O Vazio Existencial na Contemporaneidade

A experiência do despertar e o sentido na vida

Comumente vemos o sentido associado a uma finalidade, de modo que essa questão, independentemente do contexto, parece representar uma espécie de linha de chegada. Melhor dizendo, é como se, após a revelação do sentido de uma experiência, supostamente pudéssemos alcançar a homeostase (equilíbrio) para todo o sempre. Mas e se a gente olhasse o sentido não como um fim, e sim como um meio? Usaremos três vias para essa discussão: a teoria das duas metades da vida, a experiência do despertar e a busca de sentido.

No podcast Irmã Morte, o capelão Roberto Miguel fala sobre a teoria do autor Richard Rohr a respeito da espiritualidade das duas metades da vida. Ao longo do episódio (Ep. 10 – T1) ele explica que a primeira metade da vida é a fase em que estamos autocentrados, focados em nossas realizações e nosso sucesso, apegados ao mundo das formas. Essa fase tem sua relevância, pois é quando podemos estruturar autoestima, segurança e confiança. Contudo, ainda que tenha grande importância, a primeira fase não traduziria completamente a experiência existencial, segundo esse autor. Desse modo, na segunda metade da vida se revelaria a importância de romper com os apegos da fase anterior para viver de modo mais pleno e consciente, numa espiritualidade que independa do mundo das formas. Essa transição entre a primeira e a segunda metade da vida não tem um tempo certo de acontecer, não se define cronologicamente, pois se dá num processo de amadurecimento singular que nem todos se permitem atravessar. São momentos críticos da vida que convocam o indivíduo a lidar com o sofrimento, amadurecendo nele e sendo transformado, a fim de seguir para uma nova fase mais consciente.

Nesse processo, uma questão chave conduz a pessoa da primeira para a segunda metade da vida: a indagação sobre o sentido. “A busca de sentido é o que vai se constituir na tarefa da segunda metade da vida” (Roberto Miguel, 2021, 25’37). Essa reflexão apresenta o sentido como um meio, não como um fim. E, ainda que a descrição desse processo pareça atraente, a prática pode envolver a difícil decisão de atravessar tudo isso sem saber ao certo o que significa. Nesse cenário, é o desconhecido que convoca a busca por sentido e é essa mesma busca que conecta a vivência à consciência.

Contribuindo nessa compreensão sobre um chamado à consciência, o autor Irvin Yalom escreve que o ser humano experimenta um tipo de choque de realidade quando se depara com a morte e a dor que envolve tal enfrentamento. A esse momento o autor dá o nome de “experiência do despertar” (YALOM, 2021, p. 61). Em outras palavras, uma pessoa desperta para a vida quando entende que é mortal, seja essa consciência sobre a própria mortalidade ou a mortalidade de alguém que ama. “Poucas coisas nos confrontam com a mortalidade com tanta força quanto a morte de uma pessoa especial” (YALOM, 2021, p. 64). Surge assim a certeza de que o mundo jamais será o mesmo após tamanha constatação que, enquanto nos tira o chão, simultaneamente nos transforma. Negar esse despertar pode ser uma forma de negar o amadurecimento e mentir para si: “não aceitar o desvanecimento da existência, é viver em autoengano” (YALOM, 2021, p. 61). Fugir de algumas constatações não é, como se pode eventualmente pensar, uma solução funcional, porque fugir é também sofrer. Negar a experiência do despertar nos afastaria da possibilidade de estarmos integrados com tudo o que faz parte da nossa vida, seja agradável ou não. Com isso, acordar para a finitude é uma possibilidade de olhar a vida com outros olhos e com outra disposição.

Viver envolve trafegar pela primeira fase da vida até o dia em que o indivíduo se depara com algo que o atira ao núcleo da desordem e lhe apresenta à dúvida, ao sofrimento, à finitude que ali servirão como um despertar da consciência. É nesse confronto que surge a transição entre a primeira e a segunda metade da vida simbolizada pela questão: afinal, qual o sentido disso tudo?

Avançamos, assim, com Viktor Frankl, que aprimora essa perspectiva ao citar o imperativo categórico da Logoterapia: “Viva como se já estivesse vivendo pela segunda vez, e como se na primeira vez você tivesse agido tão errado como está prestes a agir agora” (FRANKL, 2019, p. 134). O trecho é quase um ultimato, serve como caminho para a compreensão de que a única vida que temos é justamente esta que estamos vivendo agora. Estar nessa realidade, e encará-la, pode ser a chance de viver valores que farão diferença ao nos despedirmos dessa mesma vida. Viver melhor, portanto, não significa viver alienado.

Cabe um adendo na construção dessa compreensão sobre a busca por sentido: o existencialismo frankliano não deve ser resumido a uma forma de ver só o “lado bom” das coisas. O que a visão existencialista de Frankl sugere é o enfrentamento da realidade, seja ela entendida como positiva ou negativa. Em outras palavras, o sentido muitas vezes está no próprio existir, no amor ou no sofrimento. A banalização que vincula a busca de sentido a uma fórmula de sucesso desloca sua função consciente e responsável, que é parte fundamental desse conceito. A análise existencial sugere que encontrar com o sentido na vida não é ganhar um prêmio, é fazer uma escolha, é agir, se responsabilizar. A pessoa é livre para escolher como lidar com o inevitável da vida, consciente e responsavelmente. Isso envolve afirmar a vida apesar da dor, da culpa e da morte, partes inerentes a ela.

Longe de fazer apologia à dor, mas também distante de associar o sentido a um serviço de delivery, é justamente no posicionamento ante o inevitável que o ser humano tem a chance de amadurecer a partir da consciência. Frankl define a consciência como um órgão do sentido, como “a capacidade intuitiva de descobrir o rastro do sentido – único e singular – escondido em cada situação” (FRANKL, 2015, p. 25). Há um valor intrínseco e essencial nos processos transformadores da vida – muitas vezes lapidados pelo sofrimento –, que através da busca por um sentido permite à pessoa se descobrir integralmente viva.

O resultado dessa articulação entre autores que acreditam numa espiritualidade de transformação, a partir da conscientização e do amadurecimento, mostra que a experiência do despertar está intimamente ligada à indagação sobre o sentido. Acolhendo isso como parte da transição entre a primeira e a segunda metade da vida é que a pessoa se transforma significativamente. Como numa espécie de experiência estética, o encontro com o sentido se dá numa revelação de significado que permite a apreensão de uma nova realidade. Enfrentar a transição entre as duas metades da vida requer colocar em prática o imperativo categórico Frankliano, que chama a atenção para a busca do sentido enquanto um recurso, descrito pelo autor como um “fenômeno tipicamente humano” (FRANKL, 2021, p. 115).

Indagar-se sobre o “para que” das situações, ao contrário de ser um demérito, pode ser a ponte que liga a busca de sentido a uma existência mais consciente. É nessa existência consciente e responsável que o ser humano estará pronto, não apenas para fazer indagações sobre a vida, mas também para responder às indagações que essa mesma vida lhe vier a apresentar.

Referências

FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido. Petrópolis: Vozes, 2019. São Leopoldo: Sinodal, 2019.

FRANKL, Viktor E. O Sofrimento de uma Vida Sem Sentido. São Paulo: É Realizações, 2015.

FRANKL, Viktor E. A Vontade de Sentido: fundamentos e aplicações da Logoterapia. São Paulo: Paulus, 2021.

Podcast “Irmã Morte: Histórias de um Capelão Hospitalar”, por Roberto Miguel, episódio “As duas metades da Vida”, 07/03/2021.

YALOM, Irvin D & Marilyn: Uma Questão de Vida e Morte. São Paulo: Planeta, 2021.

Imagem: Heritage Library

Sobre o autor

Kelma Mazziero

Graduada em Direito, com pós-graduação em Ciências da Religião e pós-graduação em Logoterapia e Análise Existencial pela Universidade Católica Argentina (UCA). Pesquisadora do grupo de pesquisa “O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.