Quando foi que desequilibramos tanto a ponto de chegar neste paradoxo: lidamos com excessos de atividades, informações, conexões virtuais e com os sentimentos de falta e insatisfação profundos. Nunca estivemos tão deprimidos.
Todos nós já tivemos algum contato com a depressão, seja vivenciando o transtorno, seja conhecendo e convivendo com alguém que o enfrenta. Ouvimos falar o tempo todo sobre depressão, mas me chamou atenção esse tema ocupar uma matéria inteira em um jornal de grande circulação no último mês: “Brasileiros estão mais deprimidos. Depressão atinge mais brasileiros do que diabete”. Pela primeira vez o sistema Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), levantamento anual do Ministério da Saúde sobre saúde nas capitais, apontou números da depressão por aqui. E os dados são alarmantes no país que por décadas foi reconhecido mundialmente pela alegria e calor humano: segundo a Pesquisa Vigitel 2021, 11,3% dos brasileiros relatam um diagnóstico médico de depressão, já a média estabelecida pela OMS (Organização Mundial de Saúde) para o nosso país é de 5,3%.
Segundo a Organização, entre 1990 e 2013, o número de pessoas diagnosticadas com depressão no mundo saltou de 416 milhões para 615 milhões. Isso tudo considerando que os casos são subnotificados, dado que a depressão ainda é cercada de tabus que atrasam o diagnóstico e o tratamento adequados. Apostando na difusão do conhecimento como plataforma de prevenção, no Brasil, as iniciativas Janeiro Branco (de conscientização sobre saúde mental) e do Setembro Amarelo (de prevenção ao suicídio) passaram a ser veiculadas em 2014 e 2015, respectivamente. Em 2017, a OMS promoveu uma campanha global, no Dia Mundial da Saúde, com o lema Let’s Talk, incentivando a conversa aberta sobre o tema, formas de prevenção e tratamento. Mas a depressão não é só um mal do nosso século: o termo data dos séculos XVII e XIX, associado a desânimo e melancolia; é no século XX, em 1952, que será detalhada em um manual de psiquiatria, e no nosso século XXI passa a ser considerada uma epidemia, segundo a OMS. A previsão de que, em 2030, ela seria a doença mais comum foi adiantada pela pandemia, cenário que aumentou os casos de depressão e ansiedade em 25%. E estamos vendo apenas a ponta do iceberg dos efeitos da COVID-19 na saúde mental das pessoas, segundo o Atlas da Saúde Mental 2020.
Sou tocado profundamente por esse tema. E não quero, com este artigo, dar dicas para prevenir ou tratar algo tão complexo quanto a depressão. Quero expressar minha tristeza em reconhecer a realidade com a qual lido diariamente no consultório estampada no jornal. Sim, nós brasileiros estamos mais deprimidos, mas o que podemos fazer a partir desse fato?
Como psicólogo clínico há mais de 30 anos, acompanho vários pacientes em busca de sentido em sua existência, e sempre verifico essa sensação de vazio existencial (sentimento de ausência de sentido na vida) em algum momento de suas histórias. É como se estivesse faltando um pedaço, faltando peças para montar o quebra-cabeça da vida. Em casos assim, vejo como necessário um tratamento com orientação ao sentido, pois é fundamental que se desperte algo que está inconsciente, reprimido em nós, para que possamos ganhar vida e buscar sentido enquanto estamos por aqui. Para isso, nós, profissionais de saúde mental, precisamos estar cada vez mais preparados e fortalecidos para oferecer um atendimento psicológico mais compreensivo e empático.
Perguntar sobre o sentido da vida é uma necessidade. Não devemos ter medo de responder “não sei” a essa questão. Vivemos em tempos sombrios no mundo todo, o que favorece o aumento do tédio, da neurose e da depressão. Estamos na rabeira da pandemia de COVID-19, ainda sentindo o luto desse período e enfrentando as incertezas que permanecem em relação ao futuro; vivemos em um mundo em que há guerras que afetam milhões de pessoas obrigadas a viver em condições terríveis ou a deixar sua terra natal; no Brasil, vemos nas ruas o retrato da fome (55,2% da população em situação de insegurança alimentar) e do desemprego (11,9 milhões de brasileiros afetados), na pele sentimos os efeitos do racismo impregnado em nossa cultura, e ainda estamos às vésperas da tensão de uma nova eleição presidencial pautada em polaridades, disputas políticas e discursivas que, muitas vezes, pouco representam as reais necessidades da população. Diante desse cenário, é compreensível a insatisfação, a falta de interesse, o vazio existencial. A carga que estamos carregando como indivíduos e coletivamente está muito pesada. Parece que estamos em um mundo que nos prometeu tanto e nos trapaceou.
Mas precisamos nos lembrar que o mundo que vivemos é feito por indivíduos. E por verem nesse sofrimento todo uma “oportunidade” de crescimento, muitas delas tentam vender um sentido para a vida das pessoas. Só que sentido não é produto de prateleira, é encontro singular, de cada ser humano. É fator de sobrevivência psíquica encontrar um sentido, pelo menos dentro de um determinado período da nossa história de vida. Claro que não conseguimos encontrar sentido o tempo todo. Mas, sobretudo em momentos sombrios de nossa vida (individual e coletiva), podemos clarear o caminho e encontrar algo valioso para percorrermos mais um tempo existencial.
Para buscar sentido, foque na força. É a força desafiadora do espírito (Lukas, 1989), nos termos logoterapêuticos, que precisa ser desenvolvida para que uma pessoa com a voz abafada possa novamente falar com firmeza; para quem está arrastando seu corpo no dia a dia possa se levantar da cama e dar passos em direção a sua vida; para que o aperto de mão que fraqueja que se torne firme; e aquele olhar que só enxerga o chão passe a olhar para o horizonte e ver além.
Não se trata de uma visão dogmática, mas de uma dimensão espiritual ligada à consciência – Viktor Frankl (2008) usa o termo noético (em que o nous, de origem grega, significa “mente”) –, superior às dimensões biológica, psicológica e social. O psiquiatra austríaco aponta essa dimensão espiritual como caminho para a liberdade interior, ou seja, a capacidade de escolher e agir independentemente das circunstâncias. É dessa força que ele fala em seu relato como sobrevivente de campos de concentração na Segunda Guerra Mundial:
Em princípio, portanto, toda pessoa, mesmo sob aquelas circunstâncias, pode decidir de alguma maneira no que ela acabará sendo, em sentido espiritual: um típico prisioneiro de campo de concentração, ou então uma pessoa, que também ali permanece sendo ser humano e conserva sua dignidade. (Frankl, 2008, p. 89)
Como psicólogo, ajudo as pessoas a enxergar e usar a sua própria força, que existe, mas às vezes se esconde. É ela que nos ajuda a mudar a atitude diante dos problemas que surgem de forma muito intensa nos dias atuais. O objetivo da Logoterapia é conseguir transformar o seu sofrimento em uma realização humana, aprender com os seus erros e entender que, muitas vezes, você pode não conseguir mudar os problemas, mas com certeza pode mudar a si mesmo.
Viktor Frankl, diante do desespero, ao verificar a proximidade da morte e o pensamento em alguns momentos sobre suicídio nos campos de concentração, fez uma promessa a si mesmo, com uma mão apertando à outra, de não “ir para o fio”, de não colocar a mão no arame farpado de alta tensão. Ele assumiu um compromisso consigo: viver. E é esse compromisso que precisamos assumir conosco diante da angústia da depressão. Viver implica realizar valores: criar coisas, vivenciar relações com outras pessoas, a arte e a natureza, ter atitude para dizer sim à vida. Busque ajuda para dividir o peso nas costas e preencher, aos poucos, os espaços no vazio do peito. É possível.
Esta pode ser uma saída, não desistir da vida e acreditar, em todos os momentos, por mais difícil que seja, que existe a possibilidade de realizar algo de valor entre o hoje e um futuro próximo.
Referências Bibliográficas
Frankl, Viktor E. Psicoterapia e Sentido da vida: fundamentos da Logoterapia e análise existencial. trad de Alípio Maia de Castro. 4 ed. São Paulo: Quadrante, 2003.
Frankl, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Trad. Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 25 ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
Frankl, Viktor E. Teoria e terapia das neuroses – Introdução à logoterapia e à análise existencial. trad. Claudia Abeling. 1 ed. São Paulo: É realizações, 2016.
Obs: outras referências utilizadas neste artigo foram indicadas em hiperlinks.
Imagem: detalhe de Man in Blue (Picasso, 1902)