O sistema que priva o sono, vende pílulas para dormir e diz como sonhar com a felicidade: os comportamentos de coping, hoping, doping e shopping
Não sei como os nutricionistas ganhariam a vida na Idade Média. Por aquela época, comer muito cedo era visto como estímulo ao pecado da gula. Quem relativizava os vícios e acochambrava as virtudes ia de pão de centeio, queijo e cerveja. Acredite, álcool no café da manhã é história de ontem: no Egito Antigo, camponeses tomavam cerveja e comiam pão e cebola; na Grécia Antiga, a mesa matinal era posta com pão, frutas e vinhos. Depois vieram os reis modernos, apegados a um desjejum mais ornamentado. De qualquer maneira, álcool não podia faltar.
Muito antes da preocupação com a resistência à insulina, funcionários embriagados deram trabalho à Revolução Industrial. Mentalize 80 horas semanais em condições insalubres sob efeito de álcool. Não havia leis trabalhistas, nem metilfenidato [1], muito menos lisdexanfetamina [2] – e só chamamos de “trevas” a Idade Média? Difícil ver o período com bons olhos, se é que alguém atravessava a tarde acordado após começar o dia entornando o caneco.
A Revolução Industrial precisava de gente bem desperta e produtiva. Sorte a cafeína ter chegado à Europa no século XVII. Vinda do mundo árabe, estendeu as jornadas e aumentou a produção. O café tornou-se um alívio de parte a parte, estabelecendo com o capitalismo o principal relacionamento da modernidade – é, Bauman [3], eis o nosso relacionamento líquido primordial.
Como a embriaguez alterava a concentração, o álcool foi dispensado do trabalho. O café, em contrapartida, parecia maximizar a atenção porque tirava [4] o sono – porém a privação de sono, descobriu-se na sequência, minava a concentração a médio e longo prazo. Aparentemente voltamos à esfera do pecado: não se acende uma vela para Deus e outra para o Diabo, nem na ciência. Há preços a pagar muito antes do capitalismo, chamados de consequências.
Evidente que se costuma preferir perder o sono ao emprego.
Em pouco tempo, com o sono entrando na lei da demanda, alcançam as prateleiras as ofertas de pílulas para dormir. Agora, sim, a felicidade pode ser sonhada, dentro e fora do expediente. Afinal, o capitalismo oferece o café que consome o sono, mas vende remédios [5] e felicidade. Como nos comportar neste cenário?
Em How Will Capitalism End?, o sociólogo alemão Wolfgang Streeck aponta que há quatro tipos amplos de comportamentos: coping, hoping, doping e shopping.
O coping [6] refere-se à capacidade do indivíduo de aprender a se resignar com os fatos da vida, lutar por si mesmo, lidar como se fosse normal toda essa nova impressão e encontrar paliativos para as sucessivas emergências que lhe são infligidas.
Em conjunto, as condutas de coping representam o extremo esforço individual: pedem paciência, energia, otimismo, inventividade e autoconfiança. Como resultado, vemos trabalhadores inseguros e acuados por feedbacks nas reuniões das empresas, enfrentando diariamente (analogia de Streeck) uma espécie de Procrusto: ou seja, pior para quem não se ajustar.
Subjacente a tais condutas, como notam a socióloga Eva Illouz e o psicólogo Edgar Cabanas em Happycracia: fabricando cidadãos felizes, propõe-se:
(…) que a felicidade não é tanto uma coisa, mas um determinado tipo de pessoa: individualista, fiel a si mesma, resiliente, motivada, otimista e com alto grau de inteligência emocional (CABANAS & ILLOUZ, 2002, pp. 13-14).
Um coping bem-sucedido é assistido pelo hoping. Derivado do inglês, hope – esperança, os comportamentos de hoping dizem respeito ao esforço mental do indivíduo para imaginar e acreditar numa vida melhor, esperando um futuro feliz, não muito distante.
Sob esses aspectos, indica Streeck, o otimismo é elevado ao status de virtude pública e de responsabilidade civil. Perceptível é esta esperança de jeito escolar: para o sujeito que cumprir com as tarefas, basta aguardar boas notas – isto é, a felicidade.
A felicidade ronda nosso imaginário cultural, a ponto de ser uma presença ad nauseam em nosso dia a dia (…). Hoje ela costuma ser vista como uma atitude passível de ser engendrada pela força de vontade; resultado do reino de nossa força interior e nosso eu autêntico; única meta que faz a vida valer a pena; o padrão pelo qual devemos medir o valor de nossa biografia, o tamanho de nossos sucessos e fracassos; e a magnitude de nosso desenvolvimento psíquico e emocional (CABANAS & ILLOUZ, 2002, pp. 12-13).
Em 1946, no seu prefácio de Admirável mundo novo, Aldous Huxley indicava a tendência de fazer com que as pessoas amassem sua servidão e que o amor à servidão não podia ser instituído senão como fruto de uma profunda revolução pessoal nas mentes e nos corpos humanos (HUXLEY, 2019).
Huxley enxergava (e antecipava) a receita: técnica de sugestão seria aperfeiçoada primeiro pelo condicionamento infantil [7] e depois pelo auxílio de drogas [8] – momento em que as ciências da matéria (física, química e engenharia) passam a ser usadas como instrumentos para modificar as formas e expressões naturais da própria vida. Entramos, pois, nos comportamentos de doping descritos por Streeck.
O doping é a ajuda que ambos, o coping e o hoping, precisam. Envolve o uso (e facilmente o abuso) de substâncias de dois tipos: um, para aumento da performance (feita do ponto de vista legal) e, dois, como substituto de performance (o que estaria do lado ilegal).
Para escapar do pejorativo, temos nome novo, nootrópicos, que são:
compostos que aumentam a função do cérebro, também conhecidos como ‘drogas inteligentes’, assim como substâncias legais e regulamentadas usadas, em geral, estrategicamente (…) para ajudar a ficar mais autoconsciente ou para aguçar o foco (ASPREY, 2019, pp. 65-66).
Novas embalagens e tudo consolidado para o projeto “felicidade”.
ela [felicidade] produz uma nova variedade de ‘perseguidores da felicidade’ e de ‘happycondríacos’ [happychondriacs] obcecados e ansiosos pelo eu interior, com a constante preocupação de corrigir seus defeitos psicológicos e dedicados à transformação e ao aprimoramento pessoal. Assim, enquanto esse processo faz dela a mercadoria perfeita para um mercado que prospera em meio à normatização de nossa obsessão com saúde mental e física (…) pressupõe que podemos optar (…) [pois] a ciência da felicidade insiste que sofrimento e felicidade são uma questão de escolha pessoal (CABANAS & ILLOUZ, 2002, pp. 21-22).
Não haveria de surpreender, uma vez pesadas tais circunstâncias, que o projeto “felicidade” não nos deixa dormir – e quem não dorme que se ocupe: o consumo assegura motivação para trabalhar mais e mais. Realmente, parcelas a pagar podem ser muito motivacionais.
Não à toa, o quarto comportamento descrito por Streeck é o shopping.
As compras garantem senso de singularidade individual e uma identificação coletiva numa comunidade de consumidores. Conferem, ainda, uma aderência a uma competição hedonista que mantém o sujeito irracionalmente feliz para trabalhar – o trabalho passa a ser reconhecido e culturalmente definido como um teste e uma prova do valor individual, lembra do coping?
Recentemente, a serviço do shopping, temos os famosos influencers, pessoas-vitrines que andam por aí vestindo o nosso próximo apetite [9]. Há um menu de alternativas que possibilita uma espécie de customização da personalidade.
A metáfora do apetite não é aleatória. O ato de comprar apresenta um mecanismo semelhante ao encontrado na alimentação. O imediatismo com que se pode comprar – enche-se a sacola como quem enche o estômago – permite a saciação momentaneamente, enquanto um tipo de saciedade [10] é experimentado no tempo que transcorre até as próximas férias do funcionário.
Aos que tiveram uma noite de sono bem dormida, a ironia não passa despercebida: ela está na venda daquilo que nos é tirado. Resumindo, vendem-se as soluções para os problemas que o próprio sistema cria.
Cabanas e Illouz indicam esta mesma direção: “(…) as receitas para a felicidade podem acabar contribuindo para a manutenção e a criação de parte da insatisfação que prometem curar” (CABANAS & ILLOUZ, 2002, pp. 23-24).
Segundo os autores, a felicidade emerge como mercadoria, e destacam o termo emodities (junção da palavra emotion – emoção e commodity – mercadoria). Ao fim e ao cabo, a mensagem escamoteada é “você pode ser feliz como quiser, desde que alguém possa lhe vender os meios”.
Por acaso considerando adotar o café da manhã ao estilo Idade Média?
Referências bibliográficas
ASPREY, D. (2019). Vire o jogo! O que visionários fazem para vencer na vida. Rio de Janeiro: Harper Collins.
CABANAS, E. & ILLOUZ, E. (2002). Happycracia: fabricando cidadãos felizes. São Paulo: Ubu Editora.
STREECK, W. (2017). How Will Capitalism End? London, New York: VERSO.
HUXLEY, A. (2009). Admirável mundo novo. São Paulo: Globo.
WALKER, M. (2018). Por que nós dormimos? A nova ciência do sono e do sonho. Rio de Janeiro: Intrínseca.
[1] Psicofármaco comercializado e conhecido como ritalina.
[2] Psicofármaco comercializado e conhecido como venvanse.
[3] Zygmunt Bauman foi um sociólogo e filósofo polonês conhecido pelo conceito de “modernidade líquida” e “relacionamentos líquidos”.
[4] A cafeína liga-se aos receptores da adenosina, um nucleosídeo que faz a “pressão de sono” ao se acumular no cérebro – a concentração de adenosina aumenta a cada minuto em que estamos acordados. Assim, quanto mais tempo passamos em vigília, mais adenosina será acumulada. Quanto mais adenosina, mais vontade de dormir. A cafeína “derrota” a adenosina por conseguir se conectar aos seus receptores no cérebro, e assim os bloqueia e inativa, como quem tapa os ouvidos e deixa de ouvir um barulho. Ou seja, a cafeína bloqueia o sinal de sonolência normalmente transmitido ao cérebro pela adenosina. Quando a cafeína perde seu efeito o sono retoma e parece pior, porque o café não tira o sono, só nos engana temporariamente (WALKER, 2018).
[5] Para quem quer conhecer os principais efeitos das alterações de sono: abala o sistema imunológico, duplica o risco de câncer, é considerado fator decisivo para doença de Alzheimer. Um sono inadequado – até em reduções moderadas por apenas uma semana – altera os níveis de açúcar no sangue, aumenta a probabilidade de as artérias coronárias ficarem bloqueadas e quebradiças. Além disso, o sono regula o apetite e controla o peso corporal (WALKER, 2018).
[6] O termo tem tradição na psicologia de linha comportamental.
[7] Huxley, ao que tudo indica, ficou muito impressionado pela ciência do comportamento (behaviorismo).
[8] O autor conta sua experiência com mescalina no livro As portas da percepção.
[9] O capitalismo cria o apetite, a vontade sem fome, não o desejo – o desejo requer fisiologia, requer “fome”, o “desejo pinga”, como diz Nelson Rodrigues.
[10] Saciação e saciedade são fenômenos diferentes. Saciação refere-se a curto prazo, após a ingesta. Saciedade refere-se a médio-longo prazo, após início da absorção dos nutrientes.
Imagem: colagem com cápsulas (Freepick) e mesa de café da manhã (Nat/Wikimedia Commons)