tenha bebido da fonte platônica, para ele, a nossa natureza se constitui na união de corpo e alma, para que o homem seja inteiro e completo. Em parte, o platonismo compreendia o corpo como punição para a alma.
A pergunta que fica é: como controlar as paixões, ou os desejos desenfreados, que para Agostinho são caracterizados como doenças? As duas formas – corpo e alma – desejaram alimento, e qual seria ele? Para Agostinho, a sabedoria é o tônico essencial que cura.
As más paixões, ou a libido caracterizada por desejos desenfreados, os quais degeneram a alma na sua integridade, porque elas têm na sua natureza a busca de repleção e assolam no excesso, na desmedida e na desordem e nos arrastam para o nequitia, ou seja, para o nada, o esvaziamento existencial. [10]
Essas doenças ocasionariam vícios. Para os platônicos, as vicissitudes do desejo seriam o estorvo para a felicidade e expõem a vulnerabilidade da existência humana.
Nilo destaca que, para Agostinho, a libido é a mais violenta de todos os outros afetos e concorre com a razão – pois as duas passam a disputar e a perturbar o dinamismo da mente. Há uma referência, em De civitate Dei, na qual o Bispo de Hipona escreve que a libido “se apossa de todo o corpo, excita o homem todo, e disso deriva a volúpia, incomparável a qualquer prazer físico, que, ao atingir seu ápice apaga todo pensamento e consciência de si”.[11]
Logo, descobrimos que a natureza se encarrega de produzir o desejo na alma e que o corpo é apenas o correspondente aos apelos desta natureza. A libido em Santo Agostinho pode representar uma consequência punitiva do pecado original, mas isso não quer dizer que o ato sexual seja considerado algo pecaminoso.
Como o problema das paixões nos escritos agostinianos está correlacionado com o pecado original – que separou a criatura do seu criador e tornou o homem um ser errante e solitário – agora compete ao indivíduo, com o auxílio da graça divina, estabelecer a religação com a suprema verdade, visto que a vontade não é suficiente para poder e querer aproximar-se de Deus. Sua finitude e incapacidade, como consequência do pecado original, torna-o incapaz e só a graça precede nele o querer e o desejar retornarmos a Deus. Dentro da investigação, nos damos conta de que as paixões da alma não estão correlacionadas somente ao corpo. Agostinho ainda descreve o desejo de glória e o desejo de domínio, que são desejos ardentes relacionados a cupiditas,
Para Agostinho, existem diferenças entre cupiditas da glória e a cupiditas do domínio (potestas), pois, aquele que se deleita na glória humana, também é aficionado a dominar. E o que deseja a glória, tem esse como o melhor caminho, embora esteja enganado pelo fulgor dessa paixão. Alguns homens tomados pelo vício da paixão da glória são tão ávidos de domínio que em várias ocasiões superaram as bestas quer pela crueldade, quer pela luxúria, em nome da glória. [12]
O pecado original trouxe à alma humana o vício da jactância – o desejo da vanglória – e a criação, quando tomada por este vício, esquece de oferecer louvor ao Criador.
As “paixões do espírito” são identificadas por Santo Agostinho como as mais perigosas, porque são puramente intelectuais.
A razão exige que o espírito governe a alma, que governe ela própria o corpo, embora muitas vezes o espírito humano nem sempre se percebe quando a alma agita o corpo com a paixão, porque a alma arde em desejo e o corpo reage as vicissitudes da alma. [13]
Segundo essa investigação, percebemos que a natureza das paixões e sua relação com o espírito humano se encontram na mente humana. O que poderia ser um equilíbrio e uma moderação para o espírito? Ao tentar encontrar uma definição para a vida feliz, Agostinho ressalta que a sabedoria pode cumprir esse papel modus animi, “isto é, aquilo pela qual a alma se conserva em equilíbrio, de modo a não se dispersar em excessos ou encontrar-se abaixo de sua plenitude”.[14]
Não restam dúvidas que as investigações do professor Nilo na obra resenhada são importantíssimas para termos uma compreensão filosófica das nossas mazelas trazidas pelo pecado original. Em suas considerações finais, o autor afirma que “Agostinho poderá ser classificado na escala de um pensador em transição”,[15] fazendo uma junção da filosofia antiga com a sua visão de mundo cristianizado. Isso trouxe inovações que mudaram a história do pensamento no ocidente. Igualmente, supõe-se que as bases para uma doutrina das paixões em Agostinho se encontram no neoplatonismo e no estoicismo. Os grandes pensadores sempre têm algo a dizer.
Notas
[1] Nilo César Batista da Silva cursou mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e doutorado na Universidade do Porto, Portugal, onde defendeu sua tese sob o título: “De Passionibus animae em Santo Agostinho, um estudo sobre o desejo”.
[2] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 28
[3] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 29
[4] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 32.
[5] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 36.
[6] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, pp. 38-39
[7] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 40.
[8] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 62.
[9] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 62.
[10] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 65
[11] De Civitate Dei, XIV, 16, pg. 1287
[12] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 90.
[13] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 93.
[14] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 96.
[15] DA SILVA, Nilo Cezar Batista, As paixões da Alma e as Vicissitudes do Desejo em Santo Agostinho. Curitiba: Editora CRV, p. 139.
Imagem: A Visão se Santo Agostinho (Filippo Lippi, 1465)