O Vazio Existencial na Contemporaneidade

Fome de quê? De muito

Nos últimos anos, nos intervalos entre os atendimentos no consultório, caminho pelas ruas do bairro de Pinheiros, em São Paulo, e me deparo, com muita frequência, com pessoas em situação de rua. Cada vez mais famílias se espalham pelas ruas da cidade, um cenário de fome e desolação que há muito não testemunhava por aqui. 

Um número cada vez mais assustador de pessoas não têm o que comer. Apresentadas nos jornais como estatísticas, elas podem acabar ficando invisíveis aos nossos olhos, como se esse problema também não fosse nosso. Acontece que a fome é concreta e, para combatê-la, são necessárias ações igualmente concretas. 

Também escuto pessoas que estão em situação de sobrevivência, que minimamente conseguem pagar suas contas, mas não conseguem mais comprar comida para fazer as refeições necessárias para o seu dia, sempre falta alguma coisa. A fome aparece como um fantasma atormentando a vida de mais de 19 milhões de brasileiros, como revela o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil. A insegurança alimentar, segundo essa pesquisa, regressou aos números que o país enfrentava em 2004. Grave. E é importante lembrar que fome não é o que você e eu, que estamos diante de uma tela lendo este artigo, sentimos quando atrasamos uma refeição. As pessoas ficam dias sem se alimentar, ou ingerindo quantidades ínfimas, insuficientes para seu gasto energético diário. 

Fome foi o que sentiu Viktor Frankl na Segunda Guerra Mundial, quando foi enviado para os campos de concentração e sobreviveu aos maiores horrores promovidos pelo holocausto. Prisioneiros de guerra enfrentaram um estado de extrema subnutrição que representava uma regressão à vida psicológica no campo. Quando podiam se reunir, a primeira coisa sobre a qual falavam era comida, mentalmente sonhavam com receitas e pratos, pensando no dia em que seriam libertados. Era servida uma sopa bastante aguada, uma vez por dia. 

Fome era o que 30 milhões de brasileiros experimentavam no início dos anos 90. O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou uma grande campanha, a primeira que estabelecia um marco sobre a questão da fome no Brasil, e conseguiu despertar um movimento social importante e reconhecido internacionalmente.

Fome também foi o tema da música Comida, dos Titãs, em 1987, que já revelava a situação crítica que nosso país enfrentava: uma falta enorme de recursos, sobretudo para as pessoas mais vulneráveis social e economicamente. A canção ainda somava uma camada à fome física – a letra dizia “Você tem fome de quê?”, “você tem sede de quê?”, trazendo à tona que a vida plena inclui, primeiramente, suprir as necessidades básicas de nutrição e saneamento, para então podermos avançar na busca de uma vida com sentido, diversão e arte.

Passados 30 anos, nos deparamos com o problema da fome gritante no Brasil: mais de 125 milhões estão em insegurança alimentar, ou seja, com uma parte apenas da alimentação durante o dia. Há um descompasso: enquanto milhões de pessoas passam fome, houve um aumento na quantidade de famílias com mais de 1 bilhão de dólares – só no Brasil, este número passou de 42 para 62. Os famintos representam 15,5% da população brasileira, enquanto 0,000029% possui mais de 1 bilhão de dólares. Algo está errado nessa matemática, pois temos fome de tudo – pão, saneamento, infraestrutura, educação, saúde, segurança. Mais do que ler e pensar sobre isso, é tempo de agir.

Num cenário em que a “fome de Sentido” acaba se tornando um privilégio diante da fome física, é urgente uma tomada de consciência individual e social, olhar o problema de frente, “pegar o touro pelo chifre”, despertar este olhar além de você. Você já se perguntou se as pessoas próximas a sua vida de fato têm o que comer? Quais são suas necessidades?

No momento de desespero, é necessário dar conta daquela situação, resolver a fome. É impossível abstrair a fome por muito tempo, chega um ponto em que você é autoconsumido pelo próprio corpo que precisa se alimentar, como numa volta contra si mesmo.

A capacidade de empatia, de se preocupar verdadeiramente com o próximo me parece algo de importante, porque já produzimos alimentos suficientes para nutrir todas as pessoas. O problema não está na produção, mas na capacidade de repensar o modelo de se ocupar do coletivo.

É muito difícil se colocar no lugar de quem verdadeiramente passa fome e entender o desgaste interior causado pela falta de alimento. Não é fácil imaginar não ter alimento para você e para seus filhos, a pessoa amada ao seu lado sempre à espera de dias melhores. Ter acesso a um pedaço de pão e ter que fazer a “multiplicação” diária para que possa disfarçar a fome. Claro que com isso não quero isentar o Estado da responsabilidade de prover recursos básicos à população. É fundamental pressionar governos locais, eleger governantes que incluam projetos de combate à fome em seu plano, tudo isso. Aqui, o intuito é ressaltar qual pode ser o nosso papel como indivíduos inseridos num coletivo doente e faminto.

Precisamos cuidar para não colocar na conta do indivíduo a responsabilidade de agir em um problema complexo do âmbito coletivo. Não se trata de ser assistencialista, mas de criar uma consciência social. Porque essas pessoas em insegurança alimentar se tornam invisíveis na sociedade, muitas vezes passamos por elas e nem notamos o seu sofrimento. O que me preocupa é esta indiferença em relação ao outro, a mentalidade do “se eu tenho sobrando está tudo bem”, “cada um que cuide do seu” – isto é terrível. Sempre falo em minhas aulas sobre o problema do narcisismo, só achar bonito o que é espelho, “só olhar para o próprio umbigo”.

E não só a indiferença como também o preconceito em relação a essas pessoas invisibilizadas também é algo preocupante. Quando algo não nos interessa ou acreditamos que não nos diz respeito, elas passam a perder significado para nós, gerando um vazio de sentido, um vazio existencial, não apenas no estômago, mas também na dignidade humana.

Por outro lado, existem pessoas agindo em prol do combate à fome, se unindo a projetos como a ong Ação da Cidadania, fundada pelo Betinho em 1993, em uma mobilização nacional para ajudar 32 milhões de pessoas que estavam abaixo da linha da pobreza – um movimento social reconhecido no Brasil e no mundo como uma iniciativa pela ética na política, a ação da cidadania contra a fome, a miséria e pela vida. Ironicamente, quase 30 anos depois de sua fundação, estamos vivendo um cenário parecido.

Há a rede Gerando Falcões, fundada por Edu Lyra, um ecossistema de desenvolvimento social criado na favela, através da combinação de educação socioemocional, educação profissional, acesso ao trabalho e tecnologias com o objetivo de combater a pobreza nesses espaços. Esse ecossistema engloba 720 comunidades espalhadas por todo o Brasil com projetos como #CoronanoParedão, bolsa digital, favela 3D e fome não. Possui investidores sociais do mundo todo.

A ong Banco de Alimentos, criada pela economista Luciana Quintão em 1998, recolhe e distribui alimentos que não têm mais valor nas prateleiras dos mercados, mas ainda podem ser consumidos, evitando desperdícios e alimentando milhares de pessoas em São Paulo. Em junho deste ano, a ong distribuiu mais de 85 mil quilos de alimentos. A fundadora afirma em entrevista à Revista Cult: “Existem vários absurdos, várias fomes por aí. Existe fome de tudo. De educação, de moradia, de transporte, de justiça. E o alimento é uma metáfora para todas as outras fomes, é ele que sustenta o ser humano, é o primeiro combustível. Sem alimento não existe vida, pelo menos da forma que nós conhecemos.”

Parceiro do Banco de Alimentos, o Grupo Reserva, de vestuário, fomenta a campanha 1P5P (1 peça de roupa = 5 pratos de comida) desde 2016. “Reconhecemos inúmeras vezes que a transformação social começa com a alimentação. Não temos e nunca tivemos pretensão de resolver o problema da fome no Brasil, mas tentamos fazer a nossa parte na construção de um país mais justo”, afirma o COO e sócio Jayme Nigri.

Trago essas ações para nos inspirar a abraçar ou apoiar propostas afirmativas no combate à fome: doar, evitar desperdício, comprar de empresas que apoiam projetos como esses, compartilhar informações desses projetos são atos que estão em nossa alçada. E, claro, pressionar o poder público a assumir sua responsabilidade nesse quesito. Não estamos de mãos atadas, precisamos nos lembrar do que está ao alcance de nossas mãos e esforços.

Referências Bibliográficas

Frankl, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Trad. Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 25 ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil – Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e SAN (pesquisassan.net.br)

Fome atinge 33 milhões de pessoas no País, mesmo número do início da década de 90 – 08/06/2022 – UOL Economia

1P5P: 40 milhões de pratos. Blog Reserva. 16 set. 2020.

Você tem fome de quê? Endrigo Chiari Braz entrevista Luciana Quintão. Revista Cult.

Imagem: Jerzy Górecki/Pixabay

Sobre o autor

Francisco Carlos Gomes

Psicólogo Clínico e Logoterapeuta. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Fundador e diretor clínico do Núcleo de Logoterapia AgirTrês. Coordenador do grupo de pesquisa "O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ