A Experiência Mística e o Conhecimento

O espelhamento de si na experiência da primeira modernidade – reflexões sobre loucura, limites e o abismo

A partir da formação de uma subjetividade moderna e da relação emergente desse sujeito com o mundo – como sustentaram autores como Michel Foucault e Walter Benjamin, por exemplo –, procura-se pensar como a passagem do medievo à modernidade teria afetado a experiência mística. Para isso, toma-se o que é abandonado da perspectiva mística medieval conforme elaborada na condição de uma alma aniquilada por Marguerite Porete, para refletir brevemente sobre os efeitos deste abandono na formação de um novo sujeito, na sua percepção da alteridade e nos limites que lhe são impostos, daí em diante, especialmente pela linguagem e pela razão.

Em “O Espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor”, Marguerite Porete, mística francesa do século XIII, nos convida a acompanhá-la em seu trajeto vertiginoso que tem por destino o aniquilamento da Alma. Este, entre outros percalços, deve necessariamente atravessar sete estágios, como os degraus de uma ascensão que parte do vale de uma montanha e chega até seu topo, um lugar tão isolado que nele só se pode enxergar Deus (PORETE, 2008:188).

No quinto estado tem-se a morte do espírito, e é quando a alma inicia efetivamente seu aniquilamento em um processo que, como explica McGinn, “pode ser descrito como a criação de uma identidade mística, embora paradoxalmente ocorra por meio da ‘des-criação’ da pessoa em aniquilamento, sendo o objetivo final […] ‘um ‘eu’ sem mim’” (MCGINN, 2007:368). Porete (2008:177) afirma ainda, através da Alma, que “o Filho de Deus Pai é meu espelho”. O que significa olhar-se no espelho e enxergar um outro, senão que do lado de cá quem lança o olhar já não está mais? Vê-lo me vendo de volta, me confirma – já não existo aqui, onde estava até instantes: fui substituída, finalmente aniquilada. A vontade, aquela que “quer que o que é, não seja”, cede lugar, diante do espelho, à substituição do que “não é” pelo que “é” (PORETE, 2008:166).

No princípio, era o verbo: pelo logos, nas tradições religiosas judaico-cristãs, Deus cria o mundo. Nomeadas, as coisas comunicam seus nomes aos homens, ou seja, os informam de sua essência; na linguagem adâmica, as coisas têm nomes próprios e apenas os repetimos. Contudo, a modernidade transforma o nome em palavra, em logos-razão, que se define pelo divórcio da intuição, da imaginação e do contraditório: é findo, assim, o tempo em que as coisas do mundo se comunicam com os “filhos do homem.” Foucault (1978:20-30) situa o foco da transformação da relação entre o homem e um mundo que passa a ignorá-lo na passagem do medievo à Renascença, época em que ocorre no imaginário coletivo, segundo ele, a substituição da morte pela loucura; ambas tratam do que está para além do cognoscível e apontam para um abismo da consciência, mas que deixa de ser exterior (morte) e passa ao interior como modo contínuo da existência (a loucura).

O ápice desse processo é manifesto no Barroco, fundado sobre a absoluta imanência vinculada à impossibilidade de absolvição. Perdida a transcendência, a matéria emudecida é tudo que resta aos homens; uma que zomba de sua “significação” alegórica e escarnece de todos os que imaginam poder investigá-la impunemente (BENJAMIN, 1984:250). Ainda assim, a busca pelo sentido nutre no homem a esperança de salvar-se através das coisas significadas, mergulhando em sua investigação. Walter Benjamin concebe a modernidade como um tempo e espaço privados de redenção e escatologia, traços expressos pelo Barroco que, se imerso e condenado à imanência, o é porque exclui de seu horizonte toda a história messiânica (BENJAMIN, 1984:255). Sua expressão formal é a alegoria, montada sempre sobre ruínas: ao contrário do símbolo, que filtra a história pela perspectiva transfiguradora da redenção, a alegoria nos oferece sua facies hippocratica: “a ruína é o que resta da vida depois que a história naturalizada exerce sobre ela os seus direitos.” (BENJAMIN, 1984:37)

A arbitrariedade se torna ferramenta-chave do alegorista, que munido de subjetividade absoluta lança-se à geração de infindas significações moldadas à sua própria imagem e semelhança. Aqui fica nítida a completa oposição à figura simbólica do espelho conforme empregada por Porete, o qual deve refletir senão o completo aniquilamento de quem se coloca frente a ele. O limite imposto pela linguagem, loucura e abismo, subvertido na experiência moderna, não mais indica um horizonte divino, mas incentiva o apoio do homem apenas sobre si mesmo: quem anima as coisas e as significa não é mais Deus, mas o sujeito que reflete nelas a própria subjetividade – este é seu novo espelho.  

Se a ascensão do sujeito humanista e cartesiano alimenta as projeções, pois tudo se torna possível subjetivamente, como se sustenta uma nova experiência mística não mais pautada pelo aniquilamento de si? Benjamin exemplifica: Santa Teresa vê a Madonna colocando flores em seu leito e comunica essa visão a seu confessor. “Não vejo nenhuma flor”, responde ele. “Foi para mim que a Madonna as trouxe”, ela diz (BENJAMIN, 1984:257). A subjetividade aqui manifesta pode indicar, portanto, não o desaparecimento da experiência mística, mas antes sua transformação, alimentada por mudanças contextuais que a atravessam e a estruturam historicamente. 

Para os que abandonam a transcendência por inteiro, contudo, a subjetividade nem sempre alcança o status da realidade objetiva: “Chorando, arremessamos as sementes no solo inculto, e saímos tristemente.” (BENJAMIN, 1984:256) A alegoria sai de todas as suas empreitadas com as mãos vazias. Percebe-se que, na experiência moderna do homem acerca do mundo, os limites do sentido e da linguagem se impõem, não porque, como indica Porete sobre a experiência mística, o homem se esvazia pelo aniquilamento de sua alma e vontade, mas antes porque se vê, ao contrário, repleto de si mesmo: confiante em sua capacidade de significar, à força, as coisas do mundo, deixa de ouvi-las e isola-se, sem conseguir sustentar a empreitada que se propôs, confrontado inevitavelmente com o limite da própria linguagem e sua razão.

O espelho do homem moderno reflete, assim, o sujeito imerso em sua materialidade, restrito à imanência e emudecido por ela. Depois de buscar em si todos os atributos do sentido e da criação, e de projetar nas coisas terrestres sua própria figura, enlouquece no labirinto infinito das construções alegóricas. Entende-se, por fim, que não nos é dada a escolha de escapar ou eliminar o vazio que cerca a dimensão humana; dimensão essa restrita às aporias – sempre à beira de uma “quase” apreensão, e sobretudo de um “entre”; entre dois polos do sentido que atraem e dividem o sujeito, o certo e o incerto, angustiando-o na mais profunda intimidade, e cujo desenlace não lhe é dado a conhecer. Nem a arte, a poesia ou a música transcendem; pertencem a este plano, sendo pura imanência. Talvez estejam elas também enlaçadas em um entre mundos.

A aniquilação mística prevê a estabilidade concedida no espaço impalpável antes do início ou após o fim – ou, ainda, no entremeio de um “Longe-perto” (PORETE, 2008:164)… De todo modo, enquanto limitados à trama humana e terrena, “na superfície do ser, nessa região onde o ser quer manifestar-se e esconder-se, onde os movimentos de fechamento e abertura são tão numerosos, tão invertidos, tão carregados de hesitação” (BACHELARD, 2008:342), podemos concluir e concordar com Bachelard que o homem, em todas as suas limitações, segue inevitavelmente sendo o “ser entreaberto”.

Bibliografia

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.

PORETE, M. O Espelho das Almas Simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo e no desejo do Amor: Petrópolis, Vozes, 2008.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.

MCGINN, B. O florescimento da mística: homens e mulheres da nova mística (1200-1350). Tradução: Pe. José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2017.

NOGUEIRA, M. S. M. (2022). Aniquilamento e descriação: uma aproximação entre Marguerite Porete e Simone Weil. TRANS/FORM/AÇÃO: Revista De Filosofia, 42 (Special Issue), 193–216.

Imagem: detalhe de Virgem Anunciada (Antonello da Messina, 1476)

Sobre o autor

Mariany Araujo

Graduada em Arquitetura e Urbanismo, Mestre e Doutoranda em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo. Pesquisa teoria e história da arte e da arquitetura, estética moderna e contemporânea com ênfase em expressões neobarrocas e estudos da cultura visual/ teoria da imagem. É pesquisadora do Grupo de Pesquisa “A Experiência Mística e o Conhecimento: Amor, Desejo, Sofrimento e Êxtase” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.