O Vazio Existencial na Contemporaneidade

Em busca da ancestralidade

O passado negro como um todo sofreu um processo de apagamento e esquecimento. Todos os países colonizados, e nos quais pessoas negras foram escravizadas, seguem com as consequências desastrosas desse apagamento histórico. No Brasil, em dezembro de 1890, Rui Barbosa, à época ministro da Fazenda, ordenou que todos os registros sobre a escravidão fossem queimados, alegando como justificativa um ato humanitário em benefício dos “ex-escravos”. Seu ato eliminava provas que pudessem ser usadas pelos ex-proprietários de escravos, que poderiam recorrer à justiça e pleitear uma indenização por “perdas” decorrentes da Lei Áurea, promulgada no ano anterior. Mas sabemos que a escravidão não acabou com a promulgação de uma lei, como a história conta.

Como se não bastasse terem misturado diferentes povos, que não podiam se comunicar porque desconheciam os idiomas uns dos outros; terem trazido vários africanos ilegalmente para as Américas; e dividido famílias inteiras que nunca mais se encontraram no período de escravidão… O golpe final foi extinguir os últimos registros de origem dos povos negros, pessoas retiradas à força de suas terras, sequestradas e levadas para destinos desconhecidos em navios negreiros. Passados 132 anos, ainda me pergunto: de onde vieram os meus antepassados? Como descobrir esse passado? Houve miscigenação? A saída encontrada foi fazer um teste genético.

Sou negro, tenho 1,90m e possuo traços africanos. Este artigo começa com o momento em que me olhei no espelho do banheiro depois de coletar saliva para um teste genético. Convivendo a vida toda com perguntas como “como descobrir minhas origens?”, “que histórias foram vividas até a vida chegar a mim?”, depositei naquele kit de laboratório a esperança de ter respostas importantes. Em setembro de 2022, contratei uma empresa pioneira no segmento de testes genéticos no Brasil. Recebi em casa um kit contendo duas hastes para coleta de saliva. Acordei cedo – confesso que estava um pouco nervoso –, e colhi o material necessário para a análise.

Foram 40 dias de espera por respostas a questões que me rondavam há mais de 50 anos. Enquanto isso, recebia as notificações por SMS e e-mail, informando o andamento do processo. No início de outubro de 2022, recebi uma mensagem afirmando que a análise estava pronta. Corri para o computador e abri o site. Eis os dados.

O maior percentual do meu DNA está, como imaginava, no continente africano: África 69%, sendo 30% na Costa da Mina (composta por Nigéria, Gana, Togo e Benim, região de onde vieram a maioria dos africanos escravizados), 25% Oeste da África (onde estão Camarões, Gabão, República do Congo, Angola, Guiné Equatorial e trechos da Namíbia), 11% no Leste da África (que inclui Tanzânia, Quênia, Malomi, Moçambique, Zimbábue, Zambia, Suazilândia e parte da África do Sul) e 3% entre Senegambia e Bayaka. 

O que tem em comum todos esses países? O povo Bantu.

Eu não conhecia a etnia Bantu. Comecei a pesquisá-la a partir do resultado do teste e as informações a que tive acesso me trouxeram uma sensação de pertencimento. Enfim, elementos que ocupam um espaço vazio que já sentia há muito tempo. Apesar de não obter informações com nomes de pessoas, as indicações das regiões originárias geraram em mim uma vontade de conhecer aquele território – algo que pretendo fazer em breve.

Mais de 10.000 anos a.C., havia registros do povo Proto-Bantu subdivididos em quatro famílias de lugares da África, que são: Nilo-saariana, Afro-Asiática, Kloisan e Nigero-Congolesa (esta última apontada no meu teste).

Os antigos Bantu navegavam, em vias fluviais, em canoas de madeira que os artesãos esculpiam e transformavam as aldeias em centros sustentáveis. As construções de canoas permitiam a pesca com anzóis, armadilhas e cestas, agricultura e apicultura foram tecnologias revolucionárias e inovadoras 5.500 anos a.C.

A partir dessas informações, começou a passar um filme na minha cabeça, como se eu pudesse navegar no tempo e sentir meus antepassados trabalhando na terra, nos rios e mar.

A tradição oral sempre foi importante, os contadores de história foram responsáveis por registrar e transmitir informações relevantes. Os povos Bantu desenvolveram práticas econômicas, sociais e políticas variadas para viver nesses contextos diversos. Um exemplo poderoso de disseminação de ideias por povos de língua Bantu é a arte marcial – Capoeira – que combina ideologia, prática física e expressão religiosa/espiritual. Essa arte era vista pelos “donos” dos escravizados dessa região como uma simples dança africana – invisibilizando seu valor cultural e identitário.

O povo Bantu tinha uma relação íntima com espíritos ancestrais, ou seja, estes interferiam em suas vidas e esperavam comunicação e oferendas dos vivos, respondendo de duas maneiras: resultados positivos para os descendentes dos espíritos satisfeitos ou estragos provocados pelos insatisfeitos.

As fases do desenvolvimento eram definidas como: gerontocracia, maturidade e senioridade. As fases da vida das mulheres: meninas, mães e anciãs. Dos homens: meninos, pais e anciões. A hospitalidade é uma marca dos povos Bantu no processo de expansão de territórios vastos, uma ética localizada, e própria das comunidades, para construir a sociedade, estabilidade e controlar a violência.

A tradução da palavra Deus significa: Nyambe, termo derivado da palavra nigero-congolesa amb, que significa “começar”; remontando pelo menos a 5.000 anos a.C.

Seguindo no resultado do meu teste genético, outro percentual significativo foi Europa 26%, sendo 12% na região Ibérica, relativa a Portugal e Espanha (essa parte da história eu já conhecia um pouco: meu bisavô por parte de mãe era português e se casou com a minha bisavó Maria, que nasceu escravizada). Já 10% foram relacionados à Europa Ocidental, que engloba países como França, Alemanha, Áustria, Suíça, Bélgica, Holanda, Irlanda, Reino Unido, Liechtenstein e Luxemburgo. Os restantes 4% estariam associados à Itália. Curioso aparecer 4% relativo à Itália em meu teste de DNA, porque esse foi o primeiro país que conheci na Europa, e pelo qual tenho um carinho muito grande. 

Nas Américas, 3% de ascendência do povo Tupi, grupos nativos sul-americanos pertencentes à família linguística Tupi-Guarani.

Por fim, 2% no Oriente Médio – Arábia, Egito e Magrebe.

Fico imaginando você, leitor que também se percebe diante de questões de origem, como se sente ao ler as informações acima. Como psicólogo e logoterapeuta, vejo a importância de se questionar sobre ancestralidade, tanto como um traço de identidade quanto como busca pelo sentido. Para tentar responder, mesmo que parcialmente, à questão “Quem sou eu?”, digo que: seus ancestrais vieram de uma região, com seus costumes, forma de organização social e isso interfere na forma como chegamos até aqui. Podemos, a partir daí, esperançar possibilidades de descobertas com os avanços da ciência (quem diria que teríamos acesso a um teste de DNA).

Ao mesmo tempo, precisamos relativizar criticamente os resultados, pois muitas respostas não podem ser reveladas por testes científicos. Há um registro fundamental que o nosso DNA guarda, mas, existencialmente, para buscar sentido, as memórias têm lugar fundante. Quando apagadas, me parece que há um luto presente que não pode ser compensado pela ciência. Acredito também que possa trazer o papel da imaginação na construção de busca de sentido – pois você pode criar muitas histórias sobre por onde andaram seus ancestrais lendo resultados de um teste genético, como o que fiz, e buscando informações, pesquisando. Essas narrativas que criamos também preenchem uma busca de sentido pelo valor de criação, certo? Nossas histórias podem nos inspirar a termos uma existência plena de sentido, convivendo com a dor de muitas memórias apagadas.

Em busca de Sentido. Em busca da ancestralidade. E aí? Ficou curioso(a)? Já pensou em fazer um teste genético?

Referências Bibliográficas

FRANKL, V. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Trad. Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 25 ed. Petrópolis: Vozes, 2008. 

Gomes, Laurentino. Escravidão: da independência do Brasil à Lei Áurea. Vols. I-III. 1 ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2022. 

Fourshey, Catherine Cymone; Gonzales, Rhonda M.; Saidi, Christine. África Bantu – De 3.500 a.c até o presente. Petrópolis: Vozes,2021.

Imagem: Bantu Knots (sobre foto original de Stephencdickson/Wikimedia Commons, modelo: Gwyneth Ellis)

Sobre o autor

Francisco Carlos Gomes

Psicólogo Clínico e Logoterapeuta. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Fundador e diretor clínico do Núcleo de Logoterapia AgirTrês. Coordenador do grupo de pesquisa "O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ