O Vazio Existencial na Contemporaneidade

Quem deve combater o racismo? Todos nós

“Liberdade, liberdade!
Abre as asas sobre nós.
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz”
Samba enredo da Imperatriz Leopoldinense para o carnaval de 1989, centenário da Proclamação da República. (Gomes, 2022, p. 514)

Acabamos de completar o bicentenário da Independência e recentemente terminei a leitura dos três volumes de Escravidão, de Laurentino Gomes (2022). Aparentemente desconectados, esses dois momentos se entrelaçam no curso da minha história pessoal com uma nova história do Brasil. Ler essa trilogia me impactou profundamente, por me reconectar com a pergunta: independência de quem? Esse questionamento é muito recente para muitos de nós, que ainda reproduzimos a narrativa da independência do viés do monarca gritando às margens do rio Ipiranga. No entanto, e se tivéssemos a lente de uma pessoa negra vivendo essa história? 

Muito antes do grito, em 1444, ocorria o primeiro leilão de africanos escravizados em Portugal, diante do infante dom Henrique, na vila de Lagos, no Algarve. Estive naquela praça em 2014, em uma incursão ao sul de Portugal. Na ocasião, uma prima da minha esposa me perguntou se eu queria conhecer o lugar de onde havia saído o primeiro navio negreiro. 570 anos depois do ocorrido, estava eu conhecendo um local que havia mudado o curso da história de pessoas negras como eu. Não foi algo trivial visitar aquele lugar, senti um arrepio pelo corpo todo, uma sensação que não tinha experimentado até então. Fui lançado a uma espécie de déjà vu: um reconhecimento de que meus antepassados foram encaminhados ao Brasil em condições desumanas de transporte, acorrentados, sem trajes e alimento – enfim, já sabemos dessa catástrofe, mas testemunhá-la, no cruzamento dos tempos, faz diferença, traz mais para perto.

Essa sensação me fez entender um pouco mais o que vivenciamos nos dias atuais. Segundo Silvio Almeida (2019, p. 32)

Racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam.

Após a atrocidade do caso de George Floyd, que teve um amplo espaço na mídia, muito em razão dos ânimos já abalados pela pandemia – digo, pois sabemos que tantos casos como esse que acontecem há anos, muito perto de nós, e nem sempre reverberam como aquele –, vemos emergir a questão do racismo estrutural. Desde então, vemos muita discussão e comoção sobre essa forma de racismo, cujo sobrenome ainda não estava popularizado e, portanto, ficava velado. Lendo a obra do professor e advogado, é possível ampliar o entendimento sobre essa temática: o racismo no Brasil é estrutural, porque o comportamento e os processos institucionais são parte de uma sociedade cujo racismo é regra, e não exceção. Como exemplo, cito o caso dos dois jovens que foram ao cinema em um shopping em São Paulo, em fevereiro de 2022, e, ao passarem numa loja de departamentos, foram perseguidos por um funcionário como se fossem ladrões. Em casos como esse, o racismo estrutural é escancarado: identificando um garoto negro como bandido ou provavelmente perigoso em virtude da cor da pele. O curioso é que eles estudavam a algumas quadras dali. Por “sorte”, um dos garotos registrou as cenas na câmera de seu celular para exercer seu direito de defesa. Mas ainda quantos tantos casos como esse acontecem diariamente?  

Por isso, faço coro com Djamila Ribeiro (2019, p. 107), quando ela manifesta: sejamos todos antirracistas. Alguns grupos de pessoas possuem mais privilégios que outros há muito tempo. Por isso, hoje, com toda informação que temos disponível, é necessária uma aceleração do um processo de conscientização e mudança de comportamento. E atitudes antirracistas nem sempre serão cordiais; porque não precisam ser. Uma postura ética, que evite hostilidade contra grupos sociais mais vulneráveis, vai exigir de nós coragem, voz ativa e pulso firme. 

Foi o que ilustrou o caso que ocorreu em Portugal, em um restaurante, com dois atores globais. Uma mulher branca agrediu verbalmente, com xingamentos racistas, os filhos dos artistas e uma família de angolanos que estava no local. A mãe das crianças, também branca, enfrentou a agressora, e foi a primeira vez que os filhos a viram confrontando o racismo de frente, sem sofrer represálias, claro, por também ser branca. E é por esse motivo que pessoas privilegiadas precisam, e muito, assumir o compromisso com uma ética antirracista. 

O revisionismo histórico é fundamental nesse sentido, pois nos revela muita coisa para entender que lugar é esse a que chegamos. Por exemplo, questionando a postura de figuras históricas como Dom Pedro I, que foi visto por muito tempo como alguém que rompeu o período monárquico de forma pacífica – algo que outra versão da história desmente –, mostrando como a independência do Brasil foi um período violento, sobretudo com grupos marginalizados na sociedade.

O papel na luta pela independência não foi apenas dos escravizados, pois já havia pessoas livres, libertos. Os negros não aguardaram pacificamente a liberdade, e sim lutaram com a coragem, resistência e resiliência que perdura até os dias atuais.

PS: Nas referências do texto A pele mais escura, trago algumas fontes para se inspirar e educar na pauta antirracista. Tem alguma fonte para recomendar? Escreva para franciscocarlosgomesagir3@gmail.com.

Referências Bibliográficas

Almeida, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Ed. Pólen, 2019.

Frankl, Viktor E. Em busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração. Traduzido por Walter O, Schlupp e Carlos C. Aveline. 25 ed. São Paulo: Vozes, 2008.

Gomes, Laurentino. Escravidão: da independência do Brasil à Lei Áurea. Vols. I-III. 1 ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2022. 

Ribeiro, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Imagem: Terence Monahan, chefe do departamento de polícia da cidade de Nova York, abraça ativista durante protesto pela morte de George Floyd — (Craig Ruttle/AP)

Sobre o autor

Francisco Carlos Gomes

Psicólogo Clínico e Logoterapeuta. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Fundador e diretor clínico do Núcleo de Logoterapia AgirTrês. Coordenador do grupo de pesquisa "O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ