O Vazio Existencial na Contemporaneidade

O que se leva da vida é a vida que se leva

Dia desses, fiquei presa em um post que viralizou nas mídias sociais, apesar de sua qualidade batida de “mais do mesmo”: era dessas listas que aparecem vez ou outra, em tom imperativo, ditando “todas as coisas que você já deveria ter feito” antes da balzaquiana idade de 30 anos.

Meu caro, o que você consegue mostrar que alcançou até agora? Trabalhando aqui em meu currículo imaginário, exibo meu cargo de representante de classe no colegial (terminologia tão antiga que nem existe mais), me vem a lembrança de um ou dois relacionamentos amorosos desastrosos, de já não ter mais nenhum dos meus avós vivos, do título de mãe de pet, de um diploma de um curso de humanas que provavelmente teria sofrido corte de gastos caso estivesse na pasta do MEC em 2022, de uma condição autoimune e, claro, daquele frio na barriga que me dá cada vez que penso que muito provavelmente nunca vou conseguir me aposentar.  

Ler naquela lista do post tudo aquilo que eu não realizei me deixou na defensiva, e questionei se o que me resta é colocar a viola no saco. Não o fiz porque, afinal, quando alguém decide, aleatoriamente, ditar o que as pessoas devem ou não ter feito de suas experiências, minha indignação é certa.

O que me faz revirar os olhos de preguiça diz sobre essa arrogância em presumir que todo ser humano é igual. Essa pretensão de misturar todos em um mesmo balaio infantilizado, em que somente coisas lindas acontecem, sem espaço para reconhecimento ou integração das lutas internas que, de um jeito ou de outro, todos nós enfrentamos diariamente.

Apesar de saber que o post de gosto duvidoso deu ao seu autor unicamente o que ele buscava (#engajamento), soa tão constrangedor quanto quem dizia que deveríamos usar a pandemia como uma oportunidade para empreender ou aprender uma nova habilidade (em vez de testar todos os sabores de biscoito do supermercado, numa tentativa falida e calórica de preencher a angústia que a demora da vacina nos causou).

Existe uma indústria multimilionária de crescimento pessoal, baseada em fazer com que nos comparemos desfavoravelmente uns com os outros, porque alimentar inseguranças vende bem. O problema é que nosso caminhar na vida não pode ser mensurado de forma linear, visto que cada um de nós é subproduto singular de um coquetel de acidentes envolvendo nascimento, a soma de diversas circunstâncias (algumas boas e outras bem ruins) num espaço único de tempo, assim como quais decisões tomamos quando apresentados a tais circunstâncias.

O ápice da canalhice dos marqueteiros de plantão está na tentativa de nos convencer de que é possível dar conta da nossa experiência, desde que encontremos um sentido para a vida. Veja bem, se falharmos na empreitada, a culpa é exclusivamente nossa. Temos, então, uma sucessão de atribuladas tentativas de apreender, mensurar e predizer cada passo de nossa existência em busca do sentido misterioso, para superar o medo de ser essa criatura incompetente que não sabe qual é a resposta certa.

Infelizmente, cair neste conto do vigário resultou em todos nós perdendo a mão como sociedade: claramente esgotados, para escapar da necessidade de pensar e entender tudo a todo minuto, mais do que nunca descarregamos nossas frustrações no uso das drogas e dos remédios controlados.

Tudo porque a premissa está errada. É imperativo que paremos de questionar o sentido da vida – até porque a vida já tem sentido em si, não existe uma resposta mística, tampouco sigilosa, com cara de mapa da mina. Em vez disto, devemos nos questionar o que é esperado de nós, nesta vida que levamos, ante os inúmeros desafios que vivemos. Vida de comercial de margarina, sem medo, culpa e sofrimento em maior ou menor grau não existe, mas há formas melhores e piores de encará-los.

Com essa mudança de paradigma, introduz-se um senso de responsabilidade com a vida pessoal. Saímos da posição de meros expectadores, esperando um sentido maior e absoluto da vida – talvez por acharmos, em algum lugar, que somos especiais e merecedores –, e passamos a crer que, no fundo, a resposta possível é se questionar qual é a expectativa sobre si mesmo e o que eu faço diariamente com a parte que me cabe neste latifúndio, seja lá como ela se apresente.        

Do alto dos meus quarenta anos, eu respiro fundo e me recordo de que encontrei uma maneira de lidar com esse desejo autoflagelatório de comparação que as vezes ronda a minha cabeca. Semana passada, minha vizinha de sessenta e três anos finalmente aprendeu a dirigir, e um paciente de dezesseis, com fobia social, conseguiu fazer uma apresentação sobre a monocultura do milho, sem gaguejar, para um grupo de três colegas na aula de geografia. Convivendo com pessoas (por gosto e por profissão), eu descobri que elas são capazes de coisas mundanas e incríveis em todas as fases da vida, desde que lhes seja concedido espaço de reflexão, e quando tomam para si novas oportunidades e decisões para seguir adiante.

Arrisco dizer que pessoas com um certo nível positivo de equilíbrio emocional fazem as coisas que elas querem, e se responsabilizam por suas escolhas. Elas, de forma por vezes espinhosa, enchem suas vidas de um sentido em si, porque fazem o que gostam, o que é possível, o que conseguem – por si mesmas, em suas batalhas pessoais.

Ainda sobre imperativos: não perca tempo lendo listas, tampouco gaste o seu dinheiro procurando por um guru que lhe diga o que fazer. A tão almejada paz de espírito vem quando reconheço limites, recalculo minha rota e quando me responsabilizo por responder por minha vida de forma transparente, até quando o tempo por aqui terminar.

Bibliografia

Frankl, V. (2017). Em Busca De Sentido: Um psicólogo no campo de concentração. Editora Vozes, 1ª edição.

Frankl, V. (2010) O que não Está Escrito nos Meus Livros, Editora É Realizações, 1ª edição.

Michaelis Dicionário Escolar (2016) – Língua portuguesa, Editora Melhoramentos, 4ª edição.

Wong, P. T. P. (2007). Viktor Frankl: Prophet of hope for the 21st century. Appears in: A. Batthyany & J. Levinson (Eds.), Anthology of Viktor Frankl’s Logotherapy. Phoenix, AZ: Zeig, Tucker & Theisen Inc.

Youtube. O que se leva da vida é a vida que se leva – Music video by Túlio Dek – 2009 Arsenal Music

Imagem: fotograma extraído do vídeo clip da música “O que se leva da vida é a vida que se leva”

Sobre o autor

Beatriz Zanichelli Sônego

Psicóloga Clínica pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Mestranda do programa de Psicoterapia Psicanalítica da University of Essex – Tavistock and Portman NHS Foundation Trust, e Pesquisadora do grupo de pesquisa "O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.