“Não basta ser não-racista é necessário ser antirracista”, repito com Ângela Davis.
Falar sobre o racismo, aqui em especial dos negros, já não é mais uma escolha, é uma necessidade para lidar com os desafios do dia a dia. É importante usar o que temos para ajudar neste processo de conscientização e transformação. A comunicação como ferramenta de educação, educar para uma vida antirracista. Por isso, hoje trago para o papel o incômodo e as reflexões geradas a partir de notícias que me impactaram nos últimos tempos: a repercussão da manifestação de racismo ao jogador brasileiro do Real Madrid, Vinícius Jr, e ao jogo racista “simulador de escravidão”, que alcançou muitos adeptos online. Conecto o evento e o artefato recreativo a um tema pouco explorado quando abordamos racismo estrutural: o ódio à ascensão social da pessoa negra.
A associação de negro bem-sucedido, ou seja, que tenha curso superior, educação formal, que pode ser bem-remunerado pela sua força de trabalho ainda é motivo de incômodo. É como se não pudéssemos ocupar esse lugar e, quanto mais dinheiro, mais aumenta o ódio, como se estivéssemos tirando o lugar de alguém.
o movimento antirracista não pode descansar um só instante
Fico incomodado com a falta de escrúpulos dos racistas. Imaginem a pressão que um jovem de 22 anos suporta por conta do racismo sistemático que enfrenta em seu local de trabalho, o estádio de futebol. Em mais um exemplo de ódio aos negros, a torcida insultou, gritou, tentou minar a resistência do jogador. Seu time demorou 12 horas para divulgar uma nota de apoio, padronizada. E qual a ação efetiva depois disso? Quem é punido?
Chamo a atenção para a diferença do que ocorreu com o negro liberto com o que aconteceu com Vinicius Jr – este negro é milionário, um craque de futebol. O fato de ser bem-sucedido parece incomodar muito mais. O negro que pode comprar boas roupas, ir a restaurantes caros, que pode comprar um carro de luxo. Este negro precisa ser “castigado”, como ousa ter acesso a tudo isso? Como ousa se dar bem na vida?
Não se trata apenas de desmoralizar o negro, trata-se de querer aniquilar o negro que tem sucesso, de ameaçar sua vida, de inibir qualquer movimento em direção ao seu crescimento, como se ele tivesse que voltar à senzala, que servir sempre sem reclamar, andar de cabeça baixa, ser subserviente.
Na maioria das vezes, esse cerceamento acontece de forma “sutil”, quando estão em processo seletivo para uma vaga em que as pessoas ganham bem. Há um impedimento para que haja uma ascensão – algo que não é dito diretamente para a pessoa –, mas ela geralmente fica pelo meio do caminho, com alguma desculpa de que não atingiu os requisitos.
o movimento antirracista não pode descansar um só instante
É até aceitável que ele tenha trabalho com salários menores e que não ostentem um certo status ou posição de destaque dentro da sociedade, mas inadmissível que tenha acesso a grandes quantidades de dinheiro. Me parece que isso incomoda bastante, como se algo estivesse fora da ordem.
Os noticiários não param de mostrar que existe um movimento para aniquilar, desqualificar, dizer que somos primitivos, mais animalescos. Portanto, não somos capazes de pensar, de usar a inteligência, de produzir saberes. Como aponta Fanon (2022, p. 237), são feitos esforços para confessar a inferioridade.
O ódio toma conta do ser. Não basta apenas manifestar a sua ira, é necessário incorporar o mal, tornar-se o ódio – principalmente aos de pele mais escura.
Os racistas desumanizam e despersonalizam o corpo negro como um não igual. Um trabalho psicológico, uma narrativa para legitimar uma suposta distinção natural entre escravizador e escravizado. Me parece que o ódio é rentável.
o movimento antirracista não pode descansar um só instante
Ainda há uma naturalização da desumanização dos corpos negros, como se tudo isso não tivesse efeito nas pessoas negras: a ideia de racismo recreativo (Moreira, 2020, p. 58), estereótipos, estigmas e o que se refere às “piadas” e “brincadeiras” que parecem inofensivas, mas que possuem cunho racial associando o negro a algo inferior.
Não fosse assim, não existiria um jogo chamado simulador de escravidão, que faz da compra e venda e até tortura de personagens escravos tema de recreação e objeto de entretenimento. Removido recentemente do Google, o jogo continua funcionando nos celulares em que foi baixado. Seu objetivo é usar os escravos para enriquecer.
O que chama mais a atenção é a crueldade e o discurso de ódio presentes no aplicativo. Alguns usuários sugeriam que o jogo oferecesse novas funcionalidades, para incluir outros métodos de tortura aos negros, como açoitar, novas modalidades de compra e venda, estimulando o “lucro” e a manutenção de personagens soldados para evitar fugas.
O negrofóbico (Fanon, 2020, p. 68) se atira, geralmente acompanhado por outras pessoas. Dificilmente está só, ou com seus pares ou com pessoas que se acomodam com a situação. Eles estão espalhados pelo planeta. Não ficam comovidos em ferir os negros, querem humilhar cada vez mais.
o movimento antirracista não pode descansar um só instante
No local onde tenho meu consultório, uma região nobre de São Paulo, a quantidade de negros que circulam é muito pequena. Quase não encontro, e, quando acontece, existe um olhar, um balançar de cabeça que entendemos muito bem.
Quando ainda não existiam as redes sociais e eu chegava num lugar para dar aula ou apresentar trabalho em congresso, na maioria das vezes não se fazia a associação do meu nome a minha pessoa. Em certas ocasiões, as pessoas tomavam um susto quando eu aparecia, um negro de pele mais escura.
Muitos olhares enviesados daquela época sinto até hoje. Mas agora, com as redes sociais, as pessoas já sabem quem vão encontrar.
Na prática de consultório, a “surpresa” também era recorrente. Nas indicações clínicas, as pessoas não esperavam encontrar um psicólogo negro. No início na carreira, quando a minha imagem pública não era conhecida, um paciente me viu e pediu para chamar o “Dr. Francisco”. Eu entrei na sala, voltei e me apresentei. Recorri ao humor e a pessoa me pediu desculpas. Nós não tínhamos essa representatividade de profissionais negros. E ainda estamos na luta por isso, diariamente.
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Referências bibliográficas
Fanon, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
___________. Pele Negra, Máscaras Brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020. Moreira, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Editora Jandaira, 2020.
Imagem: fotograma da transmissão oficial do jogo Valencia x Real Madrid (La LIga, 21/05/2023)