
Se você pudesse livrar-se de si mesmo
Apenas uma vez
O segredo dos segredos se abriria para você
Rumi
No conto “A Última Pergunta”, publicado pela primeira vez em 1956, Isaac Asimov nos leva a um cenário em que a consciência humana havia atingido um estágio tão avançado, que era possível uma pessoa facilmente deixar o corpo e vagar por quantas galáxias quisesse. Apenas de quando em vez, em momentos cada vez mais raros, os corpos materiais precisavam se erguer para realizar alguma atividade material.
Um cenário utópico, no qual o ser humano pode finalmente se desprender da sua materialidade e alçar voos maiores, ultrapassando as bordas daquilo que julga conhecer para ampliar o entendimento limitado da realidade que o circunda. Curiosamente, em quase todas as tradições místicas, o principal intuito do ser é elevar a consciência, transcender corpo e matéria ao se atingir a união com o todo, considerando, aqui e ainda, uma linguagem bastante generalizada acerca dos desdobramentos do que, rigorosamente, é entendido e pesquisado por e sobre a experiência mística.
Velhos Caminhos
No coração do vasto panorama do islamismo, incrustado como uma pedra preciosa, encontra-se uma corrente mística que transcende rituais e dogmas e que é imbuída de poesia, música e de uma profunda espiritualidade. Mais do que um simples conjunto de práticas, o sufismo (tasawwuf) é uma filosofia de vida que visa purificar a alma e torná-la uma com Deus (tawhid). Nesta jornada de unificação, os sufis cultivam um caminho interior que vai além das palavras e intenta a total aniquilação do eu (fana).
Bebendo da influência de doutrinas como hinduísmo, budismo, zoroastrismo e de correntes místicas do cristianismo, é digna de destaque a proximidade que a noção de realidade propagada pelos mestres sufi (sheikh) tem com aquela desenvolvida por Plotino: a de que existem várias camadas de realidade e, por trás delas, existe o inefável, aquilo que não pode ser alcançado e compreendido somente com a razão.
No contexto do sufismo, essa visão pode ser perfeitamente resumida na postura defendida pelo filósofo persa Mullā Ṣadrā e lembrada pelo islamólogo e iranólogo japonês Toshihiko Izutsu (responsável pela primeira tradução do Alcorão para o japonês em 1945): “qualquer filosofia que não esteja baseada em uma visão mística da realidade, não passa de um passatempo intelectual feito em vão” (IZUTSU, Toshihiko. The concept and reality of existence. Tokyo: Keio Institute of Cultural and Linguistic Studies, 1971, p. 5.).
Por não ser centralizado, o sufismo é praticado por diversas ordens, conhecidas como tariqas, e cada uma possui os seus próprios métodos e linhagens espirituais, além de práticas particulares para transformar a vida cotidiana em uma expressão contínua de devoção e alcançar a tawhid.
Algumas das práticas mais icônicas incluem a dhikr (lembrança de Deus), que consiste na repetição constante dos nomes de Deus, versículos do Alcorão ou frases devocionais; a sama (audição espiritual), onde se recitam poesias místicas e se canta em momentos de elevação espiritual; a sohbet (companheirismo espiritual), onde discípulos se reúnem para ouvir os ensinamentos de mestres espirituais, compartilhar experiências e receber orientação; a sema (ritual de giro), praticada pelos dervixes rodopiantes da ordem de Mevlevi, que giram em torno de si mesmos, simbolizando a dança cósmica do universo; e a muraqaba (contemplação), a meditação silenciosa considerada central no sufismo.
Todas elas envolvem um esforço físico, mental e espiritual para se atingir estados de consciência que permitam, mesmo que por tempo limitado, a experiência de união com o inefável, com a consciência divina que é una, inesgotável e indissolúvel. São práticas que exigem movimento interno e externo, dedicação, esforço e, por vezes, sacrifício. Técnicas que comprovam que no caminho da união da consciência individual com a consciência total, não existem atalhos. O que nos leva de volta ao conto escrito por Asimov.
Novas Soluções
No fim de “A Última Pergunta”, as galáxias se apagam e morrem após trilhões de anos de atividade e todas as consciências fundem-se ao grande computador chamado AC, marcando o fim absoluto do ego, da individualidade. Fase final de um processo que teve início com a possibilidade de separação entre corpo físico e consciência, mas que Asimov não delineou com detalhes. Todavia, intuo que ele deve estar relacionado a uma tara humana bem atual.
Não são poucas as pesquisas que especulam sobre a viabilidade de fazer backups cerebrais e salvar a consciência de indivíduos humanos em nuvem. Uma espécie de atalho, que dispensa os sacrifícios da carne exigidos pelas tradições milenares. Ou seja, no lugar de práticas espirituais rigorosas, a ciência moderna oferece a promessa de transcender as limitações físicas por meio da tecnologia, com a inteligência artificial e a biotecnologia desdobrando-se para criarem formas de vida pós-humanas.
Anseios oriundos da impaciência, da falta de reflexão e da aversão ao esforço que marcam a contemporaneidade. “O Ocidente está embriagado de juventude, assombrado pela adolescência e perdeu um carácter essencial, o do velho sábio”, escreveu o cinegrafista e místico francês Arnaud Desjardins, que chama a atenção para o fato de que a palavra persa pir, usada para se referir aos mestres sufis no Irã e no Afeganistão, significa, simplesmente “velho” (DESJARDINS, Arnaud. Les chemins de la sagesse. Paris: La Table Ronde, 1972, p. 123).
Assumindo o risco de incorrer num exercício de superintrerpretação, talvez seja possível dizer que Asimov, com toda a perspicácia que lhe é peculiar, antecipou não só os avanços científicos que estavam por vir, mas também tenha ressaltado indiretamente a nossa eterna tentativa de driblar o trabalho duro em busca das respostas últimas.
E a pergunta que fica, mais uma entre tantas últimas perguntas, é: na corrida entre o microchip e o espírito, quem vai levar a melhor na conquista do infinito?
Bibliografia
ASIMOV, Isaac. Sonhos de robô. Tradução de Braulio Tavares e Anna Beatriz Sach. Rio de Janeiro: Record, 1991.
CORBIN, Henry. The man of light in Iranian sufism. Traduzido do francês por Nancy Pearson. New Lebanon: Omega Publications, 1994.
CORBIN, Henry. History of islamic philosophy. Traduzido do francês por Liadain Sherrard e Philip Sherrard. Nova Iorque: Routledge, 2014.
DESJARDINS, Arnaud. Les chemins de la sagesse. Paris: La Table Ronde, 1972.
FILHO, Miguel Attie. Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida. São Paulo: Palas Athena, 2002.
IZUTSU, Toshihiko. The concept and reality of existence. Tokyo: Keio Institute of Cultural and Linguistic Studies, 1971.
MASSIGNON, Louis. Essay on the origins of the technical language of islamic mysticism. Traduzido do francês por Benjamin Clark. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1997.
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