No Brasil, é muito comum que os estudantes de filosofia encarem a lógica como mais uma disciplina a ser superada durante a árdua graduação. Depois de vencida, a matéria é esquecida, e com ela se esvai todo o rigor dos bons argumentos. O filósofo de formação passa a dedicar-se – quase exclusivamente – à história da filosofia, e, em alguns casos, comprometendo-se com a posição de um determinado autor a ponto de fazer de seus estudos uma espécie de apologética. Não são poucos os advogados de Platão, Agostinho, Descartes, Pascal, Hume, Kant, Hegel, Marx, Heidegger ou Foucault.
Não tenho dúvidas de que a história das ideias é de grande relevância, pois conhecê-la nos impede de pensar que inventamos a roda em pleno século XXI. Entretanto, ancorar a embarcação filosófica no porto da história impede o filósofo de navegar em alto mar, diminuindo, por certo, os riscos de naufrágio, apesar de obstá-lo de apreciar as novas paisagens. Assim, a embarcação filosófica que não encerra a sua atividade no porto da história da filosofia poderá encontrar novos conceitos, a despeito de correr os riscos inerentes à atitude do filosofar: os erros. Para mitigá-los ao máximo, o filósofo precisa de um bom barco, acompanhado de uma preciosa instrumentação que o permita navegar com certa segurança. Esse instrumental é a lógica. Mas, para conhecê-la, não basta boa vontade – o filósofo precisa ser persistente, não se curvar diante das dificuldades e ter um pouco de paciência. Não se trata de usar dessa disciplina filosófica como forma de garantir a plena segurança do trajeto argumentativo, somente minimizar os erros, desviar-se dos obstáculos e continuar navegando.
A lógica é uma ciência que estuda os princípios e métodos de inferência, com o objetivo de entender o quê se segue do quê. Inferir é uma atividade do pensamento, aquilo que chamamos de raciocínio, este que nos permite, por meio de algumas informações iniciais, alcançar uma informação nova, ou seja, poderemos saber o quê se segue do quê.[1] Vejamos um exemplo de inferência:
Argumento 1.
Premissa 1 – Sócrates é filósofo.
Conclusão – Logo, Sócrates é humano.
Da informação inicial, que se chama premissa, posso inferir uma informação nova, que é denominada conclusão. Em lógica, chamamos a estrutura acima de argumento. E o argumento pode ter um número maior de premissas (desde que seu número seja finito) e uma conclusão, como no exemplo abaixo:
Argumento 2.
Premissa 1 – Todo animal é mortal.
Premissa 2 – Todo homem é animal.
Conclusão – Todo homem é mortal.
Mas será que esse argumento é válido? Essa é uma pergunta específica da lógica, e por isso convém respondê-la o quanto antes. Para tanto, precisamos diferenciar verdade/falsidade e validade: a verdade/falsidade lógica refere-se às premissas e à conclusão, ao passo que a validade se refere ao argumento. Isso significa que a premissa 1 pode ser verdadeira ou falsa, a premissa 2 pode ser verdadeira ou falsa e a conclusão também: em lógica, isso é chamado de princípio da bivalência (os valores de verdade e falsidade podem ser atribuídos às sentenças). Já um argumento, conjunto que engloba as premissas e a conclusão, nunca é verdadeiro ou falso, mas válido ou inválido. Diante disso, podemos responder a pergunta formulada. A validade de um argumento depende da seguinte condição: se as premissas forem verdadeiras, então, a conclusão deve ser verdadeira. Se acontecer de as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa, então, o argumento é inválido. Vejamos alguns exemplos:
Argumento 3.
Premissa 1 – Se Messi é campeão, então Mbappé é vice-campeão. (Verdadeira)
Premissa 2 – Messi é campeão. (Verdadeira)
Conclusão – Mbappé é vice-campeão. (Verdadeira)
No argumento 3, temos um argumento válido: atribuímos o valor de verdade às premissas 1 e 2, segue-se que a conclusão é necessariamente verdadeira. A fim de testar todas as possibilidades lógicas de um argumento, os lógicos distribuem valores de verdade/falsidade a todas as sentenças (no caso acima, premissas e conclusão), e desta distribuição de valores analisam a validade do argumento.
Vejamos o que acontece no caso específico de atribuirmos o valor de falsidade à premissa 1: “Se Messi é campeão, então Mbappé é vice-campeão”. (falso) Nesse caso, a premissa falsa diz que “Messi é campeão”, mas “Mbappé não é vice-campeão”. Diante disso, o leitor pode inferir que a conclusão será necessariamente falsa.
Suponhamos agora que a premissa 2 seja falsa: “Messi é campeão”. (falso). Nesse caso, “Messi não é campeão” é verdadeiro. Ora, se Messi ser campeão for condição para que Mbappé seja vice-campeão (como mostra a premissa 1), então Mbappé não é vice-campeão. Se Mbappé não é vice-campeão, então a conclusão é falsa.
Com isso, peço que o leitor observe que, nas suposições feitas nos dois parágrafos anteriores, quando foi atribuído o valor de falsidade à uma das premissas, isso comprometeu a conclusão. Portanto, podemos saber que um argumento é logicamente válido se acontecer de atribuímos valores de verdade às premissas e, como consequência, tivermos de inferir necessariamente que a conclusão seja verdadeira. Esse é o caso do Argumento 3. Segue-se então que a forma desse argumento é logicamente válida, independentemente do conteúdo atribuído a ela. Denotemo-la em uma forma mais abstrata, universal:
Argumento 4.
Linguagem natural | Linguagem lógica | |
P1 | Se Messi é campeão, então Mbappé é vice-campeão. (Verdadeira) | M → B |
P2 | Messi é campeão. (Verdadeira) | M |
► | Mbappé é vice-campeão. (Verdadeira) | B |
Cada letra representa uma sentença atômica: “Messi é campeão” = M; “Mbappé é vice-campeão” = B. Mas quando juntamos as sentenças atômicas, temos então uma sentença molecular: “Se Messi é campeão, então Mbappé é vice-campeão” = M → B. Essa união de sentenças é feita por um operador verofuncional, no caso em questão, o símbolo “→” é um condicional, que representa, em linguagem natural, a estrutura “se…então”. Há outros operadores verofuncionais, como a conjunção, que tem como símbolo “∧” e significa, em linguagem natural, “e”. Diante disso, o argumento 3 pode ser expresso da seguinte forma:
Fórmula 1: modus ponens.
Linguagem Lógica | ((M → B) ∧ M) → B |
Linguagem Natural | Se Messi é campeão, então Mbappé é vice-campeão. Messi é campeão. Logo, Mbappé é vice-campeão. |
Essa forma lógica é chamada de modus ponens. É uma forma válida, pois “qualquer circunstância que torna as premissas verdadeiras faz com que a conclusão, automaticamente, seja verdadeira”.[2] Além dessa fórmula, o uso de outros operadores verofuncionais, como a disjunção (“∨” significa “ou”) e a negação (“¬” significa “não”, “não se aplica”, “não é o caso”), nos permite chegar a outras fórmulas válidas, como chamado silogismo disjuntivo, que pode ser expresso da seguinte forma:
Fórmula 2: silogismo disjuntivo.
Linguagem lógica | ((M ∨ B) ∧ ¬ M) → B | ou | Premissa 1 – M ∨ B Premissa 2 – ¬ M Conclusão – B |
Linguagem natural | Messi é campeão ou Mbappé é campeão. Messi não é campeão. Logo, Mbappé é campeão. |
O silogismo disjuntivo segue o seguinte raciocínio: na premissa 1, tenho duas situações que podem ser verdadeiras (i) “Messi é campeão” ou (ii) “Mbappé é campeão”; na premissa 2, nego que a primeira situação seja verdadeira (“Messi não é campeão”); então, a dedução bem-feita me leva a concluir que a segunda situação é verdadeira (“Mbappé é campeão”). É como se o leitor tivesse dois locais para procurar seus óculos: na gaveta do armário ou na mesa de jantar; ao constatar que o objeto não está na gaveta do armário, então só pode estar na mesa de jantar. Vamos manipular um pouco essa fórmula, nela inserindo os mais diversos conteúdos nos argumentos 4 e 5 a seguir. Usarei D para “Deus existe”, M para “o mal existe” e S para “o sofrimento existe”. Vejamos:
Argumento 5.
P1 | O mal existe ou Deus existe. | D ∨ M |
P2 | O mal não existe. | ¬ D |
► | Então Deus existe. | M |
Argumento 6.
P1 | O sofrimento não existe ou Deus não existe. | ¬ S ∨ ¬ D |
P2 | O sofrimento existe. | S |
► | Então Deus não existe. | ¬ D |
Os argumentos 5 e 6 seguem a mesma estrutura da forma válida silogismo disjuntivo. Apesar de ambos serem válidos, vemos que as conclusões são contraditórias, ou seja, inconsistentes quando comparadas: o argumento 5 (conclusão: “Deus existe”) é favorável ao teísmo; o argumento 6 (conclusão: “Deus não existe”) é favorável ao ateísmo. Veja que a validade dos argumentos está para a forma e não para os conteúdos. São essas realidades formais que fazem parte do escopo da lógica.
A lógica é um instrumento de grande relevância para a filosofia, mas o trabalho do filósofo não se atém às formas argumentativas. É preciso dar um passo a mais, passo este que chamarei de epistemológico. O filósofo também se interessa pelo real valor de verdade das premissas, se elas traduzem ou espelham o mundo. Quando um argumento possui premissas que são verdadeiras (e não somente logicamente verdadeiras), então podemos chegar a uma conclusão verdadeira. Mais precisamente, quando temos um argumento válido com premissas que são, de fato, verdadeiras, então temos um argumento sólido. Por esse motivo, a solidez de um argumento dependerá da lógica (validade), mas a validade não é suficiente: dependerá também das inúmeras ciências particulares, como a astronomia (no caso de premissas sobre o movimento dos planetas), da biologia (no caso dos seres vivos e suas classificações), da física (no caso da natureza da matéria), etc.[3] A formulação de um argumento sólido só é possível caso o filósofo dialogue com as mais variadas áreas do conhecimento, já que o poder explicativo das ciências parece tentar falar alguma verdade presente no mundo. Posto isso, se a verdade ainda é uma preocupação do filósofo, então é preciso ter um espírito de cooperação entre os campos do saber: precisamos uns dos outros para ampliar nosso saber, já que não somos oniscientes.
Por fim, verdade (das premissas), validade (dos argumentos) e solidez (dos argumentos) são fundamentais para um bom argumento em filosofia. Se consegui deixar claro a diferença desses três conceitos, então dou por cumprida a minha tarefa. Contudo, espero ainda que este artigo tenha inspirado o leitor a estudar filosofia sob os cuidados de uma lógica bem disciplinada.
[1] CF. Cezar A. MORTARI. Introdução à lógica, p. 14. Uso a 2ª edição dessa obra, revista e ampliada pelo autor.
[2] Cezar A. MORTARI. Introdução à lógica, p. 36.
[3] Ver o artigo de Desidério MURCHO. Para que serve a lógica?, no site Crítica na Rede. Disponível em: < https://criticanarede.com/logica.html>. Acesso em 21/12/2022.
Imagem: aplicação tipográfica sobre foto de John Venn (1834-1923), matemático inglês e professor de ciência moral, lógica e teoria das probabilidades na Universidade de Cambridge