
Afinal, o que a tragédia da vida vivida tem a dizer à nossa consciência?
Para iniciarmos qualquer pequena trajetória no tema proposto neste texto e dentro, claro, de aproximar a ideia filosófica de tragédia a uma perspectiva junguiana, precisamos mencionar que não há na obra de Jung um texto ou estudo direcionado especificamente ao trágico ou à tragicidade humana, de modo que será necessário buscarmos uma aproximação do conceito de trágico à visão de Jung sobre o desenvolvimento psicológico humano e o seu significado.
A familiaridade de Jung com a filosofia será como um fio condutor nessa trajetória, levando em consideração que suas grandes fontes de estudos partem daí. Heráclito, Schopenhauer, Goethe, Nietzsche, entre outros, são considerados por ele como “ferramentas de pensar”. A função reguladora dos contrários de Heráclito, a imperfeição como fundamento do universo e, consequentemente, a vida como sofrimento, como disse Schopenhauer, o poder do mal no mundo como encarou Goethe, a consciência humana concebida como parte de um processo dinâmico para Nietzsche, são intersecções visíveis nas linhas junguianas.
É importante também observar que o trágico não tem uma definição precisa desde a sua origem grega, havendo divergências entre os comentadores, ainda que se possa afirmar que exista uma concordância quanto ao fato de haver a tragédia, enquanto gênero literário, e o trágico filosófico, principalmente em Schopenhauer e Nietzsche. Enquanto gênero literário, a tragédia aborda a condição mortal do homem, condição oposta à imortalidade dos deuses, e todas as consequências que ela impõe: seus limites, suas antinomias, seus conflitos, seu sofrimento. Esses elementos servirão de base para o pensamento trágico da filosofia moderna, que refletirá sobre a condição do mundo e do ser humano, cujos expoentes são exatamente Schopenhauer e Nietzsche. Para o primeiro, a consciência trágica seria a percepção de que o sofrimento nos é vital, de que “toda vida humana, vista em seu conjunto, revela as propriedades de uma tragédia” (SCHOPENHAUER, 1974, p. 140). Já em Nietzsche, observamos a luta entre a racionalidade e o instinto, representada pelo apolíneo e dionisíaco, a ilusão e a verdade da existência marcada pela dor e prazer, pela contradição, como ele aponta em O nascimento da tragédia.
Sem nos alongar na discussão sobre o trágico na filosofia, que não é nosso foco, mas retendo os elementos que o constituem, vejamos como eles se fazem presentes no modelo de estrutura e dinamismo psíquicos proposto por Jung. Para o psiquiatra suíço, a psicologia diz respeito à totalidade do humano, um ser que vive no mundo material e espiritual, externo e interno, físico e psíquico, consciente e inconsciente, ou seja, um ser que está constantemente em conflito e, consequentemente, em sofrimento. Como ele disse em um artigo de 1912, “Novos rumos da psicologia”:
Quem quiser conhecer a psique humana […] o melhor a fazer seria pendurar no cabide as ciências exatas, despir-se da beca professoral, despedir-se do gabinete de estudos e caminhar pelo mundo com um coração de homem: no horror das prisões, nos asilos de alienados e hospitais, nas tabernas dos subúrbios, nos bordéis e casas de jogo, nos salões elegantes, na Bolsa de Valores, nos “meetings” socialistas, nas igrejas, nas seitas predicantes e extáticas, no amor e no ódio, em todas as formas de paixão vividas no próprio corpo, enfim, em todas essas experiências, ele encontraria uma carga mais rica de saber do que nos grossos compêndios. (JUNG, 1989a, p. 112)
O objetivo da psicologia por ele proposta, assim, não é a aplicação de um conjunto de técnicas para curar o sofrimento, parte essencial da vida humana, mas antes, “tentar, se possível, encontrar ao menos um caminho que possibilitasse às pessoas suportar o sofrimento inevitável, que é o destino de toda existência humana” (JUNG, 2001, p. 247).
Mas qual seria esse caminho? Para Jung, é viver sua própria vida. E isto significa realizar sua totalidade e individualidade, o que ele denominou processo de individuação. Mas “a totalidade, a plenitude da vida exige um equilíbrio entre sofrimento e alegria” (JUNG, 1987, p. 78), pois “só o paradoxal é capaz de abranger aproximadamente a plenitude da vida” (JUNG, 1994, p. 28).
O processo de individuação é o processo de desenvolvimento natural no decorrer de uma vida: significa criação e ampliação de consciência, o que não ocorre sem dificuldades na medida em que a psique humana é constituída de uma esfera inconsciente, base da qual se origina a consciência. Contudo, à medida que a consciência vai se desenvolvendo, muitos aspectos que fazem parte do humano, portanto da estrutura psíquica, serão reprimidos, pois não servem à nossa necessária adaptação ao mundo, constituindo o inconsciente pessoal. Podemos dizer que a consciência psicológica, então, vai se formando com base nas normas, nos costumes, no código moral. Desta forma, a consciência está em relação com o mundo exterior.
Todavia, a individuação exige a realização integral do indivíduo, ou seja, também a relação com o mundo interior da psique, o que significa uma lealdade a si mesmo, designada, por Jung, como “função moral”. A individuação, vista assim, é considerada como uma “realização moral”. Esta realização moral, por consequência, implica uma consciência moral que, segundo Jung (1993, p. 173:
Não importa em que se baseie, exige que o indivíduo obedeça à sua voz interior, mesmo correndo o perigo de errar. Pode-se negar obediência a esta exigência invocando, por motivos religiosos, o código moral, ainda que com a desagradável sensação de haver cometido uma deslealdade
Obedecer a voz interior, no entanto, é obedecer a vox Dei, isto é, é obedecer a uma exigência e autoridade que se comporta como um Deus. Mas, neste caso, pode ser gerado um conflito de deveres, ou seja, uma dúvida entre dois modos possíveis de comportamento moral. A solução, diz Jung (1993, p.181), “corresponde aos fundamentos mais profundos da personalidade bem como à sua totalidade que abarca coisas conscientes e inconscientes, mostrando-se por isso superior ao eu”. Isso significa uma consciência ética, na qual participam a consciência psicológica racional e o inconsciente irracional, o que é “expresso na linguagem religiosa como a razão e a graça” (ibid.).
Contudo, é preciso ressaltar o caráter doloroso da consciência ética, pois nela está contida a responsabilidade pela decisão. Em suas Memórias (p. 285), Jung diz que:
nada pode nos poupar do tormento da decisão ética. Mas por mais rude que isto possa parecer, é necessário, em certas circunstâncias, ter a liberdade de evitar o que é reconhecido como moralmente bom, e fazer o que é estigmatizado como mal, se a decisão ética o exigir. Em outras palavras: é necessário não sucumbir a qualquer um dos dois termos opostos.
Porém, de maneira geral, procura-se as regras e as leis exteriores nas quais se apoiar mantendo-se, desta forma, inconsciente das possibilidades de decisão. Entretanto, há algo que é atuante em nós, que está para além das conduções e bordas do certo e do errado e de uma condução racional da trajetória psíquica, proposto pelo meio social, pela fantasia de controle de condução da vida, que alcançam então a onipresença do inconsciente. Só o conhecimento de si mesmo, que se dá na dialética estabelecida pela tensão dos opostos, aspectos conscientes e inconscientes, racional e irracional, pode nos levar ao ganho de consciência, o trilhar, o viver a própria vida. Entretanto, como diz Jung (1991, p.3):
Normalmente confundimos “autoconhecimento” com o conhecimento da personalidade consciente do eu. […] O homem mede seu autoconhecimento através daquilo que o meio social sabe normalmente a seu respeito e não a partir do fato psíquico real que, na maior parte das vezes, é a ele desconhecido. Nesse sentido, a psique se comporta como o corpo em relação a sua estrutura fisiológica e anatômica, desconhecida pelo leigo. Embora o leigo viva nela e com ela, via de regra ele a desconhece. Tem então que recorrer a conhecimentos científicos específicos para tomar consciência, ao menos, do que é possível saber, desconsiderando o que ainda não se sabe, e que também existe.
E de forma a alinhavar a aproximação do conceito de trágico à visão de Jung, podemos dizer que se para a filosofia o trágico se apresenta no paradoxal, na antinomia, poderíamos dizer que para Jung a consciência é trágica na medida em que precisa reconhecer o inconsciente como parte da psique que está para além da ação limitante do código moral tradicional, que abarca os fundamentos mais profundos da personalidade.
Quando falamos em consciência trágica, na perspectiva junguiana, falamos em responsabilizar-nos por aquilo que também atua em nós e que não está apenas no campo do código moral, mas sim que nos apresenta uma condição dialética estabelecida por estes opostos: aquilo em que “podemos” atuar, frente aquilo que é atuante em nós, considerando o atuar na intenção da consciência moral e o atuante no reconhecimento responsável pelo que atua em nós.
Poderíamos dizer que o senso trágico da individuação ou a tragédia humana é a interferência dos deuses, ou de Deus, no destino dos mortais, um desvio do caminho humano pela presença do divino, numa linguagem religiosa, ou pela presença do inconsciente, com seus instintos e arquétipos, na visão psicológica; o reconhecimento de que há algo para além da razão humana que interfere, forja, modifica condições outras não definidas pelo limitante do conhecimento científico, que determinaria a condução do nosso destino. E que diante disto não há nada a ser feito, apenas “aceitar” de forma ativa e não passiva, com a consciência, uma consciência “trágica”. A individuação não é um projeto de gestão pessoal, é um processo diretamente ligado ao reconhecimento da existência dessas forças outras que nos habitam e que exigem legitimidade, lealdade, aceitação, comparecimento frente àquilo que nos é apresentado e como podemos articular diante de tal aceitação com criatividade e entusiasmo do vir a ser. A dimensão trágica, por assim dizer, trata de uma espécie de renúncia da ideia de total controle ou de domínio por parte do eu sobre nosso próprio destino. Simbolicamente, é como se estar na cruz entre dois ladrões. Nas palavras de Jung:
O problema da crucifixão é o início da individuação; aí reside o significado secreto do simbolismo cristão, um caminho de sangue e de sofrimento – semelhante a qualquer outro passo na estrada da evolução da consciência humana. Pode o homem suportar um aumento adicional de consciência? […] Confesso que me submeti ao divino poder desse problema aparentemente insuportável e, de maneira consciente e intencional, tornei minha vida miserável, porque eu queria que Deus ficasse vivo e livre do sofrimento que o homem colocara sobre ele ao amar mais sua própria razão do que as intenções secretas de Deus. (apud EDINGER, 1990, p. 194).
Para concluir, uma fala improvisada de Jung durante um jantar após sua última palestra em Nova Iorque, em 1936, quase que nos deixando um recado secular por assim dizer: “a última coisa que direi a cada um de vós, meus amigos, é o seguinte: levem por diante vossa vida tão bem quanto puderem, mesmo que se baseie num erro, porque a vida tem que ser desfeita e, com frequência, chega-se à verdade através do erro.” (in: MCGUIRE, W; HULL, R.F.C. 1982, p. 103).
Referências bibliográficas
EDINGER, E.F. Anatomia da psique. São Paulo: Cultrix, 1990.
JUNG, C.G. A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1987.
______. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1989a.
______. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989b.
______. Presente e Futuro. Petrópolis: Vozes, 1991.
______. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 1993.
______. Psicologia e Alquimia. Petrópolis: Vozes, 1994.
______. Cartas 1906-1945. Petrópolis: Vozes, 2001.
MCGUIRE, W; HULL, R.F.C. C.G.Jung. Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982.
NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
SCHOPENHAUER, A. Parerga e Paraliponema. São Paulo: Abril, 1974 (Coleção Os Pensadores).
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