
Ao lermos o livro O Filho de Mil Homens, romance escrito pelo autor português Valter Hugo Mãe, publicado em 2011 em Portugal, levantamos a indagação se seria possível discutir essa poética obra aos olhos do conceito de “arquétipo da Criança” ou “motivo mitológico da criança” proposto por Carl Gustav Jung, em seu Os arquétipos e o inconsciente coletivo, isto é, seria a literatura um recurso para melhor compreensão desse conceito psicológico? Para desenvolvermos essa reflexão, inicialmente, apresentaremos brevemente o livro de Valter Hugo Mãe e suas personagens, em seguida uma síntese de alguns conceitos propostos por Jung.
A história de Valter Hugo Mãe se passa numa aldeia portuguesa, numa vila de pescadores. As personagens sofrem por estarem presas em definições apresentadas pela sociedade, nas quais não se encaixam, sentindo-se erradas e sozinhas. Iniciando por Crisóstomo, um pescador de 40 anos que buscava um filho, sentia-se só e se via pela metade, sem mais ninguém, carregado de ausências e silêncios. Ele compra um boneco de pano que encontrou numa feira, abraça-o e começa a pensar como seria um filho de verdade. “Sentia uma urgência grave sem saber ainda o que fazer” (MAE, 2016, p. 20).
Outra personagem é Camilo, filho de uma anã que morre no parto e “filho de quinze homens”, os quais não se manifestaram após o seu nascimento. Ele é adotado como neto por Alfredo, que o cria como sendo o filho que não teve com sua esposa falecida, que nega a ele a sua verdadeira história. Alfredo morre quando Camilo era adolescente. Este ficou sozinho sem saber o que fazer, pois não sabia nada da vida. Depois de 20 dias fechado em casa, ajudado por uma vizinha, Camilo apresenta-se para trabalhar como pescador. Crisóstomo conhece Camilo, que o enxerga como um menino cheio de “silêncios e ausências” e o adota, intuindo que este era seu filho esperado.
Isaura, terceira personagem, foi prometida em casamento pelos seus pais ao filho dos vizinhos. Cresceu esperando conhecer o que é o amor. Depois de muito tempo de insistência, Isaura se entrega sexualmente ao filho do vizinho aos dezesseis anos, fica assustada e conta para os seus pais que rompem o acordo do casamento. O rapaz passa a desprezá-la e já não a queria mais, dizia que ela o traíra. Os anos passam e ela, sentindo-se errada, pensava várias formas de definir o amor: “o amor seria aquela desgraça?” Ela queria que fosse outra coisa. Mas “pensou que o amor era mau”, pois fora abandonada e se sentia envergonhada de ter um dia oferecido tudo ao amor.
A quarta personagem é um homossexual, Antonino, o homem maricas, que sofre por não poder ser “ele”. É visto como uma aberração pela comunidade e não aceito pela mãe, que também sofre por não se permitir amá-lo e se sente culpada por ter feito algo errado.
Antonino e Isaura se conhecem e se casam. O casamento é uma possibilidade para ambos de não serem mais filhos “perdidos” e um arranjo para realizar os padrões idealizados pelas famílias e pela comunidade. Sem desejo e significado íntimo, ficam envoltos pela tristeza e solidão. Na noite após o casamento, Antonino some. Depois de aproximadamente um mês, Isaura sai de casa sem rumo, para na vila dos pescadores e senta-se na areia. Isaura esperava amar. Quando aceita chorar e, finalmente, chora, percebe com honestidade consigo mesma, pela primeira vez em muitos anos, que estava sozinha. Crisóstomo observa a mulher sentada no mesmo lugar que ele ficava em frente ao mar. Neste momento, Isaura e Crisóstomo se encontram. A partir desse encontro, livres das necessidades de cumprir as demandas que pareciam ser fundamentais para suas vidas, eles vão descobrindo outras faces do amor, da vida que possibilitam um reencontro com eles próprios.
Do encontro e da relação entre Crisóstomo e Isaura, entrelaçam-se as histórias de Antonino e Camilo. Tais relações crescem e fazem com que cada um possa ser o que não podia antes. Encontraram um amor que une, que produz encontros e o respeito de quem se é. “Ser o que se pode é a felicidade” (MAE, 2016, p. 86). E assim formam uma família e descobrem que família pode ser inventada. Sentem-se pertencentes e aceitos, não querendo ser outras pessoas.
Passemos, agora, aos conceitos de Jung que nos servirão de base para a reflexão. Segundo o autor, a psique humana é constituída de consciência e inconsciente, sendo este composto de uma esfera pessoal, formada a partir da experiência individual, e uma coletiva, composta pelos instintos e arquétipos, “que indica a existência de determinadas formas na psique e que estão presentes em todo tempo e em todo lugar”. (JUNG, 2011, p. 51). São estruturas psíquicas que nos possibilitam formar ideias, pensamentos e imagens tipicamente humanas, como são os temas ou motivos que aparecem nos mitos e contos da literatura universal, bem como nas fantasias e sonhos do ser humano moderno.
O arquétipo da criança ou motivo mitológico da criança é justamente o que representa o aspecto pré-consciente da infância da alma coletiva, algo que existe antes do humano e continuará depois deste. Quando Jung fala em criança neste contexto não está falando da experiência concreta da infância de cada um, mas de uma representação. Não é apenas a memória de algo que aconteceu há muito tempo, mas algo que está presente, para compensar ou corrigir as “unilateralidades ou extravagâncias inevitáveis da consciência”. (JUNG, 2011, p.162). A natureza da consciência é de se concentrar em poucos conteúdos, de forma seletiva e, por isso, torna-se unilateral. E eis aqui o paradoxo: se a consciência unilateraliza-se demais, corre-se o risco de nos distanciarmos das raízes, ou conteúdos inconscientes que foram anteriores à consciência, representados pela imagem da criança. Quanto mais unilateralizada, o risco de distanciarmos a criança de nós criará uma consciência desenraizada que, assim, pode sucumbir desamparada de todas as sugestões, tornando-se suscetível àquilo que é imposto.
Se não levarmos a sério e prestarmos atenção “às vozes” vindo de nossas origens internas, vivemos este conflito doloroso como algo sem saída. Assim vivem as personagens criadas por Valter Hugo Mãe, que se perderam no caminho da formação da consciência e, voltados para o mundo, perderam-se da criança em si, da raiz e da origem, e, sofriam por isso. Nas palavras de Jung (2011, p. 169):
A consciência nada sabe além dos opostos e por isso também não reconhece aquilo que os une. Mas como a solução do conflito pela união dos opostos é de vital importância e também desejada pela consciência, o pressentimento de criação significativa abre caminho. Disso resulta o caráter numinoso da criança. Um conteúdo importante, mas desconhecido, exerce sempre um efeito fascinante e secreto sobre a consciência. A nova configuração é o vir a ser de uma totalidade, isto é, está a caminho da totalidade, pelo menos na medida em que ela excede em ‘inteireza’ a consciência dilacerada pelos opostos, superando-a por isso em completitude. Por esse motivo, todos os ‘símbolos unificadores’ também possuem um significado redentor.
A representação da criança significa que algo se desenvolve rumo à autonomia. Para desenvolver autonomia necessária é preciso um abandono da origem, mas sem desligar-se dela, esta vivência é angustiante. Aqueles que seguem guiados pelas regras externas cegamente, vivem uma vida sem criatividade. Cumprem tarefas até morrer. Porém, aqueles que não conseguem se encaixar, não são aceitos, sentem-se errados, e se perdem de si mesmos ao forçarem este encaixe, provavelmente criam doenças, do corpo e da alma.
Crisóstomo, intuitivamente na sua fantasia e pelo sentimento de busca por um filho, dá ouvidos à sua criança e cria a consciência de reencontrar a criança em si, conectando-se com a possibilidade arquetípica do motivo da criança. Ele sentia como se procurasse uma criança que lhe pertencesse, como se a tivesse perdido num passeio por distração e faltasse apenas reencontrá-la. Sendo assim, Crisóstomo assumiu a tristeza para reclamar a esperança. Como ele diz para Camilo:
todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós. (MAE, 2016, p. 204)
Pensamos que a conexão com a “criança” interior, esta filha de mil pais e mais de mil mães, pais e mães arquetípicos na linguagem junguiana, pode conduzir a pessoa para onde ela necessita estar. A criança personifica as nossas forças vitais abrindo possibilidades e caminhos. Pois o aspecto fundamental do motivo mitológico da criança é seu caráter de futuro, futuro potencial, ou seja, o motivo da “criança” prepara para a transformação da personalidade pelo seu aspecto de unificação dos opostos. A inteireza da unificação dos opostos, que transcende a consciência, Jung chamou de processo de individuação, ou seja, tornar-se si-mesmo.
Encontramos na literatura, por meio da linguagem poética de Valter Hugo Mãe, o trabalho da individuação e o motivo do arquétipo da criança proposto por Jung em suas personagens; a partir da busca, do vazio, da solidão e do amor, acompanhamos a transformação criativa potencial de cada personagem e em cada um de nós.
Bibliografia
JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
MAE, Valter Hugo. O filho de mil homens. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
Imagem: NASA
