Judaísmo Contemporâneo: Filosofia e Literatura Judaicas

O não judeu judeu, o judeu espírita, o judeu ateu, o judeu que ele quer ser

Estudando judaísmo contemporâneo há muitos anos, vejo a absoluta necessidade de se estudar a judeidade e o judaísmo no século XXI sem qualquer tipo de preconceito, estereótipo ou barreira. E a partir daqui começo uma reflexão pessoal, há muito discutida com alguns pares, e creio que precisa ser mais aberta a todos. Do que estamos falando quando falamos de judaísmo, especificamente no Brasil, no século XXI?

Mais precisamente, estamos falando de um judaísmo absolutamente plural não só em questões básicas intrínsecas ao judaísmo (se come kasher ou não, se é ortodoxo ou não, se vai na sinagoga x ou y, ou se faz o jantar da Páscoa judaica ou não). Temos que ir além dessas discussões e entendermos uma pluralidade no sentido do que significa “ser judeu”. Não há uma definição basilar, tema que já explorei na minha tese de doutorado, e, ao mesmo tempo, precisamos ir além de uma definição como “filho de mãe judia”. Esses limitadores já ficaram ultrapassados e as discussões a respeito de identidades precisam ser ainda mais abrangentes para judeus que, além do seu próprio judaísmo, são também espíritas, umbandistas, candomblecistas ou ateus, dentre outras. Dizer algo como “isso pode ou isto não pode” não é mais possível. Nem dizer “mas está na Torá” é somente válido. A Torá, inclusive, é para ser refletida e interpretada.

Converso com tal público há muitos anos, para pesquisas diversas, e posso dizer que a grande maioria se sente deslegitimada no seu próprio judaísmo por membros da família, membros da comunidade ou outras pessoas para as quais conta seus interesses e caminhos espirituais (judeus). E aí sempre ouso dizer – “quem somos nós para pedir carteirinha de pertencimento à religião x ou z?” Quem somos nós para dizer que tal pessoa é judia e a outra não é? Baseados em quê? Claro, estou falando do ponto de vista de uma pesquisadora, acadêmica e não sou rabina.

Em uma palestra via zoom, realizada no início deste ano, falei que estava fazendo novas pesquisas a respeito de judeus no Brasil, sobre determinado tema. Fui perguntada por uma pessoa da plateia “qual” judeu eu iria entrevistar, ou melhor, se haveria um recorte, pois, na opinião da pessoa que questionava, “só eram judeus as pessoas que frequentavam sinagogas”. Eu respondi que se a pessoa me dizia que era judia, quem sou eu para pedir um certificado de judaísmo ou de judeidade. Não convenci. E este é o ponto. Será que temos fundamento para decidir se aquele é ou não o que queiramos que seja? Não, não temos.

Conto outro episódio. Saindo de um lançamento de um livro em um espaço paulistano, uma pessoa vem conversar comigo dizendo que é judia e budista tibetana. Noto um tom quieto, mais sigiloso e absolutamente comum aos que vêm conversar comigo sobre esse assunto. “Não é de bom tom” ou “não é seguro” conversar sobre tais questões em determinados ambientes fechados. Há uma deslegitimação da fala e da identidade comuns a quem se diz ser judeu e também outra “coisa”. Não creio ser este o caminho. Creio que mais pesquisas devam ser feitas para analisarmos o que falo desde o início deste curto artigo. Sem juízos de valor e nem ideias pré-concebidas que não fazem mais sentido e só levam a mais preconceitos.

Além da pluralidade relativa a diversos caminhos espirituais, o judaísmo é muito mais do que identificação a partir de conceitos e de dogmas estabelecidos e fechados. Por isso, trago outra questão à reflexão.

No excelente livro de Michel Gherman, “O não judeu judeu”, recém-lançado pela editora Fósforo, o autor traz a fala de Isaac Deutscher, importante intelectual do século XX. E aqui, o trecho destacado na obra:

Se não é raça, que é então que faz um judeu? Religião? Eu sou ateu. Nacionalismo judaico? Sou internacionalista. Desta forma, em nenhum dos dois sentidos sou judeu. Sou judeu, entretanto pela força de minha incondicional solidariedade aos perseguidos e exterminados. Sou judeu porque sinto a tragédia judaica como a minha própria tragédia: porque sinto o pulsar da história judaica; porque daria tudo que pudesse para assegurar aos judeus autorrespeito e segurança reais e não fictícios.

Podemos traçar um paralelo com o que falo desde o começo? Podemos sim. Precisamos assegurar aos judeus – a todos os que se consideram, a todos os que se dizem judeus – autorrespeito e segurança reais e não fictícios somente no discurso. Não tentar limitar as conversas, limitar os estudos ou ignorar a existência. Pois sabemos que quando ignoramos a existência, ou, algo mais grave, quando achamos que o outro não tem o direito de ser o que é, o pior está por vir. E este pior, infelizmente, sabemos onde vai parar.

Observação final: ser judeu é viver em meio a polaridades, de acordo com meu filósofo e mestre, Abraham Joshua Heschel. E ele vai sempre além, dizendo que nenhuma religião é uma ilha. Aprendamos.

Referências Bibliográficas

GHERMAN, Michel. O não judeu judeu – a tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo. São Paulo: Fósforo, 2022.

HESCHEL, Abraham Joshua. Deus em busca do homem. São Paulo: Paulinas, 1975.

__________________. O último dos profetas. São Paulo: Shalom, 2021.

Imagem: Tenzin Gyatso, o Dalai Lama, e Zalman M. Schachter-Shalomi em 1997 — (Dona Laurita/Rabbi Zalman Schachter-Shalomi Collection)

Sobre o autor

Andréa Kogan

Formada em Letras, doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP, autora do livro “Espiritismo Judaico”, assistente acadêmica do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ, onde também é coordenadora do grupo de pesquisa sobre Morte e Pós-Morte e pesquisadora do grupo de Judaísmo Contemporâneo.