O Vazio Existencial na Contemporaneidade

O “si-mesmo” como núcleo do ser humano na obra de Viktor Frankl e a perda da subjetividade na contemporaneidade

Viktor Frankl fundou a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia colocando o “si- mesmo” como núcleo do ser humano, deixando a fundação do inconsciente de Freud para a Psicanálise e a psicoterapia de Adler como escolas distintas, apesar de não negar nenhuma delas.

Frankl não está colocando o ser humano num lugar ensimesmado, muito pelo contrário, tem uma visão mais abrangente de ser humano. Tendo vivido esse encontro com seu próprio “si-mesmo” quando tudo lhe foi tirado. Na luta por sua sobrevivência nos campos de extermínio, pôde vivenciar na própria carne e em todo o seu ser o sentido da vida, a fim de não perecer na mais absurda dor que um ser humano poderia suportar, a de ser arrancado de sua dignidade humana.

Médico psiquiatra em Viena, antes dessa experiência trágica Frankl já tinha como objeto de pesquisa e indagações a capacidade do ser humano de realizar-se na vida, em termos de sentir-se vivo, criativo e realizador – norteando sua visão de homem como um ser dirigido para o “sentido”, entendendo que o ser humano, em sua existência, cedo ou tarde, estaria às voltas com a seguinte indagação: estamos tendo contato com o nosso si-mesmo a fim de fazer valer essa vida com dignidade, amor e realização?

O médico atualiza essas questões sobre o “sentido da vida” em sua prática clínica, vindo a inaugurar a Logoterapia, ao mesmo tempo nos fornecendo um referencial teórico enriquecedor a fim de pensarmos as questões do homem na contemporaneidade.

Bauer, J (2019) escreveu a esse respeito:

…uma característica da época atual é que muitas pessoas não têm mais nenhuma ocasião para um encontro com seu próprio si-mesmo, devido ao ritmo frenético de nossa vida ou porque se esquivam dele ativamente, com distrações constantes. Por quê? Porque um encontro com o si-mesmo estaria relacionado com sentimentos desagradáveis ou seria até mesmo insuportável.

Seja pelo ritmo frenético da vida urbana ou por fuga de nos encararmos, corremos o perigo de sermos capturados em nossa alienação e ficarmos prisioneiros. Essa é a metáfora colocada na “tríade trágica” de Frankl (1945): “dor, culpa e morte”, a que todos vivenciamos e vivenciaremos ao longo da vida. Se ela não puder ser olhada, a fim de transcendermos, nos refugiamos, escondidos à sombra de nossa existência mais autêntica, e, por medo, vazio e angústia, vivemos uma vida em morte, nos escondendo em prazeres fugazes ou uma busca incessante por felicidade ingênua e consumista.

Na obra O Futuro de uma Ilusão (1925), Freud compreende o desamparo como condição humana que permeia toda a existência, sem poder ser remediado. Em 1895, compreendeu que essa condição a princípio nos estrutura como sujeito. Nascemos em desamparo e morremos também necessitados de quem nos cuide e nos dê alento. A incompletude nos leva da dependência absoluta do início da vida à interdependência – no melhor dos casos –, em sujeitos relacionais. Entrelaçando-nos e dando um sentido a nossa existência, nos comprometendo com a vida e com aqueles a quem estreitamos os mais diversos vínculos sejam amorosos, de trabalho, na própria sociedade, nos responsabilizando por nossas escolhas e atitudes.

O mito de narciso, resgatado por Freud em “O Narcisismo” (1914), contempla o sujeito que desinvestiu da relação com o objeto de amor e voltou sua energia libidinal para o próprio ego. Narciso, ensimesmado diante do espelho, fica sozinho, condição social na contemporaneidade e também sintoma. Se colocarmos um olhar mais cuidadoso, veremos grande sofrimento e enfraquecimento do si- mesmo, em que o sujeito oscila numa sensação de asfixia, sentindo-se invadido por impulsos, afetos que incidem diretamente sobre sua mente e seu corpo sem possibilidade de ligação e simbolização, produzindo angústias, desconfortos somáticos, pavores e terrores. Ao mesmo tempo, e em outro polo, o sujeito se encontra numa situação de infantilidade e dependência crônica de outro supostamente onipotente, que lhe garanta um prazer fugaz, reforçando ainda mais seu empobrecimento de si e com o outro.

O referencial frankliniano nos auxilia tanto num entendimento clínico, para quem nos procura para falar de sua dor e angústia, quanto ao lançar luz para o homem contemporâneo em sua despersonalização e rupturas na continuidade de seu ser em formas concretas de sintomas – como cansaço de si e da vida, tédio, apatia e sensação de vazio existencial. Este vazio, sentido como perda do si-mesmo, deixa o sujeito empobrecido de pensamento e de ação em sua vida e vulnerável a vícios, adoecimentos físicos de origem psicossomática, solidão, depressão e suicídio.

A letra da música “Copo Vazio”, escrita por Gilberto Gil, elucida bem a questão do sintoma descrito acima no homem na contemporaneidade, de algo sentido por ele como um vazio, mas que ao mesmo tempo revela alguma coisa no lugar:

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar
É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio,
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar.
É sempre bom lembrar,
Guardar de cor que o ar vazio
De um rosto sombrio está cheio de dor.
É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor.
Que a dor ocupa metade da verdade,
A verdadeira natureza interior.
Uma metade cheia, uma metade vazia.
Uma metade tristeza, uma metade alegria.
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor. 
Gil, G. (1974)

Na sociedade contemporânea, fugimos do amor, no sentido de nos vincular, e estamos de fato mais individualistas. O ser humano atual perdeu a perspectiva da vida na qual, num contexto mais amplo, esta incluída a morte. A consciência da morte está ligada ao modo de apreciar a vida e não a fugir dela, abrindo-nos a capacidade de ver a vida e aos outros com novos olhos.   

A natureza humana, e sua intrínseca transitoriedade, nos leva a, tal como Frankl aborda, vivenciarmos mais “as perguntas do que as respostas”. Frankl, em seu conceito de tríade trágica, compreende o dilema humano de ser colocado diante de questões presentes na existência, às quais o sujeito precisa se submeter, a ponto dele se questionar ou se deparar com: “o que a vida espera de mim” e não mais “o que eu ainda devo esperar da vida”. Esses desafios, dos quais não podemos fugir, nos levam ao encontro de nossa verdade interior, nosso “si mesmo”, buscando e reordenando um sentido na vida, que é próprio para cada um.  

O sentido buscado e encontrado, tal como a vida, não é único e linear. Quando encontramos algumas respostas às perguntas da vida, logo tudo muda e somos novamente surpreendidos com outras “perguntas” – ou melhor, novamente com angústias e ansiedade diante de novos desafios. Quando fugimos ou nos encurralamos em persecutoriedade, damos a vida por acabada ou em um beco sem saída. Talvez, culpabilizando as circunstâncias, a outros ou até mesmo a Deus por nossas misérias, perdendo a oportunidade que a vida nos oferece de nos responsabilizarmos e vivermos plenamente.   

Referências

Frankl, Viktor E. Sobre o Sentido da Vida. Petrópolis: Vozes, 2022.

Frankl, Viktor E. Teoria E Terapia Das Neuroses. São Paulo: É Realizações, 2016.

Frankl, Viktor E. Um Psicólogo No Campo De Concentração. Campinas: Auster, 2021.

Freud, S. (1895) Projeto para uma psicologia científica. E.S.B. Rio de Janeiro, Imago, 19 v. XIV.

Freud, S. (1927) O Futuro de uma Ilusão. E.S.B. Rio de Janeiro, Imago, v. XXI.

Freud, S. (1914) Introdução ao narcisismo. E.S.B. Rio de Janeiro, imago, v. XIV.

Imagem: foto de Mike Wilson/Wikimedia Commons

Sobre o autor

Regina Bertamoni

Psicóloga clínica, com especialização em Saúde Pública pela FSP-USP e Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae. Pesquisadora do grupo de pesquisa “O vazio existencial na contemporaneidade e as possibilidades de realizar sentido”, do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ