Certa vez li que um clássico permanece sendo um clássico, pois, em algum aspecto, seu texto ainda retrata a realidade do tempo de quem o lê. Isso fez muito sentido quando estava estudando o texto “Ludwig Börne and Heinrich Heine – On Shylock” para debater com meus colegas do grupo de pesquisa.
Ao tentar organizar um fio condutor para dar início às discussões, tive uma certa dificuldade sobre como poderia trabalhar as ideias dos dois pensadores do século XIX. Então, encontrei uma sinopse da peça que me chamou atenção: “A trama que envolve o vilão Shylock e o mocinho Antônio encanta leitores e plateias há mais de quatro séculos, nos transportando para uma Veneza histórica e fascinante”.Após quase dois séculos das falas de Börne e Heine, nos encontramos andando em círculos, voltando sempre às mesmas questões. Seria Shylock realmente a personificação de todo o mal, enquanto Antônio seria o grande injustiçado da história?
Tanto Börne quanto Heine abordam, no início de seus textos, experiências vivenciadas direta ou indiretamente por eles com apresentações teatrais de “O Mercador de Veneza”. Na história de Börne, ao agradecer ao público, o ator que interpretava o judeu disse: “Monstros como Shylock não poderiam ser encontrados na vida real”. Já na história de Heine, uma espectadora, aos prantos, disse que Shylock foi injustiçado. Percebemos aqui um exemplo de como os personagens de Shakespeare não são óbvios. Teria realmente o ator mencionado por Bornë, em suas próprias palavras, compreendido seu personagem?
Por séculos, as peças de Shakespeare foram encenadas e relidas a partir de diversas plataformas e para diversos públicos. Isso é possível porque o dramaturgo traz em suas peças temas atemporais, como amor, vingança, ciúmes, discriminação, etc. Aliado a isso, temos personagens desenvolvidos em camadas. Em outras palavras, se pensarmos em “O Mercador de Veneza”, até onde vai a benevolência de Antônio? Até o trato com Shylock. Como diria o próprio Börne (1828, p. 71), “Antônio, que sacrifica tudo por seu amigo Bassanio, ainda não é nobre o suficiente para dizer palavras bondosas a um judeu, no interesse de seu amigo”[1]. O mercador só é respeitável perante seus iguais. Shylock é de todo vingativo, ou apenas exige o mínimo de justiça da parte de alguém que o lesou? Como bem lembra Shylock em seu monólogo
Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança. Hei de pôr em prática a maldade que me ensinastes, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda.
Um aspecto da peça que poderíamos questionar é a respeito da caracterização dos personagens. A questão de um “confronto” entre um judeu e um cristão foi proposital? Na perspectiva de Heine (1938, p. 74), devemos pensar o trato entre os personagens a partir da ideia da relação entre opressores e oprimidos. Shylock e Antônio poderiam estar representando qualquer outro grupo, não necessariamente um judeu e um cristão. Para Heine, “não há nenhum traço de diferença religiosa na peça”[2], de modo que “Shylock é apenas um homem que é comandado pela natureza de odiar seu inimigo, assim como Antônio e seus amigos, ele de modo algum apresenta os discípulos dessa doutrina divina que nos manda amar nossos inimigos”[3].
Shylock: Mui justo senhor, o senhor cuspiu em mim na última quarta-feira, o senhor me enxotou em um certo dia e, de outra feita, me chamou de cachorro; e, em consideração a essas cortesias, vou lhe emprestar estes tantos dinheiros.
Antônio: Estou a ponto de te chamar assim de novo, de cuspir, de cuspir em ti de novo, de te enxotar a pontapés também
Jessica, filha de Shylock, o abandona, leva seu dinheiro e se casa com um cristão. Como bem relembra Heine, não há nada que Shylock ame mais do que sua filha. Mesmo assim, além de ter o desprezo dos personagens cristãos que lhe pedem dinheiro emprestado, ele também recebe o desprezo de sua filha. Contudo, o sentimento de Shylock por sua filha não é recíproco. Heine (1838, pp. 77-8) relembra uma cena em que os amigos de Antônio afirmam que sacrificariam suas esposas pelo amigo. O pensamento do banqueiro baseia-se na preferência de que sua filha tivesse se casado com alguém da linhagem de Barrabás a algum cristão que a sacrificasse na primeira oportunidade.
Como exposto por Borne (1928), não podemos ter acesso à real pretensão de Shakespeare com essa peça. Contudo, o autor sugere que “O Mercador de Veneza” traz mais reflexões para os cristãos do que para os judeus, ou, nos termos de Heine, para opressores ao invés dos oprimidos. Nas palavras de Börne (1928, p. 71) “Como poderia Shylock não odiar Antônio, e odiá-lo mais ainda, por mais bondoso e nobre que ele seja! Antônio é bom, nobre e benevolente, mas não para com o judeu”[4].
Heine (1838, pp. 78-9), em seu texto, ainda menciona um ponto que constitui o cerne da discussão do nosso grupo: o diálogo entre judeus e alemães. Na medida em que eles, nas palavras do autor, foram inimigos do império romano e compartilhavam textos bíblicos – além de outras similaridades entre os povos anciãos e suas terras ancestrais –, Heine indaga em qual o momento essa relação deu errado.
Durante o processo de “modernização política”, a Europa passou de uma obediência a uma figura central (como um imperador, ou um príncipe) até o ponto de seguir um conjunto de regras mais abstratas, como as leis. Para os judeus, a prática de seguir regras e não pessoas, não era nenhuma novidade (Heine, 1838 p. 79). Heine, inclusive, menciona Josefus, ao situar a posição contrária ao absolutismo romano pelos judeus.
A partir de “O Mercador de Veneza”, Heine questiona as justificativas ao ódio contra os judeus. Seria um pretexto religioso segundo o qual, da mesma forma que as pessoas amam por amar, elas odeiam por odiar? Para isso, Heine menciona uma carta privada que desenvolve essa ideia.
O ódio em si não seria um problema, mas sim as ferramentas utilizadas para sua manutenção – ou tentar dissimular esse sentimento em algo lógico, transformando sua vítima em um bode expiatório. A religião, por exemplo, foi vinculada por muitos clérigos a um discurso de sofrimento e submissão. Dessa forma, a população em geral ficou satisfeita em se apropriar desse discurso para exteriorizar o ódio. A partir disso, sabemos as diversas perseguições que os judeus sofreram: culpabilização pela morte de Cristo, inquisição ou cruzadas.
Após a Idade Média, a religião deixa de ser o cerne da propagação de ódio. Com a modernização, os recursos para disseminar o ódio foram adaptados. Os judeus, que historicamente exerceram funções “terceirizadas” que a sociedade de cada época não queria assumir ou ignorava – como comércio, lidar com dinheiro, indústria, etc –, viram as funções por eles exercidas se tornarem justificativas de culpabilização. Os cristãos começaram a praticar essas atividades antes desprezadas e, ao chegarem no mesmo patamar de competitividade dos judeus, passaram a desenvolver políticas de regulação da quantidade de casamentos de judeus e, consequentemente, o controle da taxa de natalidade, para evitar a competitividade de comércio.
Tanto na modernidade quanto na Idade Média, qual era realmente a culpa dos judeus? Retomando “O Mercador de Veneza”, onde estaria a culpa de Shylock ao exigir que o acordo fosse cumprido? A benevolência de Antônio não é colocada em xeque durante o trato com o Shylock? Parece que resumir “O Mercador de Veneza” em uma “trama que envolve o vilão Shylock e o mocinho Antônio” é excessivamente raso.
[1] Tradução da autora.
[2] Tradução da autora.
[3] Tradução da autora.
[4] Tradução da autora.
Imagem: Al Pacino como Shylock na adaptação cinematográfica de The Merchant of Venice (2004)