Judaísmo Contemporâneo: Filosofia e Literatura Judaicas

Visita ao arquivo do Gueto de Varsóvia pelo olhar de Georges Didi-Huberman

DIDI-HUBERMAN, Georges – Esparsas: viagem aos papéis do Gueto de Varsóvia. (trad. Flávio Magalhães Taam). São Paulo: n-1 edições, 2023, 135p.

Visit to the Warsaw Ghetto archive through the eyes of Georges Didi-Huberman

A Alemanha nazista invadiu a Polônia em 1939, dando início à Segunda Guerra Mundial. Pouco mais de um ano depois, em 16 de outubro de 1940, foi criado o Gueto de Varsóvia. Um mês mais tarde, em 16 de novembro do mesmo ano, os nazistas providenciaram a construção de um muro ao seu redor, segregando completamente os judeus. A população do gueto logo atingiu 380 mil pessoas, cerca de 30% da população da cidade, mas apenas 2,4% de seu território.

Nos meses seguintes, judeus poloneses de cidades e vilas menores foram trazidos para o Gueto de Varsóvia, agravando o problema da superpovoação. Acrescentando-se doenças – como o tifo – e a fome, a mortandade atingiu altos níveis.

Em 22 de julho de 1942, no entanto, começou a transferência em massa dos habitantes do Gueto de Varsóvia para campos de trânsito e de concentração. Em menos de dois meses, cerca de 300 mil pessoas foram levadas para o campo de trânsito de Treblinka e reassentadas em Minsk ou transferidas para Majdanek ou Auschwitz.

Certos da iminência da morte, muitos jovens judeus optaram por combater os alemães, preferindo a morte com dignidade. Os remanescentes de várias organizações uniram-se na ZOB (Zydowska Organizacia Bojowa, Organização Judaica Combatente), liderada por Mordechai Anielewicz, com 220 a 500 pessoas. Outras 250 a 450 organizaram-se no ZZW (Zydowski Zwiazek Walki, União Militar Judaica). Tinha início, em 19 de abril de 1943, o glorioso episódio do Levante de Gueto de Varsóvia, os combatentes armados, sobretudo, com pistolas, bombas caseiras e coquetéis Molotov. Esse evento é celebrado anualmente no dia 22 de abril.

A duração do Levante foi, certamente, curta, menos de um mês (até 16/05/1943), e resultou na morte de todos os combatentes, mas exigiu dos alemães um grande esforço para sufocá-lo.

Apesar das condições altamente inóspitas, a população do gueto foi capaz de exercer intensa vida social e cultural, mantendo escolas – que abrangiam ensino básico, secundário e até de nível universitário – além de cozinhas comunitárias, hospitais e orfanatos, um dos quais liderado pelo pediatra e autor Janusz Korczak, que desenvolveu dinâmicas arrojadas, seguindo o modelo da uma democracia, com alto engajamento das crianças.

A vida cultural incluía imprensa diária em três idiomas (iídiche, polonês e hebraico), atividade religiosa (com até mesmo uma igreja para judeus que se tinham convertido ao catolicismo), cursos, concertos de música clássica, teatro, exposições de arte.

Entre essas atividades, merece especial destaque o esforço de preservação da memória do gueto, liderado pelo historiador Emmanuel Ringelblum, que criou um grupo, Oyneg Shabbos (em hebraico Oneg Shabat, em português Alegria do Shabat). Este grupo coletou documentos de pessoas de todas as idades e situações socioeconômicas e culturais. Estima-se que foram recolhidos cerca de 50 mil documentos históricos, incluindo ensaios sobre vários aspectos da vida no gueto, diários, memórias, coleções de arte, jornais ilegais, desenhos, trabalhos escolares, posters, bilhetes de teatro, receitas culinárias, notas de aulas e outros. Estes documentos foram escondidos em três lugares separados, dois dos quais foram recuperados, oferecendo-nos um amplo esclarecimento sobre a vida no gueto. Atualmente, estão depositados no Instituto Histórico Judaico de Varsóvia e podem ser consultados pelos interessados.

O Arquivo Ringelblum, que contém os documentos reunidos pelo Oyneg Shabbos foi extensivamente visitado pelo filósofo judeu-francês Georges Didi-Huberman – pensador que já nos tinha presenteado com obras sensíveis como Images malgré tout (2004) -, entre 1 e 3 de outubro de 2018, numa “viagem” que deu origem a um livro, Eparses: voyage dans les papiers du Ghetto de Varsovie, publicado pela editora Minuit em 2020; no Brasil veio a público em 2023 pela n-1 edições, com o título Esparsas: viagem aos papéis do Gueto de Varsóvia, em tradução de Flávio Magalhães Taam.

Em Esparsas Didi-Huberman nos leva muito além do simples registro factual, do que aconteceu no Gueto de Varsóvia nos anos trágicos da ocupação nazista. Através de suas reflexões, podemos entender a vida humana sujeita ao extremo, a experiência de sobreviver em condições insuportáveis de opressão, a luta diária por resistir mais um dia, a espera da morte certa, da qual só não se sabe a data exata.

Para Didi-Huberman, importa reconhecer a importância de preservar a singularidade de cada uma das vítimas, de evitar que se transformem em meros números, em estatísticas (p.64): “Hoje, ao mergulharmos no corpus esparso dessas inúmeras situações singulares, apenas nos aproximamos, por uma leitura interposta, do conteúdo concreto e existencial de cada história vivida.” Essa ênfase em preservar as histórias individuais dá origem a comentários como:

“Tragédia das crianças judias”, escreve Ringelblum no Diário em 29 de março de 1940: epidemias, fome; “não são permitidas escolas judaicas”, “numerosos casos de crianças abandonadas” que “vagueiam pelas ruas, andando em círculos, desamparadas”. Aqui (em setembro de 1941), “um menininho mendicante canta com uma voz encantadora: Eu não quero trocar meus tíquetes, eu só quero viver para ser feliz”. (p.70)

Em uma importante reflexão sobre a perturbação radical provocada pelas condições impostas pela opressão, o autor observa, por exemplo, como no trecho a seguir, que a iminência da morte dá lugar ao negacionismo:

A morte em massa na história – desde a peste de Atenas descrita por Lucrécio até os genocídios modernos – é, de fato, esse “flagelo da imaginação” que gera todos os processos psíquicos de desconhecimento deliberado (ou de “desconhecimento voluntário”, como em “servidão voluntária”) quando a história é tão cruel que as pessoas enlouquecem. Circulam assim todo tipo de rumores, de notícias falsas, de construções paranoicas, sofismas extravagantes, anúncios milagrosos. É como se a imaginação se encontrasse ou completamente bloqueada pela enormidade do real ou loucamente desligada dele – e de si mesma -, como para negar sua implacável lógica.
Contra esses pânicos impotentes – e contra a política dita “realista” que tentava o Judenrat de Varsóvia ao negociar com os nazistas e que teve por consequência os compromissos fatais, os chamados esquemas hábeis, procrastinações criminosas, cumplicidades objetivas e a participação na mentira generalizada -, a posição de Ringenblum e de seus companheiros, e que era também a dos ativistas do Bund, foi a de uma obstinada política da verdade. “Todos concordamos que devemos a todo custo alertar o mundo para a ação de extermínio que foi organizada contra nós, E não nos demorarmos nas objeções referentes às consequências que podem agravar nossa situação, pois não temos nada a perder”, escrevia Ringelblum em seu Diário na data de 10 de junho de 1942.
(p.59)

Nessas condições, a denúncia das ações de extermínio adquire claro chamamento ético, como neste outro registro de Ringelblum em seu Diário:

“Não importa […] se a revelação do inacreditável massacre dos judeus terá o efeito desejado – se a continuação da liquidação metódica das comunidades judaicas será interrompida. {Mas] de uma coisa nós temos certeza – nós cumprimos com nosso dever. […] Nossa própria morte não será em vão”. (p. 60)

Esse aspecto ético pode ser verificado, notadamente, na questão do rosto, na preservação das características essencialmente humanas de cada pessoa:

Rostos? Quer dizer – longe de tudo o que a polícia procura, nomeadamente as faces – possibilidades éticas oferecidas por um olhar trocado, uma voz que fala, um gesto acolhedor, uma palavra de verdade ou de reconhecimento. Um rosto é tudo isto: é alguém que o olha e lhe fala, que lhe confia suas lágrimas e seus risos – suas emoções, sem dúvida, mas também seu espírito. Que espírito? O espírito dos grandes espíritos? Sem dúvida havia, no Gueto de Varsóvia, professores e sábios, rabinos e poetas, artistas ou historiadores: até o fim eles tentaram incitar seus companheiros a não perder a cabeça. (p.96)

Didi-Huberman observa que os papéis do gueto, armazenados em arquivo – local por excelência de preservação da memória -, adquirem um status de “literatura menor” que, no entanto, já nasce moribunda:

Trata-se então de um arquivo de vozes aterradas, de fatos apavorantes, documentos enterrados. É um arquivo de coisas modestas e terrivelmente com os pés no chão: papeizinhos, alternadamente medíocres e avassaladores. É a literatura menor de uma minoria moribunda, ou seja, um acontecimento maior da história. Vemo-lo tecido a partir dos mais simples gestos da sobrevivência cotidiana, gestos de grandeza na miséria, gestos não épicos. (p.63)

O formato do livro também merece destaque, um formato bastante artesanal. Para honrar a memória das vítimas, as páginas são escavadas com um retângulo, e no “túmulo” assim criado vem uma pedrinha, remetendo ao costume judaico de depositar pedrinhas sobre os túmulos dos entes queridos.

Um livro que prende o leitor da primeira até a última página, para ser lido em um só folego. Em síntese, acredito que essa é a grande mensagem de Georges Didi-Huberman: a leitura de Esparsas é vital para lembrarmos que as vítimas da catástrofe nazista eram seres humanos, para evitarmos reduzir a Shoah a meras estatísticas, do tipo tantos mortos em tal campo, tantos em tal outro; tantos mortos oriundos de tal país, tantos oriundos deste outro. Que mesmo nas terríveis condições de um gueto há quem consiga dar importância existencial a um comportamento ético em relação a seus companheiros.

Imagem: caixas e potes usados ​​para esconder os arquivos do ‘Oneg Shabbat’ (Arquivo Yad Vashem 1605/17)

Sobre o autor

Saul Kirschbaum

Doutor em Letras pelo Programa de pós-graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas da FFLCH/USP e pós-doutor pela UNICAMP. Pesquisador do Grupo de Judaísmo Contemporâneo e do Grupo Diálogos da Diáspora – Racismo e Antssemitismo, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo /PUC-SP – LABÔ.