Jung e a Filosofia da Religião

A civilização em transição no séc. XXI em uma releitura junguiana

A idealização e a busca constante de um estilo de vida de sucesso – que englobam os aspectos materiais, profissionais, emocionais, de relacionamentos, saúde e bem-estar, muitas vezes inatingíveis, acarretando algum tipo de sofrimento – são temas constantes no nosso cotidiano e nos consultórios de psicologia. Motivada pelo tema e provocada pelas leituras no grupo de Pesquisa de Jung e Filosofia da Religião e pela participação no Seminário LABÔ de Verão de 2021, proponho uma reflexão: estaria a civilização em transição, descrita por Jung, sob a influência da mentira, do marketing e da psiquiatria no século XXI? Como base para a reeleitura e diálogo sobre a civilização nos dias atuais, serão utilizados os conceitos propostos pela Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, bem como as considerações de Byung-chul Han, em seu Sociedade do Cansaço.

Em 1918, no seu artigo “Sobre o inconsciente” (2011ª), Jung já falava da crise cultural da Europa como uma crise psicológica, inconscientemente coletiva, com expressão na psicologia do indivíduo. Para ele, o inconsciente não contém apenas conteúdos pessoais, mas também conteúdos que trazem em si um caráter criativo semelhante ao dos símbolos e motivos mitológicos, que surgem em toda parte do mundo. Esses conteúdos não têm relação com a história pessoal, mas com a história da humanidade, viva e natural em nós.

Os conteúdos do inconsciente coletivo atuam como um pano de fundo escuro da consciência. Quando são considerados válidos são absorvidos e desenvolvidos pela consciência; quando não, sejam eles pensamentos, emoções ou desejos, são considerados inadequados à vida consciente e, portanto, ficarão marginalizados e sombrios à consciência. Contudo, esses conteúdos sombrios são vivos e ativos; exercem influência sobre a consciência que se esforça em não reconhecê-los e confrontá-los. Esse é um ponto importante para essa crise psicológica, pois os conteúdos sombrios do inconsciente coletivo eram, anteriormente, experimentados na esfera mítica do homem primitivo por meio de cerimônias e rituais, e também pelas religiões, que se incumbiam de tal tarefa, tornando as manifestações do inconsciente como sinais, revelações ou advertências divinas ou demoníacas.

Sendo a psique uma totalidade, que contém em si consciência e inconsciente (pessoal e coletiva), a psique é um sistema autorregulador que funciona por compensação. Em linhas gerais, isso quer dizer que, à tendência da unilateralidade da consciência, o inconsciente se comporta de forma compensatória, complementando-a ou opondo-se a ela.

Muitas coisas se tornam inconscientes porque a concepção de mundo não lhes dá espaço, pois os limites de consciência e inconsciente são em grande parte determinados pela cosmovisão da época. Assim, o homem contemporâneo, diferenciado pela consciência adquirida, distanciou-se das camadas mais primitivas da civilização que o constituiu e angustia-se diante do futuro. Para Jung, “com a tomada de consciência, o germe da dissociação plantou-se no espírito da humanidade, sendo o maior bem e o maior mal ao mesmo tempo.” (2011ª, p. 151).

A tomada de consciência resultou no crescimento da importância do indivíduo, da crença de poder do eu consciente. Essa tendência individualista consciente promove uma volta compensatória do homem coletivo inconsciente, ou seja, da massa, que é sempre anônima e irresponsável. O homem coletivo sufoca o indivíduo com sua moral e conduta de vida.

Sendo assim, parece bem atual que as projeções do homem coletivo sejam alimentadas pelo marketing e pelas mentiras, que distorcem a realidade para transformá-lo em uma imagem ideal. O marketing atual não vende apenas produtos, mas um estilo de vida ideal, com formas positivas de encarar a vida, nutrindo, vestindo, formando opiniões. A crença que o marketing vende parece uma saída para lidar com as influências do desconhecido mundo inconsciente; mas longe de ocupar o espaço que foi das religiões, pelo contrário, exclui e reprime pensamentos negativos para o sucesso da positividade.

O que o marketing aponta em suas narrativas é destinado à persona, outro conceito de Jung. Persona, do grego, significa a máscara que era usada pelos atores indicando o papel que iriam desempenhar. Como estrutura psíquica, a persona tem uma função adaptativa importante na relação com o mundo externo e de proteção do mundo interno. De acordo com Jung (2011b, p. 47), “ela aparenta ser individual mas é coletiva, representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade, acerca daquilo que alguém parece ser: nome, título, ocupação, isto ou aquilo”. O que se torna disfuncional é o indivíduo se identificar com a persona em nome da imagem ideal, sacrificando a si mesmo. O marketing e a mentira alimentam, reforçam e valorizam as aspirações da persona em detrimento da individualidade e dos conteúdos psíquicos indesejados, que são muitas vezes negligenciados, reprimidos e negados.

Com a valorização da racionalização, da ilusão de que a consciência representa a totalidade psíquica e o distanciamento de função religiosa – que facilitaria o contato do indivíduo consigo mesmo –, o homem atual parece acreditar em qualquer coisa que possa contornar aquilo que é desconhecido em si mesmo. Segundo Jung, as forças do inconsciente continuam assombrando o homem moderno tanto quanto assombravam o homem primitivo, porém os nomes mudaram: não são mais os espíritos e os demônios, mas a ansiedade e a depressão, por exemplo.

Para o filósofo sul-coreano Byung-chul Han (2017), as doenças do século XXI – depressão, transtorno do déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH) e síndrome de burnout – são provocados pelo excesso de positividade como consequência da “massificação do positivo”. Afastar a negatividade daquilo que é estranho promove, cada vez mais, o desaparecimento da alteridade. O autor também fala da sociedade do século XXI como a sociedade de desempenho e produção dos empresários de si mesmo. É o poder ilimitado: “Yes, we can”. Consequentemente, gera depressivos e fracassados, que estão esgotados pelo esforço de serem o melhor de si sob a perspectiva da positividade.

É interessante notar o quanto Byung-chul Han se aproxima do que Jung escreveu há quase 100 anos sobre a civilização em crise e os efeitos da unilateralidade da consciência e da tendência individualista, o que tem originado as doenças mentais que parecem ser o grande assombro de nosso século.

Em outro texto, escrito 1939, Jung (2011c, p. 39) afirma que “esse estado onírico infantil do homem massificado é tão irrealista que ele jamais se pergunta quem paga por esse paraíso. A prestação de contas é feita pela instituição que lhe sobrepõe, o que é uma situação confortável para ela, pois aumenta ainda mais o seu poder. Quanto maior o poder, mais fraco e desprotegido o indivíduo”. Mais desprotegido e mais adoecido está o indivíduo, abrindo um vasto campo para a psiquiatria e para a psicofarmacologia.

Jung pertenceu ao um importante movimento da psiquiatria do final do século XIX e início do século XX, que entendia que a singularidade do indivíduo e a compreensão individual eram fatores essenciais para o tratamento, mais do que os diagnósticos e as estatísticas. Ele alertava que a tarefa do médico consistia em tratar de uma pessoa doente e não de uma doença abstrata que qualquer um poderia contrair.

De Jung para os tempos atuais, vimos o desenvolvimento farmacológico como saída para o sofrimento e as perturbações nas últimas décadas. Se a primeira versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM I, publicado em 1952, listava 106 desordens mentais, em sua versão atual, o DSM V, publicado em 2013, conta com mais de 300 transtornos. Ao que parece, os últimos 60 anos foram promissores em termos de dificuldades da saúde mental, com mais doenças e, portanto, diagnósticos, aumentando significativamente a busca de novos medicamentos correspondentes para conter essa psique que parece criar cada vez mais desordens.

Importante reforçar que há doenças e medicamentos necessários para minimizar os sintomas, mas o objetivo aqui é refletirmos sobre essa dinâmica que acomete nosso século, no qual a medicação também aparece como uma forma de domar e controlar a psique, sem que necessariamente signifique enfrentar e elaborar seus conteúdos. Por mais que se tente encaixar-se dentro da vontade e projeto de vida, a natureza da psique e a verdade sobre si mesmo prevalece se impondo ao ideal. Jung entende que as doenças ou crises são manifestações importantes da psique que precisam ser compreendidas, ampliadas e integradas à vida consciente do indivíduo, processo que requer esforço e muitas vezes sofrimento para alcançar o verdadeiro autoconhecimento e realização de si mesmo. (JUNG, 2011c, p. 39)

Mas o que habita esse mundo interno inconsciente que assombra e que precisa ser negado, a ponto de acreditarmos em tantas mentiras?

De acordo com Jung, a crise psicológica é também moral sobre as concepções de bem e mal, entendidos como princípios, parte da natureza humana. Se o mal está no inconsciente do ser humano, o conhecimento mais profundo desta esfera o ajudará a lutar contra as causas psíquicas do mal, ainda que jamais seja possível conhecê-lo totalmente. No entanto, o medo da psique inconsciente é o maior obstáculo no caminho do autoconhecimento, que é um processo árduo de confronto com conteúdos indesejáveis, para além do conhecimento do eu consciente.

Concluindo, os textos escritos por Jung há cerca de 100 anos são bem atuais e em alguns momentos parecem até proféticos. Para o autor, foi a necessidade psíquica do nosso tempo que nos fez descobrir a psicologia, “quando a religião não mais conseguiu conter toda a plenitude de sua vida” (JUNG, 2011a, p. 89). O próprio fato de termos uma psicologia já aponta para um estremecimento da psique que precisa lidar com as influências do inconsciente pessoal e coletivo.

Em geral tenta-se compreender os problemas da sociedade como algo de fora, distante da responsabilidade individual. A transformação de uma sociedade acontecerá a partir da transformação no próprio indivíduo. Como diz Jung (2011a, p. 163), “todo problema individual se relaciona de certa forma com o problema da época, de modo que toda dificuldade subjetiva pode ser examinada, por assim dizer, sob o prisma da situação geral da humanidade”. Sendo assim, é na dificuldade e no medo individual que se encontram os fatores que influenciam os fenômenos coletivos de nosso tempo, como o marketing, a mentira e a psiquiatria.

Aos que tiverem a coragem de lidar com o mundo interior, poderão encontrar no pano de fundo escuro da consciência também a função criativa e criadora das imagens do inconsciente coletivo, que carregam toda a obra da humanidade e que possibilita a autencidade da natureza humana.

Referências Bibliográficas

HAN, Byung-chul. Sociedade do cansaço. Petropólis: Vozes, 2017.

JUNG, C.G. Civilização em transição. In: Obras Completas, vol.10/3. Petrópolis: Vozes, 2011a.

_________. O eu e o inconsciente. In: Obras Completas, vol.7/2. Petrópolis: Vozes, 2011b.

_________. Presente e Futuro. In: Obras Completas, vol.10/1. Petrópolis: Vozes, 2011c.

Imagem: anúncio de venda online de travesseiro estampado com cápsulas de fluoxetina (spoonflower.com)

Sobre o autor

Camila Ferrari

Psicóloga clínica junguiana, Pós-Graduada em Psicologia Junguiana pelo Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa/IJEP. Pesquisadora dos Grupos de Pesquisa Jung e a Filosofia da Religião e Estudos sobre Morte e Pós Morte do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.