Judaísmo Contemporâneo: Filosofia e Literatura Judaicas

“ANTISSEMITA? EU? Tenho ATÉ amigos que são judeus”

Um disclaimer necessário: não falarei sobre Israel e sobre Netanyahu. Estes temas não estão em questão e a frase acima mostra a única vez que estas palavras são citadas.

Há alguns anos, em uma conversa com um amigo, ele me disse o seguinte: “Sabe a pessoa x, nossa amiga em comum? É o tipo de pessoa que teria mandado você para as câmaras de gás se estivéssemos em 1939. Nem pensaria muito a respeito. Não podemos confiar”. Na época, não sei se fiquei muito chocada, mas refleti e cheguei à conclusão: é possível sim. Estávamos constatando uma verdade.

Prof. Luiz Felipe Pondé deu uma aula em 7 de novembro de 2024, no LABÔ, sobre a condição humana vista sobre o aspecto ontológico (no pensamento do filósofo John Kekes) e discutimos que estamos aqui somente por tantas e tantas contingências que nos acometem. E, em um determinado momento, ele nos diz que: “se tivesse acontecido alguma coisa com seu avô, você não estaria aqui”. A amiga que estava sentada ao meu lado falou: “eu nunca pensei nisso”. Eu, imediatamente, respondi: “sou judia, e sempre pensei nisso”. O “sempre” é porque realmente foi um golpe de sorte, da “fortuna”, eu estar aqui hoje. Só uma porcentagem mínima sobreviveu. Meu avô fugiu no momento certo, parte da família dele foi dizimada. A mesma coisa com meus outros três avós. Meus pais já nasceram aqui, por pura sorte.

E, assim, concluímos que os nazistas não venceram e eu nasci, assim como muitos judeus que assistem aos novos ataques antissemitas, um novo pogrom a cada ano, uma pessoa absolutamente (e supostamente) sã dizer que os judeus realmente dominam o mundo e são todos ricos. Ou outros que dizem que Hitler não acabou o trabalho. Ou que judeus não merecem viver. Ou que antissionismo não é antissemitismo. Ou que não tem “nada contra judeus, pois tem amigos que são!”. Ou “o que os judeus fizeram? Pois não é possível serem tão atacados o tempo todo. Fizeram alguma coisa”.

Se a desumanização precisava de mais exemplos empíricos, hoje temos centenas. Tenho aulas e aulas montadas para tal fim, pois, meus estudos sobre judaísmo contemporâneo (e religiões contemporâneas) estão indo muito bem, obrigada. Não falta material, não falta discussão, não falta gente querendo me ensinar o que é antissemitismo também.

Em um texto do João Pereira Coutinho na Folha de São Paulo, de 7 de outubro de 2024, ele nos diz: “Nesse admirável mundo novo, o judeu deixou de ocupar o lugar de vítima, mesmo tendo o Holocausto no currículo. Aliás, o Holocausto passou a ser questionado, ou enfraquecido, porque na grande competição vitimária não era possível que os judeus levassem a copa.” Bingo. Brendan O´Neill, que me foi apresentado neste mesmo texto, diz que mesmo os grupos terroristas filmando e divulgando as atrocidades, ninguém acredita neles.

Desnecessário dizer que em todas as pesquisas realizadas em diversos países, observamos aumentos mais do que significativos nos casos de antissemitismo.

Mas, nas Olimpíadas de sofrimento, os judeus não levam mais a medalha de ouro, pois, como diz Coutinho: “No fim das contas, os judeus são brancos, colonialistas, capitalistas. Não podem ser vítimas se o ‘racismo do bem’ os apresenta como opressores.” Creio que não voltaremos a ter lugar neste pódio.

Hoje, reflito: quem será que me mandaria para as câmaras de gás sem pestanejar? Muitos. E pestanejando? Talvez alguns outros “obrigados”.

Vocês podem estar pensando: “mas que coisa pessimista”. Será que podemos observar alguma luz no fim do túnel? Será que voltaremos a 1933? Não. Com cautela. O mundo é outro, apesar de tudo. Eu mantenho a esperança, porque, como diz meu mestre Abraham Joshua Heschel, o mal nunca é o ápice da História. Como judia, a esperança é um mandamento. Então penso: quem me esconderia? Muitos também. Eu estou aqui. Continuaremos aqui, ninguém vai a lugar nenhum.

Alguns podem dizer: lá vem os judeus reclamarem de novo. “Ninguém aguenta mais isso, judeus reclamando que são vítimas”. Outros podem pensar: “MAS ISRAEL…” (oops, repeti a palavra pela segunda vez no texto. Perdão). Peço que leiam o texto de novo.

Imagem: Interior de um vagão de trem do Holocausto usado pela Alemanha nazista, localizado dentro do United States Holocaust Memorial Museum em Washington, D.C. (zenobia_joy/Wikimedia Commons)

Sobre o autor

Andréa Kogan

Formada em Letras, doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP, autora do livro “Espiritismo Judaico”, assistente acadêmica do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ, onde também é coordenadora do grupo de pesquisa sobre Morte e Pós-Morte e pesquisadora do grupo de Judaísmo Contemporâneo.