A Experiência Mística e o Conhecimento

Pensar as tramas da cultura: a circulação de livros, as práticas de leitura e a espiritualidade cristã

O ponto de partida para esta reflexão é pensar a leitura e a circulação de livros como um processo histórico e complexo, em que a cultura e as ideias transitavam de várias formas e por diferentes dispositivos tipográficos ou técnicas de impressão. Mas vale ressaltar que, devido aos limites deste ensaio, estarei restrita ao contexto Europeu do século XVI, principalmente à literatura espiritual e mística que serviu de influência para Madre Teresa de Jesus (conhecida como Santa Teresa d’Ávila), monja espanhola da Ordem dos Carmelitas Descalços.

No que diz respeito à cultura, o historiador Roger Chartier não faz uma separação rígida entre o que é tido como erudita e/ou popular. Ao olhar para a difusão da leitura na França do Antigo Regime, Chartier percebe que os mesmos livros que circulavam nas camadas da elite também passavam pelas mãos de indivíduos mais simples (ou seja, de camadas sociais consideradas populares, como os camponeses, por exemplo). Portanto, a possibilidade de leitura foi múltipla, segundo o autor.

Nas sociedades dos séculos XVI ao XVIII, os materiais tipográficos (compreendido aí o livro) parecem ter sido mais largamente presentes e partilhados do que se pensou por muito tempo. A circulação dos mesmos objetos impressos de um grupo social a outro é, sem dúvida, mais fluida do que sugeria uma divisão sociocultural muito rígida, que fazia da literatura erudita apenas uma leitura das elites e dos livros ambulantes [aqueles de baixo custo] apenas a dos camponeses. (CHARTIER, 2011, p. 79)

Segundo Chartier, “hoje estão bem atestados tanto o manuseio de textos eruditos por leitores que não o são quanto a circulação” (CHARTIER, 2011, p. 79). Em outras palavras, aqueles mesmos textos e livros foram objetos de múltiplas decifrações e modelos de leitura numa sociedade cultural e economicamente contrastante.

Contudo, ainda que os livros circulassem entre as diferentes camadas sociais, isso não implica dizer que a sua distribuição e posse fossem iguais para todas as classes. A posse de livros foi altamente desigual em vários momentos da história, evidenciando as distâncias socioculturais e principalmente econômicas entre os indivíduos. Manter uma biblioteca particular em casa sugeriria a distinção social e econômica dentro da estratificada sociedade do Antigo Regime. Ainda assim, o tema sobre o qual o historiador nos conduz a refletir é o fato de que o distanciamento econômico entre os sujeitos não significou que os mais carentes não tivessem algum tipo de acesso à cultura ou à leitura.

Um dado interessante é que, mesmo com o protagonismo da imprensa na Modernidade, o trânsito de manuscritos autografados e/ou copiados – ou seja, aqueles feitos de próprio punho – ainda se manteve viva (cf. BOUZA, 2003, p. 359). Para Fernando Bouza, “a transmissão manuscrita não decaiu com a aparição da imprensa, porém, mais ainda, parece ter-se especializado no cumprimento de determinadas funções” (BOUZA, 2003, p. 359). Para o autor, o manuscrito transforma o seu sentido de ser e ganha um estatuto de distinção e maior veracidade em comparação com o texto impresso – isso porque havia uma crença de que o texto escrito à mão poderia carregar mais certeza e confiabilidade que algo impresso por uma “máquina.

Portanto, é bem possível afirmar que os impressos coexistiram com a insistência do manuscrito:

No sistema de cópia manuscrita, frente ao impresso, as possibilidades de reescrita são enormes. [E mais,] a cópia manuscrita permitia singularizar grupos, burlar a censura – [que foi] pensada antes de tudo para a mecânica tipográfica –, além de difundir críticas políticas ou heterodoxias confessionais. (BOUZA, 2003, p. 359).

Um breve exemplo da permanência do manuscrito foram os escritos feitos por mulheres ou para elas, como os próprios textos de Madre Teresa de Jesus. O Livro da Vida foi inicialmente copiado pelas irmãs carmelitas para circulação interna, chegando a figurar entre a aristocracia do reino de Castela antes mesmo de ter sido publicado como impresso em formato de livro[1].  

Logo, estamos tratando de tipos variados de comunicação (manual ou mecânica) que circularam na Espanha (leia-se também o ocidente europeu) e posteriormente nos domínios ibéricos nas Américas. Os diferentes tipos de materialidade dos impressos evidenciam formas variadas de comunicação, de conhecimento e de memórias.

A relação do público leitor com o conteúdo lido também era diversificada. Assim, havia a leitura de formação ou informação, leitura de elevação espiritual, leitura para deleite, entre outros tipos. Também eram diversas as maneiras de ler, que poderiam ser coletiva ou individual. Quanto às situações de leitura, elas poderiam ser íntimas ou públicas, silenciosas ou em voz alta (leitura oral), nos domicílios, nas casas, em clubes, nos cárceres ou mesmo nas ruas (cf. CHARTIER, 2011).

Por fim, a leitura demonstra ter sido (e ainda ser) uma prática cultural, e a circulação de obras em grande medida é responsável pela propagação de práticas e ideias, podendo transformar/influenciar visões de mundo, mentalidades ou até mesmo hábitos socioculturais. Para Pierre Bourdieu, o livro e a leitura podem ser compreendidos enquanto um poder simbólico: “o livro é um poder, o poder sobre o livro, portanto, é evidentemente um poder. O poder sobre o livro é o poder sobre o poder que exerce o livro” (BOURDIEU, 2011, p. 243).

Os livros e a censura

O período Moderno no Ocidente europeu foi um momento marcado pela sistemática desconfiança da Igreja Católica, que atuou no controle das consciências via Tribunal da Inquisição. Nos reinos ibéricos, exerceu “um controle intelectual global, notadamente sobre a produção e a difusão dos livros impressos” (TALLON, 2009, p. 303). Por isso é importante frisar o contexto de censura e de tentativa de controle dos livros no Ocidente cristão.

O primeiro documento pontifício sobre a licença de impressão de livros data de 1487, na bula de Inocêncio VIII, investindo os bispos de responsabilidade para censurar obras que não estivessem de acordo com o orbe católico. Uma “Junta de Qualificação” era formada por eruditos em diversas áreas do saber (como filosofia, teologia, Sagrada Escritura, direito, medicina, astronomia e literatura), com o intuito de deliberar sobre quais livros, frases, palavras, parágrafos seriam objeto de censura. Foram onze publicações de índices de livros proibidos pela Inquisição Espanhola, que datam de: 1551, 1554, 1559,1583, 1612,1632, 1640,1707,1747, 1790 até 1842.

O grande foco da ortodoxia católica era o combate às heresias. Assim, o conceito de poder disciplinador de Michel Foucault (FOUCAULT, 1979) demonstra ser apropriado para pensar esse contexto, uma vez que a Igreja (via Inquisição), junto às Coroas Católicas dos reinos ibéricos, utilizou-se de tecnologia de exercício de poder e gestão de pessoas. Contudo, e ainda em Foucault, existiram momentos em que a tentativa de maior controle das consciências e a censura não conseguiram eliminar completamente determinadas práticas.

De acordo com a historiadora Célia Borges, mesmo que houvesse a tentativa por parte da Inquisição de perseguir e impor um forte controle sobre os escritos místicos, a insistente circulação de biografias e autobiografias de beatas religiosas e dos livros conhecidos como espirituais demonstra que muitos leitores (inclusive as mulheres) não ficaram alheios a esse movimento espiritual (cf. BORGES, 2007. p. 179) e não deixaram de consumir tal literatura.

Na Espanha, foram editados cerca de 198 livros espirituais entre 1530 e 1559, cujo volume de edições somente foi reduzido após a promulgação do Índice de Valdés – Fernando de Valdés, Inquisidor Geral e Arcebispo de Sevilla (PEDROSA-PÁDUA, 2015, p. 31). O índice proibiu a impressão de livros em castelhano e a leitura de diversos autores e obras[2]. No que se refere aos autores espirituais, o quadro a seguir contém alguns nomes que facilmente aparecem nas listas de livros que circularam entre finais do século XV até o século XVII[3]:

AutorObraAno
Tomas de KempisLa imitación de Cristo1444?
García de CisnerosExercitatio de la vida espiritual1500
Francisco de OsunaTecer Abecedario Espiritual1527
Frei Luis de GranadaLibro de oración y meditación; Guía de pecadoresRespectivamente: 1554; 1555-1556
Inácio de LoyolaEjercicios espirituales1548
João de ÁvilaAudi, filia1556
Bernabé de PalmaVia Spiritus1532
Bernardino de LaredoSubida del Monte Sión1535
Alonso de MadridEl arte para servir a Dios1521

No período acima ainda é possível identificar a publicação de hagiografias ou biografias devotas, como por exemplo: a “Legenda Maior”, contendo a vida de Catarina de Siena (1385-1395); o “Libro de la Bienaventurada Ángela de Foligino”, 1510 (beata); e a “Oración y contemplación de la muy devota y religiosa y gran sierva de Dios, Soror María de Santo Domingo” (1520?). Anos mais tarde, já nas décadas finais do século XVI e início do século XVII, a literatura de postulado místico teve seu destaque com a geração dos espanhóis Carmelitas Descalços, com Santa Teresa de Jesus (Libro de la Vida, Camino de Perfección, Castillo Interior o Moradas – 1588) e João da Cruz (Subida del Monte Carmelo, Noche Escura, Cántico Espiritual y Llama de amor viva – 1618).

Outros gêneros literários que difundidos no contexto foram as vidas de santos e de homens ilustres (biografias de clérigos e reis), livros de teologia (patrística e escolástica), filosofia, astronomia, medicina, matemática, os romances de cavalaria (que sempre foram condenados pela Igreja), fragmentos da Bíblia em língua vulgar, entre outros que fizeram parte do rol de literatura da época Moderna.

A literatura religiosa e os livros de espiritualidade revestiram-se de peso significativo nos países católicos. O movimento editorial de livros de espiritualidade manteve-se em crescimento desde o século XVI até o século XVIII, tendo em vista a campanha do catolicismo reformado em promover o que se considerava “boa leitura”[4]. Se por um lado havia a perseguição e a censura de inúmeros livros – visando o controle dos costumes, da cultura e das ideias –, por outro lado também houve o interesse da Igreja na publicação de livros de devoção, vida de santos, entre outros que foram julgados pelo clero como apropriados para os cristãos.  

Apesar de não ter sido aprofundado, no que se refere à história da espiritualidade cristã ocidental e a prática de leitura feminina, é possível verificar que as mulheres, ao contrário do imaginário comum, foram leitoras e escritoras em diferentes épocas. Círculos de mulheres que liam, ensinavam e alfabetizavam umas às outras aconteceram com mais expressão entre as classes dominantes. No entanto, mesmo que o registro seja em menor proporção, as mulheres das classes mais pobres também obtiveram algum contato com o mundo das letras[5].

Finalizo com uma citação de Pierre Bourdieu, que nos faz refletir sobre a relação leitura, leitores e influências. Segundo o sociólogo, entre a pessoa que lê e algo que foi lido deve haver uma disposição prévia, isto é, não é possível afirmar que somente a existência de impressos ou livros de qualquer tipo seja responsável por influenciar a cultura e as práticas de uma época. Para isso acontecer é necessária uma predisposição do leitor em relação à leitura escolhida. Nas palavras de Bourdieu:

entre uma disposição tácita e silenciosa, e uma predisposição expressa, que se encontra num livro, num escrito, sendo publicado, portanto publicável, portanto, público e visível há uma questão essencial. Basta pensar naquilo que chamamos revolução dos costumes: o fato de que algumas coisas que não poderiam ser publicadas, se tornassem publicáveis, tem um efeito simbólico enorme. A publicação é a ruptura com a censura. […] O fato de que uma coisa era oculta, secreta, íntima ou indizível, o fato de que essa coisa se torne dita, e dita por alguém que tenha autoridade e que seja conhecida por todo mundo tem um efeito formidável. Esse efeito, evidentemente, só se exerce se houver a predisposição. [grifo meu]. (BOURDIER, 2011, pp. 244-245).

Referência bibliográfica

BORGES, Célia Maria. Las hojas de Teresa de Ávila: espiritualidad mística entre mujeres de la Península Ibérica y del Brasil Colonial. In: MARINAS, Maria Isabel Viforcos; LOPEZ, Loreto López. Historias compartidas, religiosidad y reclusión femenina en España, Portugal y América, siglos XVI-XIX. México: Universidad de Léon, 2007.

BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. A leitura: uma prática cultural. In: Práticas da Leitura. Tradução de Cristiane Nascimento, São Paulo: Estação Liberdade, 2011.

BOUZA, Fernando. Entrevista. In: TOPOI, v. 4, n. 7, jul.-dez. 2003, pp. 357-361. Disponível em: https://www.scielo.br/j/topoi/a/ktKZLnw4HrRtjYCHxd4MhhB/?format=pdf&lang=pt.

CHARTIER, Roger (dir.). Prefácio. In: Práticas da Leitura. Tradução de Cristiane Nascimento, São Paulo: Estação Liberdade, 2011.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.Tradução de Roberto Machado, Rio de Janeiro: Graal, 1979.

PEDROSA-PÁDUA, Lúcia. Santa Teresa: mística e humanização. São Paulo: Paulinas, 2015.

TALLON, Alain. As inquisições na Era Moderna. In. CORBIN, Alain (org.). História do cristianismo: para compreender melhor nosso tempo. Tradução de Eduardo Brandão, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

[1] A obra de Santa Teresa de Jesus foi publicada somente após a sua morte, em 1588. No entanto, cópias dos manuscritos circularam entre membros da nobreza local e letrados religiosos, conferindo à Teresa certo reconhecimento e “fama” pela vida espiritual e pelos relatos místicos.

[2] Sobre o tema: DÍAZ, Manuel Peña. 559, jaque al libro El Índice de Valdés, Inquisidor General y Arzobispo de Sevilla. Andalucía en la historia, ISSN 1695-1956, Nº. 26, 2009, págs. 98-99. Disponível em: https://www.centrodeestudiosandaluces.es/publicaciones/los-senores-y-senoritos-de-la-andalucia-contemporanea-ah-26.

[3] Repito: no quadro exposto, os nomes mencionados se referem à literatura espiritual, e certamente não constitui um estudo aprofundado e exaustivo sobre a posse, circulação de livros e práticas de leitura. O objetivo foi meramente demonstrativo.

[4] Sobre o assunto: MENDES, Paula Almeida. Paradigmas de papel: a escrita e a edição de “Vidas” de santos e de “Vidas” devotas em Portugal (séculos XVI-XVIII). Porto: CITCEM, 2017.

[5] Sobre o assunto: GRAÑA CID, María Del Mar. Palabra escrita y experiencia femenina en el siglo XVI. In: CASTILLO, António (comp.). Escribir y leer en el siglo de Cervantes. Barcelona: Gedisa Editorial, 1999. p. 211-242.

Imagem: Saint Teresa of Avila’s vision of the dove (Rubens, 1614)

Sobre o autor

Marcella de Sá Brandão

Mestrado em História (UFMG), doutoranda em História (UFRRJ) com estágio internacional na Universidad Complutense de Madrid. Especialista em Ciências da Religião (UFJF) e pesquisadora dos grupos "A Experiência Mística e o Conhecimento" e "Estudos Agostinianos" do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP – LABÔ.