Pensamento Público

Heróis e heroínas contemporâneos entre os retratos de um museu

Museu Judaico de São Paulo

“Heróis são aqueles que tombaram por nós” [1]

I

Os versos da composição de Wilson Batista expressam o discurso de Laurindo, um veterano fictício da Segunda Guerra que caiu nas graças de sambistas da década de 1940. À época, contavam a história de uma comunidade onde o herói era alguém que havia dado a vida por uma causa.

Na introdução de uma sequência de palestras intituladas “Heroísmo no Tempo de Vítimas”[2], Susan Neiman concorda que os heróis clássicos eram soldados e discorre sobre a importância do tema ao longo da trajetória humana. Ela defende que indivíduos fazem diferença nos acontecimentos, embora aponte vários paradoxos em torno dessa questão. Heróis de ontem foram retirados do pedestal. Personagens antes omitidos dos livros de história são resgatados. O terrorista para uns é o defensor da liberdade de outros. Hitler e Stalin foram vistos como heróis, o que deveria nos fazer refletir melhor sobre heroísmo. Muitos substituíram a expressão “heróis” pelo antisséptico conceito de “role model”, inventado em 1957. Em português, termos análogos são utilizados, como modelo ou exemplo, que também são menos inspiradores. Ainda segundo Neiman, por milhares de anos, os heróis foram o assunto da história, o seu objeto. Narrativas fundadoras foram construídas em torno deles. Pessoas e nações competiam pelo reconhecimento de sua estatura heroica.

II

Quem visita o Museu Judaico de São Paulo se depara, no saguão de entrada, com um painel de fotografias, sob o título “100 Personalidades Judaicas que talvez você conheça”. Estampadas nas amplas janelas vê-se a imagem de Anne Frank ao lado do retrato de Amy Winehouse, Steven Spielberg acima de Sigmund Freud e Golda Meir abaixo de Clarice Lispector.

A composição do painel expressa ideais, cabendo indagar quais os valores, princípios ou objetivos inferidos na escolha pelas 100 personalidades. Quem são os heróis e heroínas desse grupo social? Quem são as pessoas merecedoras de destaque no espaço promocional oferecido pelo museu? Quais os exemplos a serem reconhecidos e seguidos?

Nos anos recentes, tenho sido influenciada pelo pensamento de Isaiah Berlin, inspirada pelas suas reflexões sobre o pluralismo de valores. Berlin utilizava os termos “valores”, “ideais”, “finalidades”, “princípios”, “bens”, “exigências” e “objetivos” mais ou menos – ou não exatamente – de forma alternada. Em suas aulas, costumava explicar que, diante de uma realidade complexa, cada um de nós prioriza alguns valores, reorganiza objetivos e responde às situações correntes do modo possível. A hierarquia entre os valores não é algo fixo. Em sua história das ideias, antes da apresentação de cada pensador, Berlin caracterizava o momento histórico, descrevia minuciosamente o contexto, o ambiente intelectual da época e detectava as influências perceptíveis.

No pensamento berliniano, diante de fins diversos e conflitivos entre si, o sujeito escolhe e age no mundo, reordena seus diversos fins que estão em choque, prioriza e rearticula seus objetivos, interesses ou finalidades. Fazemos parte de um grupo de referência, em determinado ambiente intelectual. Nossas escolhas refletem, ao menos parcialmente, o modelo de pensamento dominante deste nosso grupo em sua época. Não existe uma regra universal para estabelecer a hierarquia entre valores. Consequentemente, é recomendável a adoção de cautela em nossos julgamentos, até porque é impossível compreender plenamente ambientes ou momentos históricos diversos ao que estamos habituados.  

Portanto, para Berlin era fundamental analisar as escolhas e o pensamento individual dentro do seu contexto específico. Ele também considerava que cabia ao intelectual público oferecer repertório, apontar pressupostos e ajudar a localizar o pensamento na época, no local, nas circunstâncias específicas, contribuindo desta maneira para dar consistência à reflexão. Assim, ele reconhecia a importância do estudo da ética, e considerava a filosofia política como ética aplicada à sociedade[3].

Seguindo esse pensamento, as escolhas da administração e curadoras do museu poderiam refletir o pensamento dominante nesse estrato social, na contemporaneidade. O título sugere o parâmetro da fama, do reconhecimento social sob a forma de “ser conhecido”, ou “ter sua imagem reconhecida” em contexto de sociedade de mercado. Uma era de espetacularização não plenamente vivenciada por Berlin, porém didaticamente descrita por Michael Sandel[4]:

sem que nos déssemos conta, sem mesmo tomar uma decisão a respeito, fomos resvalando da situação de ter economia de mercado para a de ser uma sociedade de mercado… um modo de vida em que os valores de mercado permeiam cada aspecto da atividade humana. É um lugar em que as relações sociais são reformatadas à imagem de mercado. p. 16

Entre imagens de intelectuais mundialmente conhecidos e influentes na contemporaneidade, como Karl Marx (1818-1883) e Hannah Arendt (1906-1975), vê-se o retrato de pessoas relativamente desconhecidas pelo grande público, como a artista carioca Anna Bella Geiger (1933) e a rabina brasileira Luciana Pajecki Lederman (cuja data de nascimento não consta no painel). A grande maioria, 64 delas, têm sua data de nascimento na primeira metade do século XX, 18 nasceram no século XIX (15 homens e 3 mulheres) e 18 nasceram depois de 1950 (15 mulheres e 3 homens). A relativa paridade entre pessoas vivas (49) e falecidas (51) chama atenção, assim como a discreta superioridade do número de homens (52) em relação ao número mulheres (48).

Busco depreender elementos do pensamento dominante entre as pessoas que escolheram os personagens. A percepção se dá pelo contraste, pela colisão de valores. Aparentemente, o herói e a heroína de hoje, deste grupo social, não são mais extraídos do passado, como lembrança a ser cultivada ou resgatada, tampouco precisam completar seu ciclo de vida. À celebridade do presente dá-se igual ênfase, atribuindo-se equivalente importância histórica. A perspectiva é do momento, é instantânea e não uma homenagem a uma obra de vida – pelo menos não para todos. Se, em outras circunstâncias, um museu dedicava-se a colecionar coisas para iluminar, preservar ou lembrar, constituindo uma entidade vinculada à preservação da memória, agora vê-se a mescla entre passado e presente. Na tradição judaica na qual fui educada, o nome da pessoa falecida vem seguido da expressão z”l [5], que nos recomenda bendizer sua memória. No painel, a data de falecimento diferencia entre mortos e vivos, como se pudéssemos comparar os feitos daqueles que nos antecederam com biografias em construção.

Quais os possíveis objetivos a serem alcançados por meio da exposição dessas imagens? Sugerir que não existem feições específicas de judeus? Interesse em divulgar nomes de pessoas de países diversos e atestar que existem judeus famosos em vários campos de atividade? Entre retratos de pessoas brancas, destaca-se a negritude de Jamaica Kincaid (1949), renomada escritora caribenha, que atualmente vive nos Estados Unidos. Finalidade de manifestar uma atitude antirracista e exprimir a aceitação da conversão ao judaísmo?

Prestigia-se o cinema nas figuras de Woody Allen (1935), Amós Gitai (1950) e Steven Spielberg (1946) – assim como das atrizes Natalie Portman (1981), Gal Gadot (1985) e Mila Kunis (1983) –, talvez para demonstrar que judeus continuam a influenciar a contemporaneidade e, eventualmente, contradizer a representação popular, expondo fotografias de mulheres judias jovens e belas. O poder no presente também está representado pelas figuras dos empresários Mark Zuckerberg (1984) e Sheryl Sandberg (1969), respectivamente fundador e dirigente da Meta Platforms. Impossível prever quais personagens serão retirados do pedestal em momentos subsequentes.

Fica visível a busca por abrir espaço para a presença feminina, transmitindo a ideia de um projeto de reparação. Voltando à perspectiva de Susan Neiman, por milênios, as pessoas lutaram pelo reconhecimento do que fizeram no mundo e agora lutam pelo reconhecimento do que o mundo fez com elas. Para ela, nosso foco mudou por um motivo justo: a história tinha sido a história de vencedores, enquanto as vozes das vítimas não eram ouvidas. Isso condenou as vítimas a uma dupla morte: uma na carne e outra na memória. Diante do painel, podemos conjecturar que o destaque relativo de mulheres, especialmente jovens, revela um enfrentamento ao histórico domínio masculino nos ambientes sociais judaicos.

Na vida prática, o limite de 100 personalidades forja escolhas que expressam princípios. Agrupo as profissões, que constituem o terceiro elemento de identificação inserido abaixo das datas. Extraindo-se as presenças unitárias, como a da única juíza Ruth Bader Ginsburg (1933-2020) a categoria profissional com menor número é a de rabinos (3) – desconsiderando-se Abraham Joshua Heschel (1907-1972), que foi identificado como ativista. Por outro lado, a categoria profissional com maior frequência é a de escritores (25). Agrupando os profissionais da música, artes plásticas, teatro e cinema chegamos a 48 nomes. A comparação entre o número total de artistas, incluindo os escritores (73), com o de cientistas (8, incluindo médicos e um antropólogo), além da relativa baixa ocorrência de políticos (4) e empresários (5), indica um relativo desprestígio de todos outros campos de atividade em relação ao valor atribuído à arte.

A filosofia moral não pode ser confundida com ciência empírica. A primeira nos permite questionar pressupostos, fazer conjecturas e propor reflexões, enquanto a metodologia científica nos orienta a responder questões mais objetivas, por meio observação sistemática de fenômenos, eventual identificação de correlações, relações causais e evidências. Tomados como indícios, os números apresentados permitem levantar uma proposição, com a perspectiva de elaborar um exercício de filosofia moral, no que diz respeito à hierarquia de valores do grupo dirigente, ou dos tomadores de decisão sobre a composição do painel. Aparentemente, importa abrir o espaço do museu para pessoas vivas, preferentemente mulheres. O herói romântico do passado é substituído pela celebridade do presente. A arte desponta como primeiro bem ou desejo e o sentido de realização se associa fortemente à produção escrita. Em seguida vem a ciência, depois os negócios e a política. A religião ocupa o último lugar entre as ocupações das personalidades destacadas. São achados que esboçam um pensamento dominante em contexto específico.

Como afirma Berlin: “As ideias nascem em circunstâncias favoráveis ao seu surgimento, embora seja difícil especificar quais as circunstâncias em casos específicos, porque essas leis quase equivalem a tautologias”[6]. Outro grupo, em outro momento, com outro repertório e escala de valores, provavelmente, adotaria diferentes critérios, derivados de uma análise mais ou menos rigorosa, deliberada ou mesmo consciente, utilizando o espaço do equipamento social sobre o qual tem influência para atingir os objetivos ou divulgar as mensagens que lhe são prioritárias ou convenientes.

Referências

[1] Comício em Mangueira – Composição: Germano Augusto / Wilson Baptista.

[2] https://www.youtube.com/watch?v=hhShV5Y8kpM – Prof Susan Neiman – Lecture 1 ‘Who Needs Heroes?’ – 2 May 2022. The University of Edinburgh.

[3] BERLIN, Isaiah. Uma mensagem para o século XXI. Ed. Âyiné. 2ª ed. 2020. p. 10.

[4] SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Tradução de Clóvis Marques. 15ª. Ed. -Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

[5] Zichrono/a levrachá – que sua memória seja para benção.

[6] Berlin, Isaiah – Ideias Políticas na Era Romântica: ascensão e influência no pensamento moderno. Organização de Henry Hardy. Cia das Letras, 2009. p. 76.

Imagem: Ruth Steuer

Sobre o autor

Ruth Steuer

Mestre e doutora em Serviços de Saúde na Faculdade de Saúde-Pública da USP. Pós-Doutorado em Estudos Organizacionais na EAESP – FGV. Integrante do grupo de pesquisa "Isaiah Berlin: Pluralismo e Liberdade" do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.