O Vazio Existencial na Contemporaneidade

São quase todos negros, de tão pretos, de tão pardos, de tão pobres

“mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”

(trecho da música Haiti, de Gilberto Gil e Caetano Veloso)

Ganhei uma garrafa de vinho personalizada de presente. De uma vinícola do sul do Brasil, com selo de premiação e qualidade no rótulo. O que foi um deleite naquela noite, há um ano, hoje tem o amargor da decepção. Como muitos, também me frustrei com a revelação de safras brasileiras produzidas com trabalho análogo à escravidão. Como negro, ainda estou digerindo o amargor e a raiva da notícia enquanto escrevo este artigo. Porque ainda há muito para falar sobre isso, conscientizar, dar a ver – para todos os brasileiros, herdeiros do colonialismo.

Como psicólogo, identifico as consequências psíquicas deixadas por esse modelo que tenta moldar as pessoas como eu na função de escravos. No livro Os condenados da terra, Frantz Fanon sinaliza a importância da luta dos movimentos de libertação anticoloniais, uma vez que o pensamento colonial segue presente até hoje no mundo, inclusive no Brasil, na questão “pós-escravocrata”.

A perpetuação desse modo de pensar se manifesta de forma majoritariamente violenta, como um mecanismo de dominação e submissão de outra pessoa, característica dos processos colonizatórios. Essa violência colonial apresentada pelo psiquiatra antilhano demonstra uma espécie de prisão para as minorias. Um verdadeiro plano de manutenção dessa neurose por grupos que se autointitulam “superiores”, para que possam manter essa aura de colonizadores, aproveitando-se de forma indiscriminada do trabalho forçado para obter cada vez mais lucro.

Fanon defende a necessidade de uma descolonização e diz que os últimos deveriam ser os primeiros, invertendo essa lógica predatória:

Volto para o vinho, vejo meu nome gravado, pego o saca-rolhas e bebo.

Essa mesma garrafa foi produzida por um negro, como eu, menos privilegiado, com pouca alfabetização, corpo sofrido pelos maus-tratos, choques, alimentação estragada, xingamentos, reflexos não de um complexo de inferioridade, mas de uma não existência. Isso corta o meu coração.

Até quando vamos presenciar essas cenas em nossa sociedade? Será necessária uma guerra para poder existir? É necessário falar sobre isso e muito mais. Parece uma história que não tem fim, apenas aguardando o próximo episódio como numa série de TV.

…mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos

Agora vamos aos fatos: cerca de 95% dos “escravizados do vinho” são negros, (64% se autodeclaram pardos e 31% pretos). 207 trabalhadores foram resgatados da produção de vinho em Bento Gonçalves (RS), de um alojamento onde eram submetidos a condições degradantes e trabalho análogo à escravidão na cultura de uva. Todos homens, com idade entre 18 e 29 anos, com pouca escolaridade. Atuavam na colheita e no carregamento de uvas, declararam ter sido severamente castigados com choques elétricos, spray de pimenta e cassetetes, e ter sido obrigados a comer alimentos estragados e alojados em péssimas condições. Também foi apontado que, após serem resgatados pela PRF (Polícia Rodoviária Federal), a violência física era reservada para todos aqueles que vieram da Bahia.

Contratados por uma empresa prestadora de serviços, foram enganados pela promessa de alimentação, hospedagem e transporte custeados por três vinícolas do Sul. A primeira resposta das empresas beneficiárias do “serviço terceirizado”: desconhecer o crime. A segunda resposta: tentar um acordo. A resposta que dificilmente virá: punição nos termos da lei e reparação dos danos. 

…mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos

Me parece um tanto utópica a promessa de zelar por princípios éticos no processo de contratação de empresas fornecedoras de mão-de-obra terceirizada – uma forma de prometer um mundo novo à medida que as notícias tomam conta da mídia em geral. A tendência é de afrouxamento no longo prazo, se os olhares não estiverem tão atentos às barbaridades que viraram modus operandi desde tempos longevos.

Quando precisamos colocar no papel o compromisso de contratar empresas idôneas, significa que não cabem apenas promessas, mas sim uma vigilância constante de todos os envolvidos para poder assegurar o que deveria ser o básico: garantir condições e recursos adequados para o trabalho.

Não basta fiscalizar as empresas contratadas com capacidade econômica, porque se trata do caráter das pessoas. Não basta apenas ter dinheiro, é necessária uma mudança de postura, mais humanizada.

…mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos

E a história se repete. Após a assinatura da Lei Áurea, houve uma mudança de linguagem: os alojamentos e senzalas passaram a ser chamados de “dormitórios de empregados ou camaradas”; feitores e capatazes passaram a ser chamados de apontadores, porque agora tinham a nova função de “fazer o ponto” em pequenos livros. Mudam-se os termos (e os tempos), mas os feitos continuam os mesmos.

Os então ex-escravos, deixados à própria sorte, eram levados a pensar que sua “liberdade” não era de verdade estar livre, mas se acostumar a trabalhos obrigatórios durante horas. Enquanto isso, os brancos receberam linhas de crédito agrícola como recompensa. Uns são esquecidos ou punidos, outros são premiados – até hoje. A lei da vadiagem (de 1830) é um dos exemplos de quem era vigiado, punido, reprimido e da herança cultural que vivemos hoje num Brasil com a população majoritariamente negra e vivendo em situação de vulnerabilidade social, ainda marginalizada, tantas vezes exotizada e que continua sendo sub-representada.

É por isso que, quanto mais “negra a cor da pele, maior a chance de uma pessoa ser pobre, os descendentes de africanos ganham menos, moram em habitações mais precárias, estão mais expostos aos efeitos da violência e da criminalidade”(GOMES, p. 530).

Para que uma mudança aconteça e se estabeleça, a educação sempre será um dos caminhos imprescindíveis, ou seja, promover a estratégia de conscientização e orientação, primordialmente daqueles que precisam de fato mudar a sua postura diante de outro ser humano. São essas pessoas que precisam aprender e constatar boas práticas, não pode ser apenas para deixar nos registros que fizeram a sua parte, é necessário um engajamento nessa direção.

Referências Bibliográficas

Fanon, Frants. Os condenados da terra. trad. Ligia Fonseca Ferreira, Regina Salgado Campos, 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar. 2022.

Trabalho análogo à escravidão: Vinícolas do RS firmam acordo para pagar indenização de R$ 7 milhões – Estadão (estadao.com.br)

Gomes, Laurentino. Escravidão. Volume III – Da independência do Brasil à Lei Áurea, 1 ed. Rio de Janeiro: Globo Livros. 2022.

Imagem: colagem com fotos de Care Bears e Bill Branson/Wikimedia Commons

Sobre o autor

Francisco Carlos Gomes

Psicólogo Clínico e Logoterapeuta. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Fundador e diretor clínico do Núcleo de Logoterapia AgirTrês. Coordenador do grupo de pesquisa "O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido” do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ